Dramaturgias do Tempo

Aurora e o Pé de Vento

Aos meus pais, Patricia e Marco, pelo apoio em todos os tempos.
Ao João, brisa fresca cotidiana.

Agradeço imensamente aos parceiros e parceiras de criação, que estiveram comigo no processo de escrita deste texto: André Teles, Cris Lozano, Maria Zuquim, Perla Frenda e Wilson Mandri.

Personagens:

Aurora: 7 anos

Jaci: mãe de Aurora. Sabe bordar e fazer planilhas de excel. Gosta de olhar a lua. Consegue fazer muitas atividades ao mesmo tempo. Ou não.

Sr. Saturnino: homenzarrão de idade indefinida. Dono de uma pequena venda. Sempre um pouco perdido entre objetos e ideias.

Mnemosine: jabuti de 98 anos, dona de uma voz misteriosa.

Cuco: passarinho migrante da Alemanha, de 150 anos, que veio para o Brasil com casa e tudo. Orgulhoso de si.

Cena 1 – Pastel de Vento

Dia 1 / Outono. Ventania já há dias… Árvores balançam e folhas são arrastadas.

Vê-se duas casas. Uma de Aurora e sua mãe, onde há um relógio parado na parede. A outra é de seu Saturnino, dono de uma pequena venda e a quem cumprimentam pela janela vez ou outra. A casa é tão pequena que parece não acomodar sequer seu dono.
Ao passar das cenas, as roupas de Aurora vão ficando pequenas.

Aurora (olhando pela janela): Quando será que isso vai passar?

Jaci: Não sei… Ninguém sabe! (percebendo a menina entediada) Quer me ajudar a fazer um pão?

Aurora: Quero!

Fazem o pão. Depois, dentro da casa, mãe e filha brincam, organizam, lêem, se entediam, mãe trabalha, lutam, jogam futebol no corredor… Jaci alterna momentos em que faz várias atividades ao mesmo tempo, com outros de exaustão e paralisia. Aurora volta à janela várias vezes para conferir o mundo externo. O dia passa. Anoitece.

Jaci (olhando pela janela): Reparou como a lua está fininha hoje? Está sorrindo pra gente.

Aurora: Sim. Igual o gato daquela história que você leu ontem. (pausa) E o vento continua forte…
Aurora (depois de refletir): Têm dias que são compridos.

Jaci: mas têm dias que passam tão depressa que a gente acorda e já é hora de dormir. (olha para o relógio parado) Aliás, hora de dormir!

Aurora: Já? Mas ainda é cedo!

Jaci: Criança tem que dormir cedo, pra crescer!

Jaci coloca Aurora na cama, e ainda anda pela casa por um tempo, organizando. Suspira, olha pela janela, coloca fones de ouvido e começa a dançar sozinha.

Cena 2 – Bolo Gelado

Dia 2 / Inverno. Novo amanhecer. Jaci e Aurora estão vestidas com casacos e gorro, luvas. Jaci enrolada nos lençóis quer dormir um pouco mais.

Aurora (despertando de bom humor): Bom dia! Hoje farei uma viagem: passearei pelos mares do sul do fim do mundo.

Jaci (ainda de olhos fechados): Que ótima ideia! Posso ir com você?

Aurora: Claro! (brincando de chacoalhar lençóis) Lá é bonito e perigoso: só existem monstras! O vento gelado sopra sem parar, e tudo está congelado.

Jaci: Parece que já estamos lá há um tempo…

Aurora (soprando o vidro da janela): A janela está embaçando… que divertido! Dá pra desenhar.

Jaci (levantando preguiçosa): Esse inverno está atípico. Deve estar um gelo lá fora. (começa a ler as notícias do dia em seu celular)

Aurora (desenhando no vidro da janela e olhando para a casa do vizinho, onde coisas inusitadas acontecem): O seu Saturnino está de ponta cabeça?

Jaci (concentrada na leitura): Ele eu não sei, mas o mundo está, com certeza!
Mãe e filha tomam café da manhã. O dia corre em ações físicas das personagens dentro de casa, entre afazeres e tédios. Finda a tarde. Aurora anda pela casa procurando o que fazer. Jaci trabalha em seu computador enquanto toma café. Aurora, entediada, abre várias gavetas e remexe até que encontra uma caixinha com tranca.

Aurora: Que bonitinha… Está trancada?

Jaci: Ahã.

Aurora:Por quê?

Jaci (concentrada na leitura): Não é pra mexer nessas coisas.

Aurora:Por quê?

Jaci: Porque você é criança.

Aurora:E daí?

Jaci: E daí que o que tem aí não é pra criança mexer.

Aurora:E o que é?
Mãe – (tentando gerenciar a situação sem parar de trabalhar) Coisas que criança não deve mexer!

Aurora:Tipo o quê?

Jaci: Aurora, agora a mamãe está trabalhando; depois a gente conversa. Vai brincar, porque daqui a pouco vamos deitar.

A menina volta a olhar pela janela e repara na janela de seu Saturnino: as sombras de sua movimentação interna, criadas pela luz acesa e a escuridão externa, sugerem uma arrumação, mas também uma história fabulosa, com seres fantásticos e muita aventura. Aurora adormece na janela.

