A PRIMAZIA DOS DIREITOS HUMANOS NO MAR NO CONTEXTO DA GUERRA MODERNA

Em um relatório divulgado pela Marinha dos Estados Unidos da América no início de 2025, consta uma curiosa imagem na qual o destroyer USS Preble dispara um enorme armamento a laser durante um exercício militar. Enquanto isso, drones navais vêm sendo empregados tanto contra navios de guerra, quanto contra embarcações civis em meio ao teatro de operações do Mar Negro, além de estarem presentes nos ataques às frotas mercantes por grupos terroristas do Iêmen.

Isso mostra como a crescente sofisticação dos armamentos e a automação dos sistemas de combate transformam em realidade cenários antes restritos à ficção científica, redefinindo a forma como os conflitos ocorrem no meio marítimo. Nesse contexto, tendo em vista os esforços para a assinatura conjunta de uma Declaração que tem como princípios a primazia dos Direitos Humanos no mar e a manutenção da paz no mar, torna-se necessário discutir como o uso da força pode ser regulado de modo a garantir a proteção de direitos básicos de combatentes, civis e náufragos em um eventual contexto de beligerância.

Diante desse cenário, surge uma questão fundamental: o Direito Internacional Humanitário está preparado para responder a esses avanços tecnológicos que vêm remodelando a dinâmica do uso da força no mar? A partir do presente questionamento, busca-se analisar a regulação de viés humanitário existente sobre dois temas pontuais: a) as armas de energia direcionada; e b) o emprego de drones militares em conflitos marítimos.

 

Armas de Energia Direcionada

 

As armas laser, sempre presente em filmes e livros de alta ficção científica, pareciam pertencer a um futuro bastante distante. Contudo, protótipos avançados de canhões de “energia direcionada” já vêm sendo implementados em navios de guerra de países como os Estados Unidos e a Grã-Bretanha.

Inicialmente, essas armas tinham como objetivo apenas a desorientação dos sensores ópticos de drones e mísseis, mas, já se noticia que os modelos recentes são capazes de superaquecer e trespassar a estrutura metálica de seus alvos para destruí-los.

De acordo com a Marinha estadunidense, por exemplo, o canhão HELIOS – sigla para High Energy Laser and Integrated Optical Dazzler and Surveillance – seria capaz de interceptar mísseis e drones em pleno voo, já que os feixes de energia direcionada alcançam velocidades incomensuravelmente mais rápidas do que os armamentos comuns, além de não representar um gasto de munição. No entanto, quais as consequências de um eventual uso desses equipamentos contra alvos tripulados, como aviões e embarcações de pequeno porte?  

Segundo o “Commander’s Handbook on The Law of Naval Operations” (adiante Manual), manual da marinha estadunidense sobre questões jurídicas atinentes às operações navais, o principal impacto humanitário das armas de energia direcionada são os danos a visão, pois, ainda que os lasers não sejam apontados diretamente a seres humanos dentro de uma aeronave ou embarcação tripulada, podem causar sérios danos aos olhos, podendo até mesmo cegar permanentemente.

Nesse sentido, o Anexo IV da Convenção de Genebra sobre a Proibição de Certas Armas Convencionais, apesar de proibir o emprego de armas laser que têm como intuito cegar o inimigo, não proíbe o uso de armamentos de energia direcionada que possam causar, de forma incidental, danos a visão de outros indivíduos. Vejamos o tratamento do tema do Manual:

 

Embora o cegamento como efeito acidental do emprego militar legítimo de lasers não seja proibido pelo Protocolo IV, as partes são obrigadas a tomar todas as precauções possíveis para evitar tais ferimentos. Não são proibidas as armas laser utilizadas para combater o equipamento ótico adversário que provoque cegueira permanente acidental. (2024, p. 1086)

 

Tal proibição deriva do princípio do Direito Internacional Humanitário que prega a proibição ao sofrimento desnecessário e desproporcional em conflitos armados. Esse princípio estabelece que o emprego de armas ou de operações cujo dano a civis seja excessivo em relação à vantagem militar obtida deve ser expressamente proibido.

Contudo, a margem de interpretação deixada pelo texto do tratado acima discutido levanta questões acerca da real eficácia da norma, visto que basta justificar que os danos eventualmente causados à visão de combatentes inimigos e civis possuem natureza incidental para que seja desconstituída eventual transgressão.

Diante disso, vale refletir se não seria cabível a proibição do uso de armas laser contra aeronaves e embarcações militares ou de inteligência tripuladas. Nesse cenário, não só se garante o direito de empregar a tecnologia bélica desenvolvida de modo a conter ataques de drones e mísseis cuja velocidade de locomoção é alta demais para que sejam repelidos por munição convencional, como também evita o passivo humanitário gerado por eventuais danos à visão de tripulações inteiras.  

