É com grande prazer e orgulho que estamos lançando o boletim eletrônico Malala. Uma iniciativa do Grupo de Trabalho Oriente Médio e Mundo Muçulmano (GTOMMM) do Laboratório de Estudos da Ásia do Departamento de História (FFLCH) da Universidade de São Paulo.
O GT nasceu há quatro anos, buscando atividades em três eixos. Um dos nossos eixos de atuação é o debate mensal baseado em leituras e apresentações de membros do grupo ou convidados. Um segundo eixo são atividades de campo como visitas a centros religiosos e culturais; com contatos acadêmicos e sociais com representantes das comunidades árabe, iraniana, israelense ou que estejam de uma forma ou de outra relacionadas com o que acontece no mundo muçulmano ou no Oriente Médio. Com o lançamento do boletim eletrônico Malala, começamos um terceiro e importante eixo de atividade: uma revista eletrônica com o objetivo de publicar pesquisas e fomentar o debate em nosso campo de pesquisa e trabalho.
As discussões, opiniões e pesquisas sobre Oriente Médio e o mundo muçulmano não raramente provocam questionamentos e frequentes mal-entendidos e mitos, o que reforça a importância de uma iniciativa como a nossa. A proposta do boletim eletrônico Malala é ajudar, modestamente, a diminuir os preconceitos e substituí-los por informação sólida e fidedigna; promover e testar novas ideias e interpretações; debater com respeito mútuo alguns dos grandes dilemas da contemporaneidade – enfim, abrir um espaço mental, acadêmico e civil para aprender sobre – e dialogar com – esse mundo geograficamente distante, mas cada vez mais perto. E mais influente.
O Oriente Médio foi berço de altas civilizações e criatividade espiritual e das grandes religiões monoteístas que, a partir dali, se espalharam pelo mundo inteiro e hoje englobam a maioria da humanidade. Mas a região é também uma encruzilhada, uma “zona sísmica” inquieta entre três continentes e entre as duas áreas históricas da cristandade e do islã. À sua centralidade estratégica, incontornável há muitos séculos, se adiciona hoje o fator econômico, consequência de suas ricas reservas energéticas. Pode-se argumentar que o petróleo, bonança para os regimes, tem sido 4 uma praga para as populações. Dois séculos de intervenções, de exploração e de contatos desiguais criaram uma faixa geográfica de profunda crise endêmica, uma vastíssima zona que hoje se estende da África ocidental, atravessa o mundo árabe, iraniano e indiano e chega até a Indonésia. É – um “arco de crise”. Esta gigantesca meia-lua é na sua maioria terra de islã.
No entanto, a questão econômica aflora apenas a superfície dos problemas. A predominância de regimes autocráticos, os costumes sociais autoritários e patriarcais e a desigualdade e submissão em que vivem muitas mulheres e as intromissões recíprocas e externas são fatores que têm atiçado e mantido conflitos étnicos e religiosos. Os conflitos, por sua vez, freiam o desenvolvimento humano e democrático das populações, e o crescimento (ou resgate) de tradições de tolerância e convivência das diversidades. O resultado é uma atmosfera de crise permanente e explosões de violência mortífera, em contradição gritante com o potencial inegável desse mundo. Exemplos disto incluem não só conflitos regionais intermináveis tais como Israel-Palestina, o nacionalismo curdo, ou as tensões comunitárias no Afeganistão ou no Paquistão. A crise é simultaneamente mais universal e mais estrutural. Tragicamente, as recentes desavenças da Primavera Árabe, aplaudida inicialmente com grande otimismo, vêm se transformando em tensões quase insolúveis entre islamistas e secularistas, como no Egito, ou alhures com reações sangrentas que partem dos “anciens régimes”, indo da opressão relativamente velada na Arábia Saudita à guerra civil aberta na Síria. No Oriente Médio e em muitas sociedades muçulmanas na Ásia meridional e na África estão em crescimento preocupante as tensões chamadas (facilmente demais) “sectárias” ou “tribais”. Em todos os países do Arco da Crise está em pauta o papel da religião na sociedade. Entender essa complexidade é uma necessidade vital para as sociedades atingidas. Porém, essa tarefa intelectual não se limita às próprias região e religião: ela nos chama também. As sociedades muçulmanas se debatem com dilemas econômicos, políticos, mas além de tudo identitários e ideológicos. Estas lutas fatalmente influenciarão todas as outras sociedades, e chegarão mais cedo ou mais tarde até nós!
É urgente o desafio de entender, interpretar e prognosticar mais corretamente problemas que afetam não apenas as sociedades muçulmanas, mas que ameaçam se internacionalizar. A América Latina e o Brasil não estão isentos do fallout politico, econômico e securitário que está acontecendo ali. Para dar conta deste desafio precisamos evitar cair numa dupla armadilha: devemos manter distância das estereotipias orientalistas (palavra feia, mas que já conquistou direito de cidadania) e das islamofóbicas; mas devemos igualmente evitar leituras superficiais, cegas/ obscurecidas por certas simpatias ideológicas – leituras que tendem a obscurecer ou até apagar fatos desconfortáveis num inaceitável relativismo inconsequente no qual “entender tudo é perdoar tudo”. Enfrentamos portanto uma corda bamba interpretativa inevitável.
No Brasil, infelizmente, ainda somos pouquíssimos os interessados e são poucas as pesquisas voltadas ou em diálogo com o Oriente Médio e o mundo muçulmano. Existem grandes lacunas. É por isto que devemos trabalhar na amplitude não menos do que na profundeza. Isto é ditado não somente devido a nossas limitações cientificas. mas também porque é urgente transformar um campo de curiosidade num campo de pesquisas e respostas. Enxergamos. Portanto a missão do boletim eletrônico Malala como dupla: por um lado, como espaço para divulgação de jovens pesquisadores e ativistas; por outro, como lugar para satisfazer a curiosidade presente na sociedade civil, e para provocar o engajamento de alunos brasileiros e outros com aquela região e religião que focamos.
É nossa esperança que um boletim tal como Malala possa, a termo, preencher no terreno fértil, mas negligenciado dos estudos do Oriente Médio e do mundo muçulmano, algumas pequenas lacunas – e inspirar outros para seguir nossa trilha. É neste sentido que gostaria, em nome do GTOMMM, de parabenizar à bela iniciativa de nossa Comissão Editorial e dar as boas-vindas ao mais jovem eixo do Laboratório de Estudos da Ásia.
Prof. Dr. Peter Robert Demant
Coordenador do GTOMMM
Prof. de Relações Internacionais da USP