Carlos Nicodemos: Entrevista para o Número 14

Entrevista com Carlos Nicodemos

Entrevista realizada em 21 de junho de 2024, por videoconferência, e transcrita pela equipe do Boletim Acauã.

Juliana Viggiano: Boa tarde, Carlos. Muito obrigada por aceitar participar dessa conversa e compartilhar conosco e com os leitores do Boletim sua experiência e conhecimento com a causa. Para começarmos, poderia nos falar brevemente sobre sua atuação e envolvimento com os Direitos Humanos?

Carlos Nicodemus: Meu nome é Carlos Nicodemos, eu sou um advogado, militante, atuo há mais de 30 anos na área de Direitos Humanos, operando com o tema de litígio estratégico em Direitos Humanos. Eu hoje sou coordenador da Comissão de Litígio Estratégico do CNDH, Conselho Nacional de Direitos Humanos, onde eu sou conselheiro. Presido a Comissão de Direito Internacional da OAB do Rio de Janeiro, integro a Comissão Nacional de Direitos Humanos do Conselho Federal da OAB, e é isso; sou integrante do Movimento Nacional de Direitos Humanos, entidade pela qual eu sou conselheiro eleito no CNDH. Tenho uma militância também bastante focalizada, que é um capítulo que me interessa muito, na área da criança e do adolescente. Eu fui presidente do Conselho Estadual dos Direitos da Criança e do Adolescente do Rio de Janeiro, e fui presidente do CONANDA, o Conselho Nacional dos Direitos da Criança. Integro algumas alianças internacionais, alianças locais, e tenho uma vida dedicada ao tema dos Direitos Humanos.

 

JV: Você poderia dar sua opinião sobre a importância da Revisão Periódica Universal do Conselho de Direitos Humanos da ONU para a efetivação e o monitoramento dos Direitos Humanos no Brasil?

CN: A RPU constitui um mecanismo de suma importância na medida que acaba se posicionando de uma forma muito estratégica como um scanner daquilo que poderíamos chamar de política de Estado em Direitos Humanos. O Brasil, ao longo do seu processo de redemocratização, desde 1985, evoluiu bastante no campo normativo dos Direitos Humanos. Eu diria até que nós realizamos uma ‘era de direitos’ de Bobbio na perspectiva normativa, mas sentimos hoje um descompasso entre aquilo que foi assegurado por leis e que não foi assegurado por políticas públicas. E a RPU, enquanto mecanismo internacional, especialmente pela possibilidade de integrar a sociedade civil organizada em variados capítulos, em variados temas, se constitui como uma ferramenta indispensável, não só na perspectiva dessa ‘era de direitos’que nós vivemos a partir do período de pós-redemocratização, mas também no campo internacional, das relações internacionais, da legitimação do Estado brasileiro nos organismos multilaterais, se colocando nesses espaços como um Estado que tem ou não compromisso com a política de direitos humanos e democracia.

 

JV: Como você acha que esse mecanismo pode ser aprimorado?

CN: Eu acho que esse mecanismo ressente, em termos de continuidade, porque gera uma eficácia, e, por experiência inclusive internacional em alguns países, demanda que seja declarado como uma política de Estado [de direitos humanos], ou seja, como uma ferramenta do Estado brasileiro, dentro desse compromisso internacional e com as políticas internas. Temos, nesse caso, um problema, um problema estrutural no Brasil: a ausência de uma Instituição Nacional de Direitos Humanos (INDH). Hoje temos o Conselho Nacional de Direitos Humanos, mas destituída da autonomia administrativa e financeira necessária para lhe dar consistência, musculatura política para [garantir] autonomia política. No momento que tivermos uma INDH, não tenho dúvida que caberá a essa instituição pilotar, ou seja, formular, declarar e implementar a RPU como um mecanismo de controle de forma continuada e permanente. Enquanto isso não for assegurado, ainda temos alguns quebra molas institucionais quando alternam os governos, porque nesses moldes passa a ser uma opção aplicar o mecanismo ou não, deixando apenas a sociedade civil, numa resistência, fazendo esse monitoramento, sem uma resposta efetiva do Estado. Então eu responderia que institucionalizar esse mecanismo como uma política de Estado através de uma INDH, que efetivamente dê à RPU [a capacidade de] cumprimento que deve ter enquanto uma ferramenta.