Cena 3 – Bolinho de Chuva

Dia 3 / Primavera. Amanhece.

Aurora (sonolenta): Acho que hoje ficarei no reino dos sonhos. Lá, mesmo de olhos fechados a gente enxerga, e consegue ver o mundo inteiro. Até as coisas que não existem.

Mãe sorri. Assume os afazeres da casa, enquanto a menina luta entre o sono e vontade de brincar: abre os olhos, depois fecha, rola de um lado para outro, cochilando e acordando. Ora ou outra a mãe provoca a menina, varrendo seus pés… E assim a menina vai finalmente despertando.

Jaci: E o que você está vendo neste reino dos sonhos?

Aurora (de olhos fechados): O clima melhorou! O chão está forrado de flores e os passarinhos falam numa língua que eu entendo. (imitando passarinhos) Estou conversando com eles…

Mãe vai até a janela.

Jaci: Parece que seu sonho virou realidade… O frio passou e têm flores por todos os lados.

Aurora (levantando de sopetão e indo até a janela): Então hoje vamos poder sair?

Jaci: Não sei não. Tem muito pólen no ar. A primavera veio com muita força.

Observam o vizinho: seu Saturnino arrisca sair de casa para colocar o lixo pra fora e já começa a espirrar. São muitos sacos. Não dá pra entender como sai tamanha quantidade de coisas de uma casinha tão pequena; a cada vez que ele vai espirrar dá uma paradinha no caminhar, e são tantos espirros que ele fica com dificuldade de regressar. Finalmente, quase entrando em casa, leva um cocô de passarinho na cabeça. Da janela, Aurora e sua mãe riem.

Jaci (olhando o relógio na parede): Já essa hora? Estou atrasada.

Assume seus afazeres. Aurora fica na janela, entediada.

Aurora: Será que isso não tem fim? Estamos fechadas aqui há muito.

Jaci: Puxa, sei lá! este ano o clima está descontrolado. É tudo em demasia.

Aurora: É como um cadeado que trancou todo mundo pra dentro.

Jaci: (tentando animar a menina) Vamos pensar em algo divertido?

Aurora concorda. Jaci, entre passar um pano no chão e mandar um email, propõe jogos de imaginação. Divertem-se. O tempo passa.

Aurora (olhando pela janela): Parece que está melhor lá fora. Será que dá pra brincar no quintal?

Jaci: Parece que sim. E também podemos ir na venda do Seu Saturnino pra comprar pilhas para o nosso relógio.

Aurora: Posso ir sozinha?

Jaci: Você ainda é pequena pra isso…

Aurora: Pequena? Eu já tenho 7. E já fui daquela outra vez, com 6, lembra?

Jaci (reticente): Lembro… Pode. Mas não demore. Sabe-se lá quando os ares voltam a piorar.

Mãe entrega algumas moedas à Aurora, veste a menina com blusa, capacete, joelheiras e um guarda-chuva – são muitos itens para prevenção a todo tipo de situação – e fica olhando da janela, aflita. Aurora segue com tranquilidade, espirrando de vez em quando e se esquivando de cocôs de passarinho que insistem em cair em grande quantidade, quase como o início de uma uma chuva de verão. Jaci aproveita a calmaria para ler um livro, sentada numa cadeira junto à janela. Enquanto ação da cena segue com Aurora, vê-se, vez ou outra, Jaci a gargalhar com a leitura.

A venda do Sr. Saturnino é pequena, mas tudo que sai de lá parece de um tamanho desproporcional, inclusive o próprio dono, que parece não caber lá dentro, dado seu tamanho agigantado. Tem uma idade desconhecida, sorriso largo e gentil.

Aurora: Boa tarde, Seu Saturnino (reparando em seu tamanho). O sr. tem pilhas para relógio?

Sr. Saturnino: Boa tarde, Aurora. Você e sua mãe estão querendo ver o tempo passar? (rindo sozinho da própria piada. Depois começa a procurar nas caixas e prateleiras as pilhas. Some na bagunça) Onde estariam se aqui estivessem? (voz vindo de baixo, como se estivesse no fundo de um buraco profundo) Já não era hora! (Ainda leva alguns instantes, quando subitamente aparece segurando pilhas com um acabamento dourado.) Aqui está! São 5 moedas!

Aurora: É exatamente o que tenho comigo. Que sorte!

Sr. Saturnino (com voz de sabedoria): A sorte acompanha os…. (fica tentando encontrar as palavras…) Como era mesmo? …os…os… Às vezes perco as palavras na minha cachola! os…

Aurora (tentando adivinhar): Os trevos de quatro folhas? Os duendes? (espirra) Os cílios? Figas dão sorte… Sempre peço sorte quando vejo um arco-íris…

Sr. Saturnino (ainda incerto): os… os… corajosos?

Aurora: Ah! Eu sou corajosa! E o sr. também, tem muita coragem pra ficar procurando por horas uma palavrinha de nada.

Sr. Saturnino: Têm umas palavrinhas de nada que perco com mais facilidade que outras.

Aurora: Eu também. Acho que isso acontece com todo mundo.

Sr. Saturnino (intrigado): Todo-o-mundo… Isso é muito, não?

