- Introdução
O Direito Internacional dos Direitos Humanos (DIDH) busca assegurar dignidade, liberdade e igualdade a todas as pessoas, independentemente de sua nacionalidade ou ocupação. No entanto, o ambiente marítimo apresenta desafios únicos à implementação desses direitos, especialmente devido ao surgimento das bandeiras de conveniência.
A navegação global é vital para o comércio internacional, mas a ausência de regulamentação uniforme permite que embarcações sejam registradas em países com regras permissivas. Essa prática, adotada para reduzir custos e evitar restrições legais mais rígidas, frequentemente resulta na exploração de trabalhadores marítimos e no desrespeito às normas ambientais.
Este artigo analisa como as bandeiras de conveniência impactam os direitos humanos no setor marítimo, destacando os desafios regulatórios, as condições precárias enfrentadas pelos trabalhadores e as responsabilidades das empresas e Estados na garantia de melhores práticas. O estudo se alinha aos princípios da Declaração de Nice, em especial aos Princípios 10 – Direitos dos Trabalhadores Marítimos, e 11 – Proteção Integral para as Tripulações dos Navios, diretrizes internacionais voltadas à proteção da dignidade dos marítimos.
- Bandeiras de Conveniência e sua Relação com os Direitos Humanos
O conceito de bandeira de conveniência refere-se à prática de registrar navios em países que oferecem vantagens fiscais, regulatórias e de fiscalização mínima. Esses registros frequentemente pertencem a nações que possuem pouca ou nenhuma ligação com o proprietário da embarcação. Maiores incidências ocorrem no Panamá, Libéria Ilhas Marshal e Bahamas. Estes países matriculam as embarcações com uma regulamentação marítima mínima, exonerando os armadores de impostos, leis trabalhistas, ambientais, societárias, entre outras (ZANELLA, 2017).
De acordo com Wagner Menezes, quando há o registro do navio no Estado, estabelece-se uma relação jurídica fundamental que acompanhará a embarcação, constituindo-se numa relação autêntica entre o Estado e a embarcação. O Estado fornecerá os documentos pertinentes para que o navio tenha o direito de arvorar sua bandeira, criando com ele um vínculo jurídico (MENEZES, 2015)
A Convenção das Nações Unidas sobre o Direito do Mar (CNUDM) estabelece que deve haver um “vínculo genuíno” entre o Estado de bandeira e o navio registrado. No entanto, muitos países exploram brechas na regulamentação, permitindo o registro de embarcações sem a devida fiscalização.
Os principais problemas decorrentes dessa prática incluem:
- Condições precárias de trabalho: Tripulações são submetidas a jornadas exaustivas sem pausas adequadas para descanso.
- Remuneração abaixo dos padrões internacionais: Trabalhadores muitas vezes não recebem seus salários integralmente ou enfrentam atrasos constantes nos pagamentos.
- Falta de proteção social e trabalhista: A ausência de contratos formais e garantias previdenciárias deixa os marítimos vulneráveis.
- Trabalho forçado e tráfico humano: Casos de tripulações abandonadas em alto-mar sem recursos ou assistência são recorrentes.
- Degradação ambiental: Navios de bandeira de conveniência frequentemente desrespeitam normas ambientais, descartando resíduos no oceano sem controle adequado.
De acordo com a International Transport Workers’ Federation (ITF), um dos principais desafios enfrentados pelos trabalhadores marítimos sob bandeiras de conveniência é a falta de um sistema eficiente de fiscalização. Os países de registro muitas vezes não possuem estrutura suficiente para inspecionar as condições das embarcações e garantir a aplicação das leis internacionais (ITF, 2024).
Além disso, a fragmentação das responsabilidades dificulta a aplicação da justiça. Muitas violações passam impunes porque os navios operam em águas internacionais, tornando complexa a definição de qual Estado deve intervir para garantir os direitos dos trabalhadores.
- Desafios do DIDH nas Bandeiras de Conveniência
A ausência de regulamentação eficaz no contexto das bandeiras de conveniência tem permitido uma série de violações de direitos humanos. Entre os desafios mais críticos estão:
3.1. Exploração dos trabalhadores marítimos
A precarização das condições de trabalho a bordo de navios registrados sob bandeiras de conveniência é uma realidade alarmante. A tripulação frequentemente é composta por trabalhadores oriundos de países em desenvolvimento, onde o desemprego e a pobreza os levam a aceitar contratos abusivos.
Muitos desses trabalhadores relatam jornadas superiores a 16 horas diárias, falta de acesso a alimentação adequada e água potável, instalações sanitárias precárias e ausência de atendimento médico emergencial (URBINA, 2021). Esses fatores resultam em elevados níveis de estresse físico e mental, além de um número crescente de acidentes e doenças ocupacionais.
3.2. Falta de proteção contra demissões arbitrárias e abandono
Marítimos empregados sob bandeiras de conveniência frequentemente enfrentam demissões sem justa causa e sem qualquer tipo de indenização. Além disso, há diversos casos noticiados de tripulações abandonadas em portos estrangeiros sem meios de subsistência, obrigadas a sobreviver com doações e assistência de organizações humanitárias.
Segundo a Organização Internacional do Trabalho (OIT), o abandono de tripulações tem aumentado nos últimos anos, principalmente devido à falta de mecanismos internacionais eficazes para responsabilizar os empregadores.
3.3. Segurança negligenciada
A ausência de regulamentação rígida sobre segurança a bordo leva a um alto índice de acidentes marítimos. Muitos navios operam com equipamentos de segurança inadequados ou obsoletos, e a tripulação raramente recebe treinamento adequado para lidar com emergências.
Casos de incêndios, naufrágios e vazamentos de substâncias tóxicas são comuns em embarcações operando sob bandeiras de conveniência. Além dos riscos para os marítimos, essa negligência compromete o meio ambiente marinho e as comunidades costeiras.
3.4. Impacto ambiental e impunidade
A falta de fiscalização ambiental faz com que navios com bandeira de conveniência descartem resíduos de óleo e produtos químicos diretamente no oceano, contribuindo para a degradação dos ecossistemas marinhos.
Países que aceitam registros de conveniência muitas vezes ignoram denúncias de práticas ambientais prejudiciais, dificultando a responsabilização dos proprietários das embarcações.
- Responsabilidade das Empresas e Regulação Internacional
Para garantir a proteção dos direitos dos trabalhadores marítimos e a preservação do meio ambiente, é fundamental o fortalecimento das regulamentações internacionais.
4.1. O papel das empresas na promoção dos direitos humanos
As empresas de transporte marítimo devem adotar políticas de due diligence em direitos humanos, garantindo que seus trabalhadores tenham acesso a contratos justos, condições seguras de trabalho e salários dignos. Entre as boas práticas recomendadas, estão:
- Realização de auditorias regulares nas condições de trabalho a bordo dos navios.
- Adoção de políticas de transparência, incluindo relatórios públicos sobre a conformidade com padrões internacionais.
- Engajamento com sindicatos e organizações de defesa dos direitos dos marítimos para garantir melhores condições de trabalho.
4.2. Regulamentação internacional e medidas de fiscalização
Diversas organizações internacionais têm se dedicado a combater as violações de direitos humanos nas bandeiras de conveniência. Entre as principais iniciativas, destacam-se:
- A Declaração de Nice sobre Direitos Humanos no Mar, que enfatiza a necessidade de garantir dignidade e segurança a todos os marítimos.
- Os Princípios 10 e 11 da Declaração sobre Direitos Humanos no Mar:
- O Princípio 10 determina que os Estados devem adotar medidas para impedir que seus registros marítimos facilitem o tráfico humano e a exploração laboral.
- O Princípio 11 reforça que os Estados têm a obrigação de fiscalizar a conformidade das embarcações registradas com normas de trabalho decente.
- Conclusão
As bandeiras de conveniência representam um grande obstáculo para a efetivação dos direitos humanos no setor marítimo. A ausência de fiscalização adequada permite a exploração dos trabalhadores, violações ambientais e práticas abusivas por parte de empregadores.
A Declaração de Nice e os Princípios 10 e 11 representam avanços na proteção dos direitos dos marítimos, mas é necessário um compromisso global para que esses princípios sejam implementados de maneira eficaz.
Somente por meio da cooperação entre Estados, empresas e organizações internacionais será possível garantir que todos os trabalhadores marítimos sejam tratados com dignidade e respeito, independentemente da bandeira sob a qual navegam.
- Referências
INTERNATIONAL TRANSPORT WORKERS FEDERATION. ITF, 2024. Seafarers pay the price for the murky business of shipp. Disponível em https://www.itfglobal.org/en/news/seafarers-pay-price-murky-business-ship-nationality. Acesso em 31 jan. 2025.
MENEZES, Wagner. O Direito do Mar. Brasília: FUNAG, 2015.
URBINA. Ian. Oceano sem lei: jornadas pela última fronteira selvagem. Tradução de Livia de Almeida. Rio de Janeiro: Intrínseca, 2021.
ZANELLA, Tiago Vinícius. Manual de Direito do Mar. Belo Horizonte: Editora D’Plácido, 2017.

O Professor Marcelo Neves é Juiz Suplente do Tribunal Marítimo. Diretor Executivo da Sociedade Brasileira de Direito Internacional (SBDI); Doutorando em Estudos Marítimos na Escola de Guerra Naval; Mestre em Direito Ambiental pela Universidade Católica de Santos; Pós-graduado em Direito Empresarial, Área de Concentração em Direito Marítimo pela FGV/RJ; Professor de Direito Marítimo na Escola de Formação de Oficiais da Marinha Mercante (EFOMM/RJ). Professor colaborador no Curso de Pós-Graduação em Direito Marítimo da Maritime Law Academy. Advogado.