 

JV: E em termos internacionais, como o mecanismo pode, ele mesmo, no plano na esfera internacional, ser aprimorado?

CN: Bom, a esfera internacional acaba também sendo rebatida, e sofre o reflexo dessa descontinuidade que no meu ponto de vista, na minha percepção, é um problema central. Em termos internacionais, eu acho que tem dois elementos que a RPU proporciona e que vejo como muito importantes. Primeiro, ele tem a capacidade de transversalizar um conjunto de políticas públicas, e consegue trazer o olhar dos direitos humanos não só na perspectiva identitária em relação aos grupos em situação de vulnerabilidade e minorias, mas também consegue trazer uma visão estrutural, especialmente no bloco dos direitos econômicos, sociais, culturais e ambientais. Então, a RPU tem essa capacidade de transversalizar e dar efetivamente um diagnóstico em relação ao cumprimento das obrigações internacionais. Agora, a ausência de uma política de Estado em nível nacional se reflete internacionalmente, porque impacta inclusive na dependência com a qual o governo está operando a ocupação do espaço multilateral, como no caso da ONU, para poder levar uma informação que seja precisa e que consiga tirar a temperatura do Estado brasileiro em relação ao cumprimento das regras de direitos humanos, que ele assinou largamente na década de 90 com o governo Fernando Henrique Cardoso, deu continuidade nos governos Lula e Dilma, mas que sofreu um abalo a partir do governo Bolsonaro que se instalou nos últimos quatro anos, entre 2018 e 2022.

 

JV: Como colocou acima, o Brasil não tem uma Instituição Nacional de Direitos Humanos de acordo com os Princípios de Paris, mas tem o Conselho Nacional de Direitos Humanos, que não goza da autonomia esperada de uma INDH. Qual acredita ser o papel do Conselho Nacional de Direitos Humanos hoje?

CN: Eu entendo que o Conselho Nacional de Direitos Humanos cumpre um papel de resistência e resiliência para esse passo de construção de uma INDH, que no meu ponto de vista é fundamental e estratégico; temos feito tentativas nesse sentido. O debate interno do Conselho Nacional a respeito da criação de um Fundo Nacional de Direitos Humanos, as aproximações das agendas em relação aos princípios de Paris, que dão sustentação para ser uma INDH, a incidência em determinados espaços da ONU inclusive. Agora recentemente, essa semana, saiu um relatório, um informe da relatoria especial, sobre a glorificação do neonazismo, nazismo e formas correlatas de discriminação, e o CNDH é mencionado expressamente como um órgão que hoje está fazendo a investigação a respeito do neonazismo no país. Então essa relatoria especial mencionou expressamente o CNDH. A gente tem feito esse exercício, a gente eu digo eu, como Conselheiro e a liderança da nossa mesa diretora com os conselheiros, tem feito esse esforço, um esforço de resiliência, um esforço de resistência até que as autoridades competentes do Estado brasileiro, os Ministérios, o Ministro Silvio Almeida, o Ministério dos Direitos Humanos, assumam isso como uma obrigação ou para que deixe como legado o CNDH se transformar numa INDH.

 

JV: Como você definiria a interação entre a sociedade civil e o governo, e o papel da sociedade civil nesse processo de efetivação e avanço dos direitos humanos no Brasil?

CN: Entendo que, com todas as contradições que possamos ter, como uma democracia liberal que somos, e com contradições profundas no campo social – porque nós vivemos, em termos da democracia social, profundos processos discriminatórios – mesmo com essas questões, percebo que temos um sistema de freios e contrapesos, e esse sistema de freios e contrapesos tem exatamente que trabalhar para a evolução da política de direitos humanos; política que deve ser efetivamente traduzida na realidade, traduzida no cotidiano. Então, eu acho que temos desafios, não só a questão da INDH, mas a participação da sociedade civil enquanto um elemento na lógica do conceito de Estado, da teoria política do conceito de Estado. No processo do sistema de freios e contrapesos, é fundamental, fundamental a participação [da sociedade civil] nos Conselhos, fundamental sua participação nos mecanismos como a RPU, fundamental para o processo de diálogo com a sociedade, constituindo inclusive a verdadeira válvula de diálogo para uma educação em direitos humanos e uma compreensão mais ampla em relação a esse tema.

 

JV: Como você avalia a situação de direitos humanos hoje no Brasil, sobretudo em comparação com o governo anterior?