 

Uso de Drones Militares e a Fragilização da Paz no Mar

O emprego de drones no combate naval tem se tornado cada vez mais frequente, redefinindo a dinâmica do uso da força no mar. No Mar Vermelho, os Houthis, grupo terrorista do Iêmen, têm utilizado drones aéreos e navais para atacar embarcações comerciais, ameaçando rotas estratégicas e afetando a segurança da navegação global. Já no conflito entre Rússia e Ucrânia, drones navais de superfície foram empregados contra navios russos no Mar Negro, demonstrando a capacidade de pequenas embarcações não tripuladas de infligir danos significativos à frota inimiga.

Esses casos evidenciam o desenvolvimento de um preocupante: a redução do limiar para o uso da força pelo barateamento de operações até então tidas como complexas e a desumanização das ações tornam a manutenção da paz no mar, tida como princípio do da Declaração de Nice sobre Direitos Humanos no Mar, cada vez mais fácil de ser abaladas.

Isso se dá porque a introdução de drones no campo de batalha remove a necessidade de operadores humanos diretamente envolvidos nos ataques. Diferentemente de embarcações ou aeronaves tripuladas, que exigem decisões estratégicas ponderadas devido ao risco à vida dos próprios tripulantes, drones podem ser lançados sem a mesma hesitação. Isso diminui a barreira psicológica para o uso da força, tornando mais fácil a execução de ataques, mesmo em cenários onde a proporcionalidade e a necessidade da ação poderiam ser questionáveis.

Além disso, o barateamento e a disponibilidade dos drones tornam sua utilização uma opção tentadora para ataques preventivos ou retaliatórios, sem as mesmas consequências diplomáticas de um confronto direto com meios tripulados. Assim, há uma erosão da proibição do uso da força, pois, tanto os Estados, quanto grupos não estatais, passam a empregar drones em ataques que, em outras circunstâncias, poderiam ser evitados devido ao risco de escalada.

 

Conclusões

A modernização dos conflitos navais, impulsionada por avanços tecnológicos como a proliferação de armas laser e pelo uso cada vez mais corriqueiro de drones, desafia os pilares tradicionais do Direito Internacional Humanitário, o imperativo da proibição do uso da força previsto no artigo 2 (4), da Carta das Nações Unidas e a própria manutenção da paz no mar.

A flexibilidade interpretativa das normas existentes, conforme exposto no caso da brecha aberta pela proibição branda do uso de armas à laser pelo Anexo IV da Convenção de Genebra, permite que os danos desnecessários à visão de embarcações e aeronaves tripuladas, sejam elas militares ou civis, sejam considerados legais, caso a sua natureza seja comprovada incidental. Além disso, a automação dos sistemas de combate e a redução do custo operacional dos drones diminuem o limiar psicológico e econômico para o rompimento da paz no mar e a proliferação do uso da força, tornando confrontos armados mais frequentes e menos sujeitos a barreiras diplomáticas.

Diante desse cenário, a regulamentação do emprego dessas novas tecnologias é essencial para garantir que a primazia dos Direitos Humanos no mar não seja relegada a um ideal abstrato, mas sim um princípio efetivamente protegido. Isso demanda esforços internacionais para atualizar as normativas existentes e preencher as lacunas que permitem a desumanização do combate e a escalada descontrolada da violência no ambiente marítimo. Somente assim será possível equilibrar a inevitável evolução tecnológica da guerra com a preservação dos princípios fundamentais do Direito Internacional.

 

Referências

 

KRASKA, J.; PEDROZO, R.; SCHMITT, M. Annotated Supplement to the Commander’s Handbook on the Law of Naval Operations. International Law Studies. Vol. 102, Special Issue, 2024. pp. 1-1224. Disponível em: International Law Studies | Vol 102 | Iss 1

 

KRASKA, J. (et. al.). The Newport Manual of the Law of Naval Warfare. Newport: Stockton Center for International Law. 2023 Disponível em: “The Newport Manual on the Law of Naval Warfare” by James Kraska, Raul “Pete” Pedrozo et al.

Eduardo Navarro é Bacharel em Direito Pela Universidade Estadual de Londrina (UEL); Pós Graduando em Direito Marítimo e Portuário pela Maritime Law Academy (MLaw); Pesquisador do Centro de Estudos em Direito do Mar Vicente Marotta Rangel (CEDMAR/USP). Membro da linha de pesquisa Segurança da Navegação.