Comissão da Verdade Universidade de São Paulo

Professores

Sérgio Ferro. Depoimento elaborado para a CV/USP:

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A FAUUSP e a Ditadura Militar

 

 Logo após o 1° de Abril de 1964, o reitor Gama e Silva nomeia uma comissão não oficial composta por professores para investigar « atividades subversivas » na USP (Universidade de São Paulo). Na FAUUSP (Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo), esta comissão denuncia os professores João Batista Villanova Artigas e Abelardo Reidy de Souza, e o estudante Silvio Barros Sawaia. Afora os professores Paulo Duarte e Florestan Fernandes, quase ninguém  protesta. O Conselho Universitário aprova uma moção apresentada pelo professor Alfredo Buzaid de apoio à comissão. Votam contra somente os professores Erasmo Garcia Mendes e Valter Colli, representantes dos ex-alunos e auxiliares de ensino. Todos os catedráticos votam a favor. A comissão é, deste modo, « legalizada ».

No segundo semestre de 1964, são instaurados os IPM (Inquéritos Policiais-Militares). Na FAUUSP ocorrem durante o perído letivo nas salas de aula requisitadas para este fim. O professor João Batista Villanova Artigas, fundador, programador e principal arquiteto da FAUUSP, é indiciado e preso diante de professores, alunos e funcionários. O professor Abelardo Reidy de Souza também é indiciado. Os dois serão posteriormente « inocentados ».

Os assistentes de ensino Rodrigo Brotero Lefèvre e Sérgio Ferro são interrogados na sala em que ensinavam.

Não houve nenhum protesto por parte USP, nem da FAUUSP.

Em 1969, são aposentados compulsoriamente: em 29 de Abril, o professor João Batista Villanova Artigas; em 30 de Abril, os professores Jon Andoni Vergareche Maitrejean e Paulo Mendes da Rocha. Afora o professor Ernst Wolfgang Hamburger, não houve quem protestasse por parte da USP, nem da FAUUSP.

Em 02.12.1970, os professores Rodrigo Brotero Lefèvre e Sérgio Ferro são presos pela OBAN. Uma comissão composta por representantes do IAB (Instituto de Arquitetos do Brasil), da FAUS (Faculdade de Arquitetura e Urbanismo de Santos, da qual os dois professores são também fundadores) e da FAUUSP dirige-se à OBAN para informar-se sobre as prisões. Apesar dos evidentes sinais de torturas praticadas nos dois professores, a comissão retira-se sem nada comentar,  nem então, nem depois.

Não houve nenhum protesto por parte da USP, nem da FAUUSP.

Em 02.12.1971, os professores Rodrigo Brotero Lefèvre e Sérgio Ferro são liberados sob condições. Apesar de ainda serem oficialmente professores da FAUUSP, não são inscritos no programa de ensino do ano de 1972. Não são nem « aposentados », nem encarregados de nenhuma atividade pela FAUUSP. O professor Sérgio Ferro, sem nenhum trabalho (salvo um artigo para a revista Veja), deixa o País com autorização da 2° Auditoria Militar. Seu contrato de trabalho com a FAUUSP expira  silenciosamente em dezembro de 1973. Pouco depois, o professor Rodrigo Brotero Lefèvre é reintegrado à FAUUSP graças a um processo que move contra a USP.

Ausente desde 1972 do Brasil, eu, Sérgio Ferro, não tenho conhecimento de nenhuma declaração oficial ou de alguma ação clara que demonstre  repúdio por parte da USP ou da FAUUSP com relação a inquéritos, prisões, torturas ou assassinato perpetrados contra professores, alunos e funcionários destas instituições. Espero que me engane. Entretanto posso afirmar que nem o professor Rodrigo Brotero Lefèvre, nem eu, nunca recebemos nenhuma palavra destas instituições condenando ou lamentando o que aconteceu conosco, nem propondo reintegração ou qualquer medida de reparação. A mesquinhez e a indiferença chegam ao ponto de não me atribuirem a pequena aposentadoria a que tenho direito.

O silêncio da USP e da FAUUSP quanto às suas lamentáveis atitudes durante a Ditadura faz delas aliadas objetivas de seus crimes.

                                                                                                         Grignan, maio de 2015

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Sérgio Ferro. 