CN: Pois é, eu entendo que existe um princípio no nosso campo, que é o princípio do não retrocesso social. Esse é um princípio que rege a política de direitos humanos. O governo anterior, um governo que tinha como características uma alta densidade autoritária, densidade de um Estado autocrático, de um Estado que negava os espaços de participação social – e isso não é ‘achismo’ nem opinião, mas uma constatação: fechou, cancelou, revogou inúmeras portarias e decretos, extinguindo conselhos de participação social, acho que tivemos, sim, um retrocesso. Um retrocesso, lamentavelmente, violando esse princípio internacional do não retrocesso social. Agora, acho também que é preciso ter uma leitura e uma compreensão em termos da importância dessa política naquilo que defendemos hoje, como um projeto de nação. Ou seja, defendemos a democracia, mas temos que defender os direitos humanos também. Hoje, quando olhamos que o Estado brasileiro, o governo federal, dispõe de um Ministério dos Direitos Humanos que aporta recursos insuficientes para o desenvolvimento de algumas agendas estratégicas, temos que entender a necessidade, e defender a necessidade, de uma revisão de postura. Considerando que houve um retrocesso, recuperamos o fôlego, mas agora precisamos impulsionar algumas políticas. Políticas relacionadas aos defensores de direitos humanos, à questão dos mecanismos internacionais e à incidência nos organismos multilaterais. Precisamos investir no campo da educação e em direitos humanos para poder disputar a narrativa do discurso do ódio, do discurso da desqualificação social. Precisamos hoje de ações concretas e objetivas. Não adiantam ações que sejam apenas cartas de intenções; não adianta construir uma agenda baseada em cartas de intenções. Precisamos de políticas efetivas, de ações efetivas, e, para isso, precisamos de recursos e orçamento. Porque, senão, como dizia o velho Ulisses Guimarães, que nos deu como legado a liderança constitucional do Congresso para ter uma nova era no Brasil: ‘política social sem orçamento é chá das cinco’. Então, é apenas uma troca de ideias e não podemos mais hoje dormir acreditando que uma troca de ideias nos atende. Não nos atende. Cartas de intenções já chegaram ao teto; agora precisamos de políticas efetivas.

 

JV: Um última pergunta, Carlos. Como relaciona o papel da política externa nesse processo de avanço dos direitos humanos? Como a política externa pode contribuir nesse processo para além desses mecanismos internacionais?

CN: A política externa é fundamental. Fundamental que o Estado brasileiro se posicione em relação à política internacional, à política externa, daquilo que foi e é uma conquista, especialmente a partir do processo de redemocratização do Estado, de 1985 a 1988. Traçamos uma estratégia a partir do governo Fernando Henrique Cardoso, muito forte na perspectiva de reafirmar o Brasil como uma liderança regional, mas também como uma potência, trazendo como elementos-chave os direitos humanos e a democracia. A política internacional não é uma política baseada somente nas relações comerciais ou na busca do Brasil avançar, hoje, como a oitava economia do mundo. Ela não se resume a isso. Precisamos construir e fortalecer essa política internacional que foi afetada pelo governo de 2018 a 2022, o governo Bolsonaro. Precisamos nos recuperar e nos reposicionar no campo dos direitos humanos. Existem questões que estão colocadas. Volto a dizer, o Brasil não trabalha hoje de maneira satisfatória para ter uma INDH. O Brasil não trabalha hoje para ter uma política de Estado em relação ao RPU. O Brasil não trabalha hoje para ter uma política de incidência que construa uma agenda regional na América Latina em termos de democracia e direitos humanos. Vamos patinar se insistirmos em cartas de intenções ou leis que obriguem a cumprir outra lei. Essa era dos direitos normativos já passou. O que precisamos agora são políticas efetivas, inclusive no próprio campo internacional.

 

JV: Gostaria de acrescentar algo mais?

CN: Acho que foi tudo.

JV: Agradecemos novamente, Carlos, sua contribuição com o Boletim Acauã.

 

Carlos Nicodemos é advogado do NN-Advogados Associados, membro do Conselho Nacional de Direitos Humanos e da Comissão Nacional de Direitos Humanos do CFOAB, presidente da Comissão de Direito Internacional da OAB-RJ e integrante do Movimento Nacional de Direitos Humanos (MNDH).