MUDANÇAS ADMINISTRATIVAS: O DECRETO FEDERAL 7.958 E A COLABORAÇÃO DOS PROFISSIONAIS DE SAÚDE COM O SISTEMA DE JUSTIÇA CRIMINAL

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Dentro da sistemática moderna do Direito Penal brasileiro, a vítima nunca alcançou uma posição de destaque, pois, com o Estado assumindo a responsabilidade de aplicar o jus puniend, muitas vezes, aquela que deveria ser o centro da atenção do processo criminal, acaba sendo considerada tão somente um mero informante ou uma testemunha diferenciada.

Isso ocorre quando o próprio Estado, que ao invés de amparar, consolar e buscar algum tipo de reparação realmente eficaz para aqueles que tiveram algum bem jurídico violado por um crime, acaba sendo o protagonista da sobrevitimização ou vitimização secundária, a qual ocorre quando as agências de controle estatal tratam a vítima com descaso ou desconfiança, fazendo com que ela seja novamente vitimizada, criando um novo sofrimento desnecessário, normalmente de ordem psicológica, em decorrência da dinâmica da Justiça Criminal.

No campo da perícia criminal, requisitada durante a investigação ou processo criminal não é muito diferente, tendo em vista a determinação expressa do próprio Código de Processo Penal (CPP), em seu artigo 158, ao dizer que “quando a infração deixar vestígios, será indispensável o exame de corpo de delito, direto ou indireto, não podendo supri-lo a confissão do acusado”. Desta forma, não se trata de mera faculdade, mas sim de uma imposição legal que as autoridades policiais e o Ministério Público deverão adotar, sob pena de alegação de eventual nulidade processual devido à ausência de justa causa para oferecimento da denúncia, já que, em tese, não teria sido confirmada a materialidade do delito.

Em que pese a boa intenção de tal determinação normativa, a execução da prática, da forma expressa em lei, para construção do exame de corpo delito, nem sempre é possível, muitas vezes por causa da falta de estrutura administrativa, fato em que se agrava ainda mais em crimes de grande que causam lesão corporal, onde o objeto periciado seria o próprio corpo da vítima. É neste momento em que a autoridade encarregada da investigação criminal se encontra de frente a um dilema que deverá ser enfrentado, onde deverá escolher se irá privilegiar que a vítima tenha um atendimento humanizado, encaminhando-a imediatamente ao atendimento de saúde ou submete-la a exame de corpo de delito, seguindo ipsis litteris o determinado no texto legal.

Devemos lembrar que, na realidade, dentre os profissionais que contribuem para apuração de um crime, participando de ocorrências de relevância, mas que permanecem no anonimato, estão aqueles da área da saúde. Já que a utilização de conhecimentos dessa área é imprescindível para o exercício da atividade policial, existindo, inclusive nos quadros de servidores da Polícia Civil e Federal, funcionários com formação acadêmica em medicina para oferecer suporte durante as investigações criminais (POLÍCIA CIVIL DO ESTADO DE SÃO PAULO, 2013).

Formalmente, o perito médico legista, no curso de procedimentos criminais, é o único profissional incumbido de fornecer assessoria técnica e prestar auxílio às autoridades em assuntos relativos à saúde. Todavia, o que ocorre na prática, devido ao limitado número de unidades dos Institutos Médicos Legais (IMLs), normalmente existentes nos grandes centros, as delegacias de pequenas cidades são levadas a se socorrerem, quando necessário, ao auxílio de equipes de saúde do local, como, por exemplo, na retirada de sangue que irá ser periciado de alguém surpreendido dirigindo embriagado ou ainda no fornecimento de fichas de prontuário médico e outros papéis para serem utilizados como provas de lesões corporais de vítimas de crimes violentos ou de acidentes. Tais documentos são encaminhados pelas delegacias aos IMLs para realização de “exame de corpo de delito indireto”, onde o médico legista, o qual deveria realizar atendimento direto à vítima, acaba elaborando o laudo pericial por meio da análise das documentações confeccionadas por outros profissionais de saúde.