Aurora: o Sr. sabia que todo mundo fala célebro, mas o certo é cérebro? É dessas palavras perdidas.

Sr. Saturnino: Pois é… esse ano vi muita gente perdendo a cabeça, mesmo.

Tempo.

Aurora: Já vou indo. Obrigada.

Chega em casa.

Jaci (que já há algum tempo se dividia entre a leitura e o olhar pela janela esperando pela menina): Aurora, como você demorou!

Aurora: Seu Saturnino tinha perdido uma palavra. (entregando as pilhas) Aí fiquei lá ajudando a procurar.

Jaci se põe a trocar as pilhas no relógio; Aurora circula pela casa procurando o que fazer. Tenta abrir uma gaveta trancada.

Aurora: Onde está a chave?

Jaci (ocupada com o relógio. Distraída): Sei lá. Sumiu.

Aurora: Quando?

Jaci: Ixi, nem lembro.

Aurora: O que tem dentro?

Jaci (dando pouca atenção à curiosidade da menina): Algo sem importância…

Jaci coloca o relógio de volta na parede, com as pilhas novas. Os ponteiros voltam a girar, mas ora giram rápido, ora parecem parados novamente. Ora giram no sentido anti-horário.

Aurora: Coisas sem importância não são trancadas com chaves.

Tenta com grampo; força, investiga. A mãe está distante, preocupada com seus afazeres. Começa uma chuva muito forte.

Jaci: Era o que faltava: que chuva!!! Logo hoje, que é noite de lua cheia… (Tempo. Para si) Que ano!!

Aurora (provocativa): Eu gosto de dormir com o barulhinho de chuva!

Trovão forte. Aurora arregala os olhos, sente medo. A noite chega.

Cena 4 – Carne de Sol

Dia 4 / Verão. Amanhece.

Aurora: (pulando da cama) Hoje vou conhecer as grandes montanhas do lado de lá, onde tudo é ao contrário: o sol nasce de noite, e os ventos quentes sopram para o outro lado.

Jaci (de óculos escuros e roupas de praia, se abanando e abrindo as janelas): Sol de noite? Vento quente? De dia já está insuportável! São 8h30 da manhã e não dá pra sair no quintal com esse calor todo. Desta vez não vou viajar com você, e espero que este lado de lá seja bem distante daqui.

Aurora: Ué, mas é logo ali, onde seu Saturnino mora. (Corre pra janela. Tempo. Reflexiva) Como será que ele faz pra guardar tanta coisa naquela casinha?

Jaci: Ele guarda no porão. Dizem que é gigante.

Aurora: Legal!!! O que tem no nosso porão?

Jaci: Ah… Um monte de coisas…

Aurora: Sério? Que divertido!

Jaci: São apenas coisas velhas guardadas.

Aurora: Se são velhas, por que guardou?

Jaci: Para usar no futuro. Se precisar…

Aurora: E já precisou?

Jaci: Uma coisa ou outra sim.

Aurora: Tipo o quê?

Jaci: Tipo um tapete…

Aurora: Voador?

Jaci: Esse não era.

Aurora: Posso ir lá?

Jaci: Tá muito sujo, Aurora, e não tem nada interessante pra criança. Quando você crescer um pouco mais vai me ajudar a arrumar a bagunça que tem lá, combinado?

Aurora: Não vejo a hora. (olhando pela janela) Que vontade de sair um pouquinho…

Jaci: Tudo ao seu tempo. E agora é hora de estudar!

Aurora pega um livro e senta-se à frente da janela. Lê um pouco, olha um pouco. O relógio gira. Cumprimenta seu Saturnino. Mãe trabalha. Tédio.

Aurora: Mãe, tô com fome!

Jaci (mãe olha o relógio): Já? Quer um lanchinho?

Aurora: Quero!

Sentam pra comer.

Jaci: Este pão ficou tão gostoso…

Aurora: Você deve estar maluca, pois nas montanhas do lado de lá não existe pão: isso aqui é carne de dragão!

Jaci: Quando o sol der uma baixada, você pode levar um pedaço de carne de dragão para o Sr. Saturnino.

Aurora: Eba! (vai até a janela). Acho que vai dar pra ir já…

Jaci: Não sei não. Ainda parece forte.

Aurora: Eu sou forte mesmo.

A mãe, conformada, ajeita a menina com todos os apetrechos de segurança… A roupa está curta.

Jaci: Parece que você cresceu! Você pode parar de crescer, por favor? Está indo muito rápido.

Aurora: Já estou batendo aqui em você, ó. (lembrando) Agora já dá pra arrumar o porão?

Jaci: Depois a gente conversa sobre isso. Faz um tempão que não vejo a chave do porão. Vou ter que procurar. E você agora vai levar o pão, que dizer, a carne de dragão pro seu Saturnino, certo? Não se estenda por lá, hein? Da última vez você demorou. Fiquei preocupada.

Aurora: Pra mim foi rápido até demais.

Jaci (vestindo um relógio de pulso em Aurora. Vê-se que é de um adulto, pelo tamanho desproporcional no braço da menina): Pronto! Agora o tempo vai passar igual pra nós duas: são 16h45. 17h em casa! Quinze minutos é mais do que suficiente pra ir e voltar.

Aurora: Combinado!

