O Gênero na criança

Método desenvolvido em pesquisa identifica a noção de gênero em crianças autistas

A discussão sobre gênero, tão importante para o reconhecimento das diversidades e dos direitos de cidadania, ainda é um grande tabu para a sociedade. Prova disso é que a possibilidade de abordagem desta questão nas escolas foi excluída do Plano Municipal de Educação, aprovado em 2015 pelas câmaras municipais. Felizmente, muitos estudiosos estão tecendo novas pesquisas que ajudarão a desmitificar esta e outras questões da sociedade, como a tese “Identidade de Gênero em crianças com Transtorno do Espectro Autista (TEA)”, apresentada à banca de doutorado do IPUSP, em 2014.

A iniciativa da pesquisadora Silvana Batista Gaino se pautou no desenvolvimento de um teste que auxilia na identificação da noção de identidade de gênero em crianças. O Teste de Apercepção de Gênero (TAG), foi desenvolvido primeiramente para crianças em desenvolvimento normal, para depois ser aplicado em crianças com Transtornos do Espectro Autista, grupo clínico de grande interesse para a doutoranda. “O que me motivou foi que sempre que se estuda o autismo procura-se focar no que a criança autista não consegue adquirir, ou no que ela não conhece. Eu quis partir de outro pressuposto: tentar encontrar algo que ela adquirisse como as outras crianças”, explica a pesquisadora. As bases teóricas para a elaboração do projeto vêm da Psicologia Evolucionista, a qual, segundo Gaino, auxilia no entendimento de como o ambiente interfere na percepção de gênero.

 O TAG constitui um procedimento lúdico, elaborado como forma de brincadeira. Aliás, esta é, segundo a literatura, um dos mais importantes instrumentos para a aquisição da noção de gênero, uma vez que as crianças entram em contato com a distinção entre meninos e meninas de forma expressiva e descontraída. Para a criação do procedimento a pesquisadora entrevistou diversas crianças do sudeste e do norte do Brasil e lhes pediu que falassem nomes de brinquedos considerados “femininos, masculinos e neutros”.  Os brinquedos e brincadeiras escolhidas foram distribuídos em cartas, separadas de acordo com os critérios estabelecidos pelos entrevistados e então aplicadas ao grupo amostral que incluía crianças com desenvolvimento normal, crianças com Transtorno do Espectro Autista (TEA) e crianças com Retardo Mental, todas entre quatro e seis anos de idade.

A aplicação do TAG é simples e dura aproximadamente 10 minutos. As 51 cartas são organizadas em três blocos, como se fossem três baralhos, de acordo com as indicações presas no verso delas (CM = Cartas Masculinas; CN/U = Cartas Neutras/Unissex e CF = Cartas Femininas). Além dos 51 estímulos do teste, existem três  cartas que são utilizadas como exemplo devidamente identificadas no verso. Essas cartas são posicionadas em cima de cada bloco de cartas para facilitar o trabalho do examinador no momento de explicação da tarefa. Com base nisso, a criança deve escolher quais das brincadeiras mais lhe agradam entre todas.

Ju Bernardo

O resultado alcançado mostrou que todas as crianças conseguem identificar as brincadeiras por “gêneros”, mesmo que de forma diferente de acordo com cada grupo pesquisado. Notou-se ainda que alterações originadas por fatores
diversos fazem com que as crianças com retardo mental mantenham por mais tempo a fase de rigidez dos estereótipos relacionados ao gênero em função da idade, em detrimento da aquisição da flexibilidade que é esperada e pode ser encontrada em crianças normais. Assim, as crianças com TEA parecem manter essa rigidez, relacionada aos estereótipos, durante todo o desenvolvimento intelectual.

Para Silvana Gaino, a pesquisa evidenciou a enorme influência do componente social e familiar presente na decisão das crianças: “ficou muito claro, principalmente no caso dos meninos, que as escolhas eram influenciadas fortemente por noções sociais do que é ser menino ou menina”. Além disso, o resultado do teste mostrou que as meninas se sentem mais à vontade para fazer escolhas mais neutras e até mesmo de brinquedos ditos “masculinos”, o que foi uma novidade para os pesquisadores, que esperavam decisões ainda muito cristalizadas pelas ideias sociais. Quanto mais velhos os meninos, mais eles reafirmavam suas escolhas pelos brinquedos “masculinos”, enquanto que as meninas, quanto mais velhas, menos queriam os brinquedos femininos. Elas buscavam principalmente os brinquedos neutros, como brincar com animais de estimação, andar de bicicleta, brincar no balanço ou passear.

Se meninos e meninas tivessemos mesmos estímulos,  o desenvolvimento e as escolhas de ambos seriam muito mais próximos

“Na segunda rodada, com outras crianças, nós perguntamos ‘o que você acha que é de menino e o que é de menina?’ e percebemos que as meninas ficaram desconfortáveis para fazer esta escolha”. Gaino conta também que foi muito interessante observar a distinção entre o que era preferível e o que elas acreditavam ser esperado socialmente que elas escolhessem. “Estamos em um momento de transição do desenvolvimento infantil. Deu para perceber que o desenvolvimento cognitivo destas crianças está muito diferente do desenvolvimento encontrado em crianças de outras gerações. Eles possuem outros estímulos ambientais que modificam a forma como eles interagem com o mundo. E isso acontece tanto com crianças em desenvolvimento clínico quanto com crianças em desenvolvimento normal”, exemplifica a pesquisadora.

Gaino acredita que a discussão de gênero é muito mais fácil de ser feita com crianças desta geração do que com adultos, que, por possuírem papéis muito bem definidos socialmente, dificilmente conseguem fugir da zona de conforto. Por isso, ela afirma que “se meninos e meninas tivessem os mesmos estímulos, mesmo com a diferenciação relativa aos hormônios, o desenvolvimento e as escolhas de ambos seriam muito mais próximos. Hoje as estruturas sociais ainda influenciam fortemente neste quesito, fazendo as crianças, por exemplo, se separarem, ao invés de haver troca mútua de conhecimento, o que faz as diferenças ficarem claras e fortalece preconceitos e desigualdades”.

O  Teste de Apercepção de Gênero, proposto por Gaino, está sendo aperfeiçoado e reformulado com desenhos mais gerais para poder ser usado universalmente, em qualquer região. Com isso, ele certamente poderá contribuir com futuras pesquisas sobrea identidade de gênero em crianças.

Por Fernanda Giacomassi
Edição e revisão por Islaine Maciel e Maria Isabel da Silva Leme

Clique nas imagens para folhear as revistas psico.usp

Alfabetização – 2015, n. 1

É hora de falar sobre Gênero – 2016, n.2/3

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