Talvez, em casos envolvendo crimes de menor potencial ofensivo, como a lesão corporal culposa ou a lesão corporal dolosa de natureza leve, essa escolha não traga grandes repercussões, devido aos princípios da celeridade, praticidade e informalidade que norteiam o rito sumaríssimo do processo penal, o qual foi inserido pela Lei Federal 9.099/96 (lei que regulamenta os Juizados Especiais Civis e Criminais). Contudo, em se tratando de crimes mais graves, que seguem o rito sumário ou ordinário do direito processual pátrio, como no caso dos crimes sexuais em que há emprego de violência e que causam grande abalo psicológico a vítima, tal decisão não é tão fácil de ser tomada.

Se o acolhimento da vítima trilhar de modo a privilegiar seu atendimento de saúde, a atitude da própria autoridade como o eventual e futuro exame de corpo de delito, realizado em outra oportunidade, de forma indireta, poderão ser questionados durante o processo penal, já que os vestígios não foram diretamente examinados pelos peritos e a construção do laudo não seguirá o rigor expresso em lei, causando verdadeira insegurança jurídica. Já se o caminho adotado for o de submeter a vítima aos processos e burocracias exigidos legalmente, o Estado poderá estar atuando como verdadeiro instrumento de vitimização secundária.
Em que pese à boa vontade de enfermeiros, médicos e outros servidores da saúde, até recentemente não existia previsão legal autorizando que profissionais que não pertençam aos quadros de servidores do sistema de justiça contribuíssem no auxílio à coleta de vestígios.

Neste contexto, com a finalidade de se ter uma melhor prestação de serviço público fornecido pela Administração, além de criar a segurança jurídica necessária, foi editado o Decreto Federal 7.958, de 13 de março de 2013, regulamentando parcialmente a Lei Federal 8.080/90, que estabeleceu diretrizes para o atendimento às vítimas de violência sexual pelos profissionais de segurança pública e da rede de atendimento do SUS, parcela de usuários que necessitam de uma especial atenção para evitar ou diminuir os efeitos e sofrimento psicológico da sobrevitimização causados pelo Estado após a ocorrência do crime (PENTEADO FILHO, 2010).
Atualmente, além de estabelecer expressamente tal possibilidade, pelo menos no tocante aos crimes sexuais, os profissionais de saúde, no atendimento à vítima, deverão proceder à coleta, guarda e transporte dos vestígios encontrados durante o exame clínico, e o posterior encaminhamento do material para a perícia oficial, observando regras e diretrizes técnicas preconizadas pelo Ministério da Justiça e pelo Ministério da Saúde.

Devemos lembrar que, após a implantação de uma nova ordem constitucional em 1988, a década de 90 foi marcada como um período de adaptação a um novo modelo de democracia e pela implantação de políticas públicas destinadas a promover e garantir aos usuários direitos previstos na carta magna. Foi com esta perspectiva que foi publicada a Lei 8080/90, que organizou o SUS, com a proposta de criação de um serviço público de qualidade, igualitário, integral e universal, rompendo com um modelo historicamente marcado por diferenciações e segmentações (MENICUCCI, 2009).

O princípio da integralidade de assistência, definido no Inciso II do artigo 7o da Lei 8.080 como sendo o “conjunto articulado e contínuo das ações e serviços preventivos e curativos, individuais e coletivos, exigidos para cada caso em todos os níveis de complexidade do sistema”, visam dar uma resposta ao sofrimento do usuário que busca o SUS com a prestação de serviços que vão além da mera intervenção biológica, havendo uma constante procura por um modelo mais justo de política pública através de inovações institucionais obtidas na organização dos serviços de saúde e no desenvolvimento de novas tecnologias de assistência de atenção ao paciente (PINHEIRO, 2007).

Desta forma, as propostas trazidas pelo Decreto Federal 7.958 visam à implantação de um atendimento humanizado, que deverá ser alcançado por meio de significantes mudanças nos procedimentos de prestação de serviços públicos no âmbito da saúde e da segurança pública, em uma proposta de esforços conjuntos de dois setores de extrema importância.
No âmbito da saúde, destaca-se a criação de novas atribuições e responsabilidades aos servidores do SUS, entre elas, o acolhimento, anamnese e realização de exames clínicos e laboratoriais, preenchimento de prontuários, escrituração de termo de relato circunstanciado e termo de consentimento Informado e orientação à vítima ou ao seu responsável a respeito de seus direitos, bem como sobre a existência de serviços de referência para atendimento às vítimas de violência sexual.