Toda paramentada toma o rumo da venda, enquanto a mãe observa pela janela, enquanto traga uma bebida refrescante.

Na venda.

Aurora: Seu Saturnino, você gosta de carne de dragão.

Sr.Saturnino: Só se estiver bem passada!

Aurora: Está!

Sr.Saturnino: Aurora, também tenho algo pra você. Puxa, onde coloquei? Ontem estava ali. Anteontem era aqui? Ué? ah!!! ã? E então hoje deve estar…

Aurora: Estou tão curiosa… (tentando olhar atrás do balcão, ansiosa) E com pressa. Já são 16h57. E tenho que chegar em casa às 17h em ponto.

Sr.Saturnino: Temos todo o tempo do mundo até às 17h.

Aurora: Que nada! Temos 3 minutos e… não. Agora temos 2 minutos e 57, 56, 55 segundos… esse relógio não pára.

Sr.Saturnino: Nem me fale. Fiz aniversário em março e já estamos em dezembro, já já faço de novo e parece que nem vivi este ano.

Aurora: Meu aniversário é o dia mais legal de todos. Mas este ano o clima não ajudou. Foi ruim. Quantos anos o senhor vai fazer?

Sr.Saturnino: Ixi, já perdi a conta… E também me perdi aqui nesta confusão. Onde coloquei? Vou parar de procurar! Achei!!! (entrega uma chave)

Aurora: Eu estava mesmo precisando de uma chave! (olhando o relógio) Meu tempo acabou!! (saindo correndo para casa) Obrigada, seu Saturnino! Tchau.

Chega em casa.

Mãe lavando louça, enquanto dança, ouvindo música com fones de ouvido. Está distraída.

Aurora (entrando aflita e dando satisfações): Mãe, são 17h02’55”. Eu atrasei, mas só porque seu Saturnino estava procurando uma chave mágica pra me dar.

Jaci (mãe tirando os fone e voltando pra realidade): Chave mágica?

Aurora: Ele não disse isso, mas eu sei que esta chave abre qualquer fechadura do mundo. Seu Saturnino é assim, misterioso e cheio de caraminholas e coisas maravilhosas. Reparou que as pilhas que nos vendeu eram de ouro, e que nosso relógio está marcando as horas de uma maneira especial?

Olham para o relógio, que gira normalmente.

Jaci (investigando): Especial como?

Aurora: Sei lá, mas o tempo está passando diferente…

Jaci: Isso não dá pra negar.

Cena 5 – A Caixinha

Dormem. Aurora acorda bem cedinho, antes da mãe, e em silêncio pega sua chave. Pé ante pé sai do quarto e encontra a caixinha que estava trancada. Coloca a chave na fechadura e a abre. Ali encontra um bilhetinho, dentro de um envelope pequenino.

Aurora (lê com alguma dificuldade): Da mamãe Jaci, para a filha que vem chegando com a lua minguante. Filha de Jaci sou eu! É pra mim. Oba! Um bilhete de sorte! () “O tempo da maturidade deve guiar a busca” (para si) Não entendi nada! (volta à caixinha, e se surpreende com a maravilha que encontra no fundo – dezenas de moedas de 1 centavo.)

Jaci (acordando, chega na sala e repara em Aurora brincando): Acordou cedo hoje, hein?

Aurora (entusiasmada): Olha o que eu encontrei! Um tesouro!!

Jaci: Nossa, quantas moedas de 1 centavo. Isso nem existe mais! Um dia talvez valham muito mesmo. Onde estava isso?

Aurora: Nesta caixinha bonitinha que te mostrei outro dia.

Jaci: Falando em caixinha, você precisa arrumar seus jogos na caixa. Está tudo uma bagunça.

Aurora: Me ajuda? Arrumar é muito chato! E vou gastar todo o meu tempo de brincadeira com isso.

Jaci: Ontem mesmo você me disse que já é grande, que já tem 7 anos. Está mais do que na hora de cuidar das suas coisas!

Aurora: Preferia antes, quando você guardava tudo.

Jaci: Mas antes você não podia ir sozinha na venda do seu Saturnino.

Aurora (reflexiva): É… Tem coisa que é boa e ruim ao mesmo tempo.

Aurora contrariada começa a arrumar, sem vontade. Fica olhando pro relógio que gira tão lentamente que quase pára. Mãe chega para dar uma ajudinha na arrumação. Aurora volta a brincar com suas moedas. O relógio gira rápido.

Jaci: Hora de dormir! Amanhã você brinca mais com seu tesouro.

Aurora: Meu tesouro? Quer dizer que agora todas estas moedas são minhas?

Jaci: Sim. O tesouro pertence a quem o descobriu, não é, Srta. Pirata Aurora? Mas chega de enrolação – Cama!

Aurora: O tempo passa rápido quando a gente se diverte!

Dormem.

Cena 6 - O Tempo Parou?

Aurora acorda e em silêncio pega sua chave. Vai até a sala, onde fica a gaveta trancada. Abre. Lá tem uma papelada sem fim. Enquanto remexe, o dia clareia.

Aurora: Quanto papel! Olha esse, que bonito… Tem um pedaço prateado! (lendo com dificuldade) Certidão de nascimento. Nome: Aurora Carvalho – Sou eu! Nascida em 24 de junho de 20… (Distrai-se com outras coisas) Uau!! Que linda esta flauta!

Arrisca tocar.

Jaci (acordando com o barulho): Minha nossa, Aurora, é muito cedo pra tanto barulho.

Aurora: Não é barulho, é música.

Jaci: Não é hora para isso! Os vizinhos vão reclamar… (sonolenta tentando entender o que está acontecendo) Mas que bagunça! Não falei que não era pra mexer nesta gaveta?

Aurora: Você falou que não tinha nada pra criança nela, mas tinha! (mostra orgulhosa a flauta)

Jaci: Eu nem sabia que isso estava na gaveta. (levantando pra arrumar a bagunça) Vem me ajudar a recolher… Com cuidado, são documentos importantes. (Aurora recolhe uma coisa ou outra e já se distrai com a flauta. Mãe recolhe o restante e depois olhando a janela) Aurora, vamos aproveitar que o tempo firmou: preciso que vá até a venda do Seu Saturnino buscar batatas. Quero fazer um purê.

Aurora: Oba!! Posso pagar com minhas moedas?

Jaci: Você vai gastar seu tesouro?

Aurora: Pra comer purê vale a pena.

Jaci: Então avisa seu Saturnino que, se faltar algum valor, eu acerto depois!

Aurora: Têm muitas moedas aqui. Vai dar até troco.

Aurora se veste com a ajuda da mãe: galocha, meião, boné, cotoveleiras e luvas de skate. As roupas estão muito curtas.

Jaci: Minha nossa, você está perdendo suas roupas… Ainda bem que vestido vira blusa!

Aurora: E calça vira short!

Jaci (colocando o relógio no pulso de Aurora): Atenção à hora!

Aurora faz o trajeto costumeiro, desta vez leva sua flauta e vai tocando pelo caminho, imaginando ser a flautista de Hamelin. Jaci, aproveita o momento de tranquilidade, coloca seus fones e se põe a bordar.

Na venda, Sr. Saturnino está com os cabelos estranhos. Ele está de costas para a porta, entretido enquanto desorganiza a bagunça. Aurora chega em silêncio.

Saturnino (sem olhar pra Aurora): Bom dia, Aurora! Trouxe ratinhos com você?

Aurora: O Sr. por um acaso tem olhos nas costas?

Saturnino: Ainda não, mas esses dias pensei que uma hora ou outra você apareceria por aqui.

Aurora: Sério? Você vê o futuro! Então me diga quando vai melhorar esse clima de vez, pra eu poder sair de casa sem capacete?

Saturnino: “Quando” não tenho certeza, mas que vai melhorar, isso vai.

Aurora: Já é uma boa notícia. O difícil é inventar o que fazer até lá.

Saturnino: Inventar é o mais fácil: hoje, por exemplo, inventei um novo penteado para os meus cabelos. Olha como ficou bom!

Aurora (avaliando o penteado): Ficou bom mesmo!

Saturnino: Que horas são neste seu relógio bonito?

Aurora (Olhando para os ponteiros e fazendo contas): São 11 em ponto. (ao longe o som de relógio Cuco cantando as 11h) Ouviu isso?

Saturnino: Parece um passarinho? Que bons ventos trazem sua visita?

Aurora: Vim contar que sua chave funcionou: tô abrindo tudinho com ela… Ah! Já ia esquecendo: também vim buscar batatas.

Saturnino: Batatas?? hummm… Se importa se elas estiverem furadinhas? Usei as batatas para fazer pilhas para meu despertador…

Aurora (para si, estranhando): Um dia são pilhas de ouro… no outro pilhas de batatas…

Saturnino (discursando enquanto procura): …tenho alguns hobbies para quando quero passar o tempo. E tem gente que diz que as pilhas são o motor do tempo… (entregando as batatas) Sem moedas.

Aurora: Cem? tudo isso? Que caro! (devolve as batatas)

Saturnino: Não, sem! (fazendo gestos para explicar)

Aurora: Você quer dizer nenhuma? (Saturnino concorda) Mas quero gastar meu tesouro! (mostrando as moedas).

Saturnino: Hummm…. Quantas vc tem?

Aurora: Muitas!

Saturnino: Isso é bastante… Quero um tanto, então.

Aurora (desconfiada): Um tanto quanto? Tipo 10?

Saturnino: 10 era o que ia dizer!

Aurora (pensando alto): Falei pra minha mãe que daria.

Saturnino (elogiando): Isso é o que chamo de sabedoria da idade!

Aurora (se despede triunfante): Então, tchau.

Saturnino (não deixando a menina ir): Já que o meu relógio está sem baterias, poderia me dizer que horas são agora?

Aurora (olhando para o relógio de pulso): 11 em ponto. (pausa) Parece que o tempo parou! (suspensão. ouve-se ao longe um som de relógio Cuco cantando 12h)

Saturnino: Será??? (filosofando) Às vezes sentimos o tempo de forma linear; outras, temos certeza de que o tempo é cíclico… Mas neste caso provavelmente seu relógio parou!

Aurora: Não entendo como o tempo pode passar tão rápido quando estou aqui… Se eu me mudar pra cá esse tempo longo vai passar mais depressa… Tipo, o espaço muda o tempo?

Saturnino: Boa pergunta! (ameaça responder…)

Jaci (da janela): Aurora, hora do almoço! Bom dia, seu Saturnino! (Saturnino acena)

Aurora: Já vou indo. A gente se vê logo logo!

Saturnino: Com certeza!

Volta pra casa.

Cena 7 – Em Busca do Tempo Perdido.

Durante a noite, Aurora acorda e em silêncio pega sua chave, destranca o alçapão do porão e desce as escadas; está tudo escuro e misterioso. Ela ouve um som intermitente, como um vento. Sente medo, mas a curiosidade é mais forte. Seus olhos vão se acostumando com a escuridão e então começam a enxergar na penumbra. É um grande salão e por todos os lados têm coisas apoiadas nas paredes: portas, janelas antigas, caixas sobrepostas e baús, chapéus… Ao fim das escadas encontra uma placa com dizeres, que lê com alguma dificuldade.

Aurora (lê em voz alta): O que você procura? Se pergunte e aqui achará! (para si) Que lugar é esse?

Mnemosine (ao longo de toda a cena ouvimos apenas sua voz): Esta é sua pergunta?

Aurora (Aurora, num misto de medo e curiosidade): Tenho tantas perguntas… Preciso escolher uma só?

Mnemosine: Tudo o que você fala termina com uma pergunta?

Aurora: Como assim?

Mnemosine: Assim…

Aurora (amedrontada): Espera um pouquinho: estou conversando com quem?

Mnemosine: Minha nossa! Isso não vai ser fácil…

Aurora: Onde eu vim parar?

Mnemosine: Esta é sua pergunta?

Aurora: Você só sabe dizer isso?

Mnemosine: Esta é sua pergunta?

Aurora (irritada): Acho que vou me calar. Você está parecendo meu priminho Thor, que só pergunta por quê? Por quê? Por quê? E quando você responde – porque é assim, Thor – aí ele pergunta novamente, por quê?

Mnemosine: Isso não é uma pergunta!

Aurora repara que o chão do porão é como um grande um tabuleiro de jogo, os objetos do porão estão dispostos como obstáculos, e num canto está um dado gigante.

Aurora: Uau!!!! Que incrível. Como se joga esse jogo?

Mnemosine: Você precisa fazer uma pergunta.

Aurora: Já fiz! Como se joga este jogo?

Mnemosine: Não!!! Uma pergunta para jogar o jogo!

Aurora: Ah! Preciso perguntar algo pro jogo?

Mnemosine: Finalmente conseguimos um instante de comunicação efetiva.

Tempo.

Aurora: Mas que tipo de pergunta?

Mnemosine: Você faz perguntas demais!

Aurora: Minha mãe sempre diz isso… (retomando) Pode ser uma pergunta difícil? Tipo: o que acontece depois que a gente morre? Como que o primeiro deus nasceu se ele é o primeiro de tudo que já existiu? Sempre quis entender como um cachorro pode ter 7 anos depois de só 1 ano de ter nascido! Quantos anos tem o Seu Saturnino… Essas perguntas?

Mnemosine: Uma dessas.

Aurora: Mas dessas ou pode ser outra? Precisa ser uma só, ou posso fazer mais de uma?

Mnemosine: Por favor, menina, apenas faça sua pergunta; uma pergunta apenas, e pare de fazer perguntas!

Aurora: Vou precisar pensar, porque já que só posso fazer uma pergunta, vou precisar de uma que responda todas as outras! (tempo) Você poderia me ajudar com a pergunta?

Mnemosine: Achei que era isso que eu estava fazendo até agora. O que você veio procurar aqui?

Aurora (tempo): Já sei! Minha pergunta é: quanto tempo leva para esse tempo passar?

O jogo começa. Luzes coloridas surgem girando pelo espaço. Sons eletrônicos saem dos objetos. Aurora, assustada, olha ao redor tentando entender o que está acontecendo.

Mnemosine: Pergunta feita, resposta a caminho! O jogo vai começar: lance o dado!

Aurora pega o dado e tira a sorte – 3. Contando, pula 3 casas no tabuleiro desenhado no chão. Lê as indicações escritas na casa em que caiu.

Aurora (lendo): Ande mais 2 casas. (segue as instruções. Lendo.) Ande mais 3 casas. (para si) Uau!! Na primeira jogada já andei 8 casas. Minha resposta chegará mais rápido do que eu imaginava!

Cena 8 – O Tempo Cronológico

Aurora (segue a indicação. Lê com dificuldade as indicações escritas na casa em que caiu): O tempo cronológico!

Ouve-se uma melodia como de uma caixinha de música vindo de um canto do porão, é um relógio de parede. De repente, dele sai um cuco que canta as horas. Ao longo da cena, ele sempre fala recitando, cantarolando, ou cantando deliberadamente.

Aurora (encantada com o objeto desconhecido): Que coisa fofa! Como isso funciona?

Cuco (surge, dando um susto na menina): Eu faço funcionar! Prazer, sou o passarinho cuco deste relógio. E agora são – Cuco! Cuco! – 2h da manhã em ponto.

Aurora (desconfiada): Prazer, Aurora! Você mora aí?

Cuco: Sim!

Aurora: Sozinho?

Cuco: Minha natureza é solitária. E tenho uma tarefa muito respeitável, da qual não posso me distrair: canto as horas cheias.

Aurora (para si): Horas cheias…

Cuco (orgulhoso): …faço isso 24 vezes por dia, 7 dias na semana, 365 dias no ano. Há, pelo menos… (calculando) uns 150 anos!

Aurora: 150 anos fazendo sempre a mesma coisa e sempre sozinho? E eu reclamando… O seu tempo deve demorar a passar!

Cuco: Ora, bobagem! O tempo que vivo passa sempre igual: 1 dia é igual a 24h. Cada hora tem 60 minutos e cada minuto, 60 segundos e cada segundo demora o mesmo intervalo.

Aurora: Conheço bem este tempo. É aquele que minha mãe insiste em dizer que passa igual para todos.

Cuco: E passa!

Aurora: Mas, no intervalo entre as horas cheias, o que você faz?

Cuco: Espero a próxima hora cheia!

Aurora: Mas 1h é muito tempo, você mesmo disse (imitando) “cada hora tem 60 minutos e cada minuto, 60 segundos”… Nesse tempão dá pra arrumar sua casa, dormir um pouquinho e até procurar uma companhia.

Cuco: Tem razão. Nunca tinha pensado nisso!

Aurora: Olha, Cuco, estava à pouco tendo uma conversa com… com a… não sei quem era, mas o que importa é que ela estava reclamando que faço perguntas demais. Acontece que quero saber das coisas que não sei, então, vou precisar seguir desta maneira. Tudo bem pra você?

Cuco: Se puder responder cantando, então pra mim está ótimo.

Aurora: Feito! Minha primeira pergunta é…. Para tudo! Só me dei conta agora: estou conversando com um passarinho? Você fala minha língua ou sou eu que falo passarinhês?

Cuco (orgulhoso): Lá de onde vim é assim: todos se entendem na língua que falam. (cantando como num musical) Sou da Floresta Negra – onde os contos acontecem!

Aurora: Contos tipo histórias? Me conta?

Cuco: Ora ora, são muitas…

No meio desta velha floresta
Habitava uma bela menina
Que por 100 anos, todos de festa
Viveu todos eles, adormecida

Uma irmã e um irmão perdidos,
Encontraram por lá uma morada
Feita de bolo, chocolates e guizos
Mas eles entraram numa cilada

E na torre que havia ali
Uma donzela trancada sem poder sair
Jogou suas tranças pra ser resgatada
E assim se livrou dessa bela enrascada

Coisa antiga, sabe? Enredos de qualidade… Mas essa juventude não dá valor para o passado. Hoje ninguém mais conhece essas histórias maravilhosas…

Aurora (pra si): Eu conheço…

Cuco (seguindo sua apresentação musical): …mas o que importa é que lá fui criado. Depois migrei para cá.

Aurora (entra na brincadeira musical, e a cena se torna um número recitativo. Ela vai pontuando as informações com reações e intervenções sonoras): Já tinha ouvido que pássaros migram…

Cuco: Vim com casa e tudo. Quando me instalei de vez por aqui, minha residência ficava dentro de outra – uma casinha, quase do tamanho da minha – de um alemão, que gostava de fazer pão, e que tinha um nome curioso: Plutão. Nome de planeta anão.

Aurora: É nome de planeta, igual ao seu Saturnino.

Cuco: Sim, Saturnino! Esse era o nome de seu filho menino, o pequenino. O mais velho era Celestino.

Aurora: Hei! esse era o nome do meu bisavô!

Cuco: Bisavô, coisa antiga, hein? Deve ser coisa boa… O fato é que a primeira corda dada naquele relógio também faz um tempo que já não se acha, e tenho orgulho de dizer que no cantar das horas nunca me adiantei, nunca atrasei! Aliás: Cuco! Cuco! Cuco! 3 horas da manhã. Seguindo sua sugestão, vou arranjar algo pra fazer. Considerando o horário, dormir talvez seja uma boa!

Aurora: Faz sentido! Boa noite, Cuco!

Cuco entra em sua casa. A luz interna do relógio se apaga.

Cena 9 – O Imponderável

Ouve-se a voz de Mnemosine.

Mnemosine: Pergunta respondida?

Aurora (refletindo e concluindo): Em partes!

Mnemosine: Então segue o jogo: repita a pergunta e lance o dado.

Aurora: Quanto tempo leva para esse tempo passar? (Aurora pega um dado gigante e tira a sorte. As luzes voltam a piscar) Seis!!! Que sorte! (Contado pula 6 casas no tabuleiro desenhado no chão. Lê com dificuldade as indicações escritas na casa em que caiu) O tempo imponderável!

Ouve-se sons de madeira rangendo. Dois troncos bem envelhecidos de árvore, que estão lado a lado, movem-se lentamente.

Aurora (com muito medo): Minha nossa, aqui nesse porão árvores andam! (sobe os olhos seguindo os troncos e vê que são pernas de um corpo humano. Ao olhar a face, vê seu Saturnino despertando. Aliviada.) Seu Saturnino, o senhor por aqui? Nunca imaginei que o senhor dormisse no porão da minha casa!

Saturnino (acordando, sem prestar a atenção): Aurora? Que horas são? Já é de manhã? Parece que esta noite foi curta…

Aurora: A noite ainda não acabou, não. É que mudei meu fuso horário pra conhecer outras sabedorias.

Saturnino: Pelo visto está funcionando: está usando palavras novas. Sabida!

Aurora (satisfeita): Percebi isso também! Mas sabe que nunca tinha reparado nestas suas pernas-raízes.

Saturnino: É preciso ter os pés bem fincados no chão para deixar a cabeça voar.

Aurora: Verdade!

Saturnino: Cada uma delas tem mais de mil anos. Já viram muita coisa acontecer neste planeta.

Aurora: Sempre quis saber quantos anos o senhor tem…

Saturnino: Isso, de idade, é bobagem! O que importa é a idade da cabeça.

Aurora: Discordo. Não vejo a hora de completar 8 anos. Acho que vai fazer uma diferença enorme. Uma nova vida!

Saturnino (filosofando): Muda-se a perspectiva, muda-se a percepção. (retomando) Mas eu, desde sempre, vivo assim: da cintura pra cima na luz, da cintura pra baixo na sombra!

Aurora: Da cintura pra baixo no meu porão.

Saturnino: No meu porão.

Aurora: No meu!

Saturnino: Como pode ser no seu, se minha cabeça está sob o telhado da minha casa?

Aurora: Como pode ser seu, se entrei aqui abrindo o alçapão na minha casa? (reflete e conclui.) Então, quer dizer que nossos porões são unidos!!!

Saturnino: Faz sentido… sabe que nunca consegui olhar todo o espaço aí embaixo. Tudo é tão apertado que não consigo enfiar minha cabeça.

Aurora: Eu te conto: aqui é gigante!

Saturnino: Imaginei mesmo que fosse… Cabem todas as minhas quinquilharias!

Aurora: Quer saber? O espaço é igual ao tempo: depende!

Saturnino (para si, entusiasmado): Ó, a maravilha do crescer…

Aurora: Eu diria que este lugar é tão imensamente grande, que é infinito. Igual suas pernas-raízes que são eternas.

Saturnino: Bem, minhas pernas raízes não são eternas; Um dia nasceram e um dia morrerão.

Aurora: O eterno nunca acaba?

Saturnino: Não.

Aurora: É pra sempre, pra semprão?

Saturnino: Sim!

Aurora: Como é isso?

Saturnino: Do mesmo jeito que o infinito nunquinha de nunquinha vai terminar! Mas numa coisa você tem razão: isso de idade é muito importante: quando você fizer 8 anos entenderá um pouco mais sobre essa nossa conversa, e com 9 anos um pouco mais, e assim por diante…

Aurora: Vou lembrar dessa nossa conversa pra sempre. Esse pra sempre de humano, sabe? Até morrer! Aliás, quando eu for bem velhinha, será que o senhor ainda vai existir?

Saturnino: Boa pergunta!

Aurora: Um dia vi na tv que existem florestas milenares e que as árvores usam suas raízes pra se comunicar. Quando eu for bem velhinha vou fazer minhas pernas serem como as suas, pra gente conversar aqui pelo porão!

Saturnino: Suas pernas já são como as minhas – vê-se que têm muita história. Só precisam crescer mais um pouquinho…

Aurora: É exatamente o que mais quero: crescer!

Saturnino: Pra que a pressa? (para si) Depois a gente fica querendo voltar a ser criança…(Ouve-se o cuco anunciando as 4h da manhã) Acho que vou voltar a dormir. Já passei da idade de ver o dia nascer… (fecha os olhos e já começa a roncar)

Aurora: Esse seu Saturnino parece mesmo uma criança: uma criança com cara de velhinho! Será que um dia vou descobrir quantos anos ele tem?

Cena 10 – Einstein

Ouve-se a voz!

Mnemosine: Pergunta respondida?

Aurora (refletindo e concluindo): Em partes!

Mnemosine: Então segue o jogo: repita a pergunta e lance o dado.

Aurora: Quanto tempo leva para esse tempo passar? (pega um dado gigante e tira a sorte – 1) Um? Puxa, agora vou num ritmo tartaruga… (pula uma casa meio desanimada. Aurora já está cansada e com sono)

Mnemosine: (com uma voz nitidamente eufórica) Excelente!!! Esta é sua melhor jogada.

Aurora (incerta): É mesmo? Espero que você tenha razão: já são 4 horas da manhã. Preciso voltar pra minha cama antes da minha mãe acordar. Ela pode ficar preocupada de não me ver na cama…

Mnemosine: Então vamos logo acabar com isso, afinal, esta é sua grande jogada!

Aurora (dá o pulo e cai na casa da jogada. Lê com dificuldade as indicações escritas na casa em que caiu): O tempo é relativo! (seguindo a lógica das jogadas anteriores, fica aguardando algo acontecer no porão, mas nada acontece. Espera mais um pouco… nada!) Ué, acho que não funcionou… Oi? Você ainda está aí? (sem resposta) Cadê você? (sem resposta). Acho que o jogo deu errado desta vez… (nada. pausa. Frio na barriga. Tenta recomeçar) Minha pergunta é: quanto tempo leva para esse tempo passar? (nada