Declaração realizada por ocasião do Lançamento do Livro Artes plásticas e trabalho livre – de Dürer a Velázquez, de Sérgio Ferro, no dia 5 de março, no Centro Universitário Maria Antonia, em debate apresentado entre o autor e os professores Roberto Schwarz e Jens Baumgarten. Segue a transcrição do vídeo:

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“Antes de começar a falar de arte, do livro sobre o renascimento até o século 16,  eu tenho o dever, como é a primeira vez que volto a essa escola da rua Maria Antônia, há cerca de 50 anos, não me lembro mais, eu sinto-me no dever de fazer algumas reclamações em relação à instituição que tem a gentileza hoje de me receber. Sei que o que eu vou dizer tem muito pouca relação  com as pessoas que hoje trabalham aqui e com as pessoas que hoje dirigem essa casa e dirigem a Universidade de São Paulo, mas eu não posso, em função de certas coisas que vivemos aqui, nessa casa, e de muitos alunos que conheci aqui, professores e funcionários, enfim, eu não posso ficar quieto.

Eu me lembro que em 1964, assim que os militares tomaram o poder, eles vieram à filosofia da Maria Antônia, como vieram à FAU, sem nenhum pudor, entraram, sentaram os rabinhos respectivos nas cadeiras dos professores, convocaram professores, alunos e funcionários para um questionário sobre opiniões políticas, sobre o que pensavam, sobre o que não pensavam. A nova geração, a minha, naquele momento, achava aquilo de um ridículo total, mas os professores mais antigos, os fundadores dessas escolas, julgaram ter a obrigação de ter um outro tipo de posição. E eu me lembro a tristeza enorme que nós tivemos na FAU quando aqueles cretinos escoltaram o professor Artigas, que tinha fundado, tinha criado a escola, levando-o preso a partir da sala de aula na qual ele ensinava. A nobre instituição da Universidade de São Paulo não disse nada.

Pouco tempo depois, alunos, professores, começaram a ser afastados, alguns desapareceram, começou a haver uma certa perseguição, muitos cassados,  muitos impedidos de ensinar, e isso foi aumentando. A gravidade dos fatos foi aumentando, começaram a aparecer assassinatos violentos. Me lembro de um aluno aqui dessa escola, o Benetazzo, que apareceu morto. Um outro aluno também, muito ligado a mim, o Fleurizinho, o sobrinho do outro, que teve também que se suicidar na prisão. E assim continuou. E a nobre instituição da Universidade de São Paulo sempre em silêncio. Pouco depois, alguns professores foram presos, entre eles, o Rodrigo Lèfevre e eu. A instituição mandou emissários nos visitar e eles ficaram assustadíssimos com o que ouviram porque descobriram que nós participávamos da resistência armada à ditadura. Eles ficaram com cara de bobos, não protestaram, e ficaram em silêncio também. Poderiam pelo menos ter protestado contra a tortura, que era evidente, que era palpável, que era visível. Não disseram nada. Pouco depois, saímos da prisão, Rodrigo, eu, e outros. A solução da Universidade foi ainda a do silêncio. Tanto Rodrigo quanto eu simplesmente desaparecemos do programa da FAU, não constávamos mais. Não disseram nada: não estávamos expulsos, nem admitidos, nem estávamos dentro, nem estávamos fora. A nobre instituição continuou em silêncio.

A gente poderia pensar que talvez fosse o medo, talvez fosse o medo da repressão, a timidez diante do poder enorme da ditadura. Mas quando acabou a ditadura a Universidade de São Paulo continuou em silêncio, não dizendo absolutamente nada. Enquanto outras Universidades, outras instituições, aceitaram de volta outros professores, reconvocaram e reinstalaram no ensino, a Universidade de São Paulo não fez absolutamente nada. Até hoje ela continua em silêncio. E problemas ridículos: até hoje, por exemplo, essa Universidade não me deu aposentadoria, à qual eu teria direito. E assim vai, e assim continua. Esse silêncio da Universidade pesa, e pesa muito. Porque se ela não diz nada, não desmentiu, não protestou, mesmo depois do fim da ditadura, é porque de uma certa maneira ela encampa, ela aceita, ela assina embaixo de tudo o que foi feito na Universidade de São Paulo e contra a qual nada disse até hoje.

Eu sinto muito: estou sendo recebido nessa escola, estou sendo recebido nesse espaço, mas não podia de maneira nenhuma não dizer, não falar essas coisas. Vamos agora voltar pro campo da arte. Eu preferia ouvir primeiro o que os meus amigos vão dizer e depois responderia. Eu tive um problema de saúde grave e estou ficando sem ar, preciso respirar. Eu preciso parar, mais tarde eu retomo a palavra. (palmas).

O Pedrinho pediu pra eu lembrar que a Maria Antônia foi espaço de resistência importante. Eu não mencionei, mas alunos, professores e funcionários dessa escola tiveram atitudes belíssimas, fortíssimas, de resistência. Eu falo contra a instituição burocrática, mortal, que se chama Universidade de São Paulo”.