Ganha destaque a autorização para que os servidores da saúde procedam à coleta, guarda e transporte dos vestígios encontrados durante o exame clínico e o posterior encaminhamento do material para a perícia oficial, observando regras e diretrizes técnicas preconizadas pelo Ministério da Justiça e pelo Ministério da Saúde, quebrando com um paradigma onde tal procedimento sempre foi adotado pelos IMLs, órgão legalmente responsável pela prestação de assessoria técnico-científica em assuntos relativos à saúde, mas que devido às limitações da Administração, normalmente estão instalados em todas as cidades (CROCE, 2011; FRANÇA, 2011).

A provável intenção dessa mudança é a melhora da qualidade das provas produzidas durante a fase de investigação criminal, tendo em vista que o vestígio será coletado com maior rapidez e ainda dentro da própria unidade de saúde, além da diminuição do impacto psicológico da vítima, ao evitar que seja novamente constrangida ao ter que ser imediatamente encaminhada a outro órgão público onde passará pela submissão a novos exames.

Outro ponto importante é a previsão de criação de serviços de referência qualificados para oferecer atendimento às vítimas de violência sexual e que seguirão normas e protocolos adotados pelo Ministério da Saúde e pelo Ministério da Justiça. Em decorrência disso, Ministério da Saúde emitiu a Portaria 528, de 1º de abril de 2013, onde regulamentou o Serviço de Atenção Integral à Saúde de Pessoas em Situação de Violência Sexual, subdividido em serviços especializados de atenção a mulheres, crianças, homens e pessoas idosas em situação de violência sexual, além do Serviço de Atenção à Interrupção de Gravidez nos Casos Previstos em Lei.

A título de comparação, programas de atendimento às vítimas de crimes sexuais envolvendo o acolhimento humanizado, focando na garantia do direito à informação do usuário e na diminuição da vitimização e dos constrangimentos por meio da realização de procedimentos por servidores da saúde que seriam de atribuição de órgãos de persecução criminal, foram implantados em diversas comunidades dos Estados Unidos, onde obtiveram resultados positivos (LITTEL, 2001).

Apesar da publicação do decreto ter sido há alguns anos, na prática, aparenta-se que houve conhecimento, por parte dos profissionais de saúde e de segurança pública, da expedição da nova norma. Todavia, por alterarem de maneira significante a estrutura de ambos setores, acredita-se que essa implantação deva ocorrer de forma gradual, haja vista possíveis dúvidas e incertezas que devam surgir durante o processo. Presume-se que, com a normatização desse tema, haja uma melhor capacitação e profissionalização dos servidores da saúde do SUS que atuarão na coleta de provas, uma vez que até então não passavam de colaboradores ocultos dentro do sistema de persecução criminal.

Por fim, espera-se que o novo modelo de acolhimento humanizado às vítimas de crime sexual diminua a sobrevitimização gerada pelos setores de segurança pública e saúde, onde as atitudes de enfermeiros, médicos e de outros profissionais poderão refletir em uma melhor qualidade dos serviços de perícias forenses, de investigações e de justiça criminal.

 

📌 Referências Bibliográficas:

CROCE, D.; JÚNIOR, D. C. Manual de medicina legal. 8 ed. São Paulo: Saraiva, 2011.
FRANÇA, G. V. Medicina legal. 9 ed. Rio de Janeiro: Guanabara Koogan, 2011. LITTEL, Kristin. Sexual assault nurse examiner (SANE) programs: Improving the community response to sexual assault victims. Washington DC: US Department of Justice, Office of Justice Programs, Office for Victims of Crime, 2001.

MENICUCCI, Telma Maria Gonçalves. O Sistema Único de Saúde, 20 anos: balanço e perspectivas. Cad. Saúde Pública, Rio de Janeiro, v. 25, n. 7, 2009. PENTEADO FILHO, Nestor Sampaio. Manual esquemático de criminologia. São Paulo: Saraiva, 2010.


PINHEIRO, Rosiani. Integralidade em saúde. Ciênc Saúde Coletiva, p. 255-62, 2007.
POLÍCIA CIVIL DO ESTADO DE SÃO PAULO. Manual de polícia judiciária: doutrina, modelos, legislação. 6 ed. São Paulo: Delegacia Geral de Polícia, 2013