A extensão da plataforma continental brasileira na margem equatorial e os Direitos Humanos – Princípios 13 e 18 da Declaração de Nice
Escrito por André Centurión Vicéncio
Crédito: Petrobras
- Introdução
Em 16 de junho de 2023, a Marinha do Brasil mobilizou uma complexa operação de busca e salvamento após o naufrágio do barco pesqueiro “BP Safadi Seif” a 40 km da costa de Santa Catarina. Com o emprego de navios-patrulha, uma aeronave Super Cougar e equipes terrestres, a Força resgatou cinco tripulantes com vida no dia seguinte e um sexto náufrago dois dias depois, demonstrando tanto a capacidade quanto os desafios do SAR. Este incidente reforça o fato de que o recente reconhecimento da ampliação da plataforma continental brasileira na Margem Equatorial, aprovada pela Comissão de Limites da Plataforma Continental (CLPC) em 27 de fevereiro de 2025, transcende à conquista territorial e rememora responsabilidades humanitárias e econômicas na região.
Fundamentada no artigo 76 da Convenção das Nações Unidas sobre o Direito do Mar (UNCLOS/CNUDM), a decisão reconhece a soberania funcional do Brasil sobre recursos do leito e subsolo marinho no Atlântico Equatorial. Contudo, em um contexto de crescente migração marítima e exploração de recursos offshore, como conciliar a soberania funcional com a proteção da dignidade humana no mar? Como o Brasil deve estar apto para garantir o cumprimento das suas obrigações de assistência humanitária e de implementação de uma economia azul inclusiva na Margem Equatorial? Este estudo defende que o reconhecimento da extensão da plataforma continental coloca à luz os deveres do Brasil de SAR (Princípio 13 da Declaração de Nice) e de gestão equitativa de recursos (Princípio 18), alinhados à agenda da UNOC Nice 2025. A análise contribui para o debate sobre a governança oceânica, destacando o Brasil como ator relevante em um multilateralismo que, como afirma WAGNER MENEZES (2025), é “o principal instrumento para garantir que países em desenvolvimento tenham acesso a mecanismos jurídicos de defesa de seus direitos“.
O texto está estruturado em três partes: a soberania funcional e o Direito Internacional, as obrigações de SAR e a construção de uma economia azul inclusiva. A metodologia combina análise jurídica da CNUDM e da Declaração de Nice com estudos de caso como o brasileiro e dados empíricos.
- Soberania Funcional e o Papel do Direito Internacional
Fruto de um primoroso trabalho da Comissão Interministerial para os Recursos do Mar (CIRM) através de seus membros – com especial destaque para a Casa Civil, Ministério das Relações Exteriores, Ministério da Defesa, Marinha do Brasil, Ministério do Meio Ambiente e Ministério de Minas e Energia – capitaneados pela Autoridade Marítima Brasileira, o reconhecimento da extensão da plataforma continental do Brasil pela CLPC confirma o atendimento aos critérios científicos estabelecidos pelo art. 76 da CNUDM, mediante dados morfológicos, geológicos e sedimentares, projetando-se além das 200 milhas que configuram o limite da Zona Econômica Exclusiva (ZEE). Assim, nos termos do § 8º do art. 76, os limites fixados com base nas Recomendações da CLPC são definitivos e obrigatórios em Direito Internacional. Contudo, a soberania exercida sobre a plataforma continental estendida é funcional, de cunho econômico (BEIRÃO, 2015), limitada à exploração de recursos naturais do leito e subsolo, não envolvendo direitos plenos de jurisdição sobre a coluna d’água.
Neste sentido, no que toca aos limites exteriores da plataforma continental na Margem Equatorial Brasileira, importa consignar que a Recomendação da CLPC estabelece que seja realizada de acordo com o § 7º do art. 76 da Convenção, por meio de linhas retas que não excedam 60 milhas náuticas de comprimento, “in order not to prejudice maritime boundary delimitation between Brazil and France, the Commission does not recommend on establishment of the outer limits in this area” (UNITED NATIONS, 2025, item 78), o que reflete a necessidade de cooperação jurídica internacional. Nesse contexto, a Déclaration franco-brésilienne sur la protection des océans (2024) ao afirmar que “Le Brésil et France, pays voisins, terrestres comme maritimes, grâce la Guyane française, sont deux nations océaniques et maritimes. Ils partagent dans ce cadre une responsabilité particulière de protection de l’Océan et de gestion durable des ressources” (FRANCE, 2024) ressalta importante parceria que fortalece a governança oceânica conjunta. Pautado nessas premissas, a participação ativa do Brasil na UNOC Nice 2025 pode – e deve – ser determinante para consolidar um modelo de gestão sustentável, promovendo acordos multilaterais que beneficiem países em desenvolvimento, em especial na América do Sul.
Conforme afirma Menezes (2025), “esse reconhecimento internacional projeta a doutrina da “Amazônia Azul” para o centro do debate sobre soberania e desenvolvimento sustentável” tendo como esteio o Direito Internacional, reconhecido pelo autor como importante instrumento de alcance concreto destes fins e reforçado pelo compromisso dos Presidentes ao afirmarem que “le Brésil et la France soutiendront les initiatives académiques qui favorisent le développement du droit international et du droit de la mer” (FRANCE, 2024).
- Assistência Humanitária no Mar e o Desafio do SAR na Margem Equatorial
O Princípio 13 da Declaração de Nice reafirma a obrigação de todos os navios de prestar assistência a pessoas em perigo no mar, bem como a responsabilidade dos Estados costeiros de manter serviços de busca e salvamento (SAR) eficazes. A ampliação da plataforma continental na Margem Equatorial reforça a necessidade de reforço estrutural de suas capacidades de SAR em áreas remotas, com oceanografia complexa, baixa densidade demográfica costeira e limitado apoio logístico onshore. Trabalhadores da indústria offshore, pescadores artesanais, embarcações em trânsito e migrantes vulneráveis são potenciais beneficiários dessas obrigações humanitárias.
Embora a soberania funcional da plataforma estendida não equivalha à plena jurisdição territorial, a proteção de direitos humanos no mar pode ser legitimamente compreendida à luz de uma interpretação evolutiva do art. 98 da CNUDM, reforçada por instrumentos de soft law como a Declaração de Nice (DECLARAÇÃO DE NICE, 2024). Neste contexto, a parceria franco-brasileira para intercâmbio de boas práticas em regiões ultramarinas representa oportunidade para aprimorar a cooperação transfronteiriça em matéria de busca e salvamento, integrando considerações humanitárias à prática operacional. Não obstante, importa reconhecer que a eventual cooperação neste sentido ocorre em contexto de assimetrias estruturais.
Conforme dados oficiais da Marinha do Brasil, que opera o SAR na região por intermédio do Salvamar Norte, sediado em Belém (4º Distrito Naval) , “a média do custo diário de uma operação SAR pode variar, pois depende dos meios empregados. Ela engloba valores de dias de mar, de horas de voo, custos com materiais comuns de cada navio e aeronave, e manutenção ou ajustes de cada um deles. No caso das buscas aos náufragos do incidente no Sul do País, (…) um desses navios, por exemplo, tem custo diário superior a R$ 44 mil e da aeronave UH-15 pode chegar a cerca de R$ 50 mil por hora. Outros exemplos são os navios da Classe “Macaé”, cujos custos são superiores a R$ 79 mil por dia. Já os custos de um Navio-Patrulha Oceânico, que possui grande autonomia e capacidade de operar com um helicóptero e duas lanchas, chega a R$ 262,7 mil. (…). Por sua vez, uma Fragata Classe “Niterói” tem um custo diário médio de R$ 443,2 mil, por se tratar de um navio maior, mais rápido e com capacidade para receber um helicóptero Westland Lynx (SAH-11)” (AGÊNCIA MARINHA DE NOTÍCIAS, 2023).
Assim, conforme cita Menezes (2025) “a Marinha do Brasil precisará de investimentos que garantam a segurança e a integridade das águas jurisdicionais”, além de capacidade operacionais de garantir a plena observância do Princípio 13 da Declaração de Nice pelo Brasil.
- Economia Azul Inclusiva e Equidade na Exploração
O Princípio 18 reafirma a necessidade de promover o uso sustentável dos recursos vivos e não vivos do mar, aumentando os benefícios para pequenos Estados insulares, países em desenvolvimento e povos vulneráveis. A área reconhecida pela CLPC na Margem Equatorial é potencialmente rica em hidrocarbonetos, minerais e biodiversidade profunda. A exploração desses recursos deve respeitar os princípios de sustentabilidade, precaução ambiental e equidade distributiva. Neste passo, se faz necessário que o Brasil desenvolva políticas costeiras e marítimas que envolvam as comunidades do Norte e Nordeste, consolidando uma economia azul inclusiva. Para tal, o Planejamento Espacial Marinho (PEM), previsto no XI Plano Setorial para os Recursos do Mar (PSRM), aprovado pelo Decreto nº 12.363, de 17 de janeiro de 2025, é essencial para uma economia azul inclusiva.
Considerando que em 2023, o mar contribuiu com 19% do PIB brasileiro – valores na ordem de R$ 2,1 trilhões/ano – em setores como petróleo e gás, pesca, biotecnologia e extração mineral (MARINHA DO BRASIL, 2023), o PEM, que busca “estabelecer as bases institucional, estratégica, normativa e regulatória que possam ser utilizadas em apoio ao processo de tomada de decisão relacionado ao uso do mar e ao seu ordenamento e conservação” (BRASIL, 2025), garante o uso harmônico dessas riquezas, promovendo conservação ecossistêmica e segurança jurídica para investimentos, sendo ferramenta com potencial de concretização do Princípio 18 da Declaração de Nice em benefício das comunidades do Amapá e do Pará.
Ademais, indo além da mera perspectiva interna e tendo por norte uma necessária perspectiva sulamericana, o PEM brasileiro deve inspirar e se inspirar em iniciativas regionais, a exemplo do Pampa Azul, do novo mapa marítimo do Uruguai e do Programa Oceânico do Chile (ARGENTINA, 2023; CHILE, 2023; URUGUAI, 2023). A troca de experiências – no nível acadêmico, empresarial e governamental – sobre o uso do mar fortalecem a governança oceânica na América do Sul, promovendo a conservação e o desenvolvimento sustentável de toda a região, inclusive de países não-costeiros como Bolívia e Paraguai.
- Considerações Finais
A extensão da plataforma continental brasileira na Margem Equatorial, reconhecida pela CLPC em 2025, é mais do que uma conquista jurídica territorial: é um reforço de um compromisso com a proteção da vida e com a equidade no mar. Integrando as obrigações de busca e salvamento do Princípio 13 da Declaração de Nice, exemplificadas pela operação do “BP Safadi Seif” que resgatou seis náufragos, e a economia azul inclusiva do Princípio 18, impulsionada pelo Planejamento Espacial Marinho (PEM), o Brasil pode redefinir a governança oceânica. A presença ativa na UNOC Nice 2025, apoiada na cooperação com a França e na troca de experiências regional na América do Sul permitirá construir uma hermenêutica moderna à UNCLOS/CNUDM e manejar normas de soft law para direitos humanos e sustentabilidade. Como destaca Menezes (2025, p. 1), “o multilateralismo é o principal instrumento” para países em desenvolvimento. E o Brasil, com o PEM, está posicionado para assumir o seu papel de ator relevante em um modelo regional de gestão oceânica que equilibre soberania, dignidade humana e desenvolvimento sustentável.
REFERÊNCIAS
AGÊNCIA MARINHA DE NOTÍCIAS. Marinha do Brasil resgata 272 pessoas no mar e rios em 2023. Agência Marinha de Notícias, 2023. Disponível em: https://www.agencia.marinha.mil.br/. Acesso em: 30 abr. 2025.
ARGENTINA. Pampa Azul. Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação, 2023. Disponível em: https://www.pampazul.gob.ar/. Acesso em: 30 abr. 2025.
BEIRÃO, André Panno. Duelo entre Netuno e Leviatã: a evolução da soberania sobre os mares. Revista da Escola de Guerra Naval, Rio de Janeiro, v. 21, n. 2, p. 61-87, jul./dez. 2015. Disponível em: https://portaldeperiodicos.marinha.mil.br/index.php/revistadaegn/article/view/4542/4393. Acesso em: 30 abr. 2025.
BRASIL. Decreto nº 12.363, de 17 de janeiro de 2025. Aprova o XI Plano Setorial para os Recursos do Mar. Diário Oficial da União, Brasília, 18 jan. 2025.
CHILE. Programa Oceânico 2023. Ministério das Relações Exteriores, 2023. Disponível em: https://www.minrel.gob.cl/minrel/site/docs/20230714/20230714170715/programa_oceanico_2023.pdf. Acesso em: 30 abr. 2025.
CONVENÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS SOBRE O DIREITO DO MAR (CNUDM). Montego Bay, 1982.
DECLARAÇÃO DE NICE SOBRE DIREITOS HUMANOS NO MAR. Nice, 2025.
DECLARAÇÃO FRANCO-BRASILEIRA SOBRE A PROTEÇÃO DOS OCEANOS. Paris: Présidence de la République, 19 nov. 2024. Disponível em: https://www.elysee.fr/emmanuel-macron/2024/11/19/declaration-franco-bresilienne-sur-la-protection-des-oceans. Acesso em: 30 abr. 2025.
MARINHA DO BRASIL. Planejamento Espacial Marinho. Secretaria da Comissão Interministerial para os Recursos do Mar, 2023. Disponível em: https://www.marinha.mil.br/secirm/pt-br/psrm/pem. Acesso em: 30 abr. 2025.
MENEZES, W. A ampliação da plataforma continental brasileira e o Direito Internacional. JOTA, 27 abr. 2025. Disponível em: https://www.jota.info/artigos/a-ampliacao-da-plataforma-continental-brasileira-e-o-direito-internacional. Acesso em: 21 jan. 2025.
UNITED NATIONS. Recommendations for Brazil (article 76, paragraph 8). Commission on the Limits of the Continental Shelf, 2025. Disponível em: https://www.un.org/depts/los/clcs_new/submissions_files/bra04/Summary_Recommendations_Brazil.pdf. Acesso em: 30 abr. 2025.
UNITED NATIONS OCEAN CONFERENCE (UNOC) NICE 2025. Disponível em: https://unocnice2025.org/en/. Acesso em: 21 jan. 2025.
URUGUAI. Autoridades apresentam novo mapa marítimo do Uruguai. Presidência da República, 2023. Disponível em: https://www.gub.uy/presidencia/comunicacion/noticias/autoridades-presentaron-nuevo-mapa-maritimo-uruguay. Acesso em: 30 abr. 2025.

André Centurión Vicéncio é Oficial de Direito de carreira da Marinha do Brasil, atualmente no posto de Capitão-Tenente. Chefe da Assessoria para Assuntos Jurídicos da Secretaria da Comissão Interministerial para os Recursos do Mar – SECIRM. LL.M (Master of Laws) em Direito do Estado e Regulação pela FGV Direito Rio e Pós-Graduação em Direito Internacional do Mar e Direito Marítimo pela PUC-Minas (em curso). Bacharel em Direito pela Universidade Gama Filho – UGF. Curso de Direito International para os Conflitos Armados (CDICA) pela Escola Superior de Defesa – ESD. Pesquisador do Centro de Estudos em Direito do Mar “Vicente Marotta Rangel” da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (CEDMAR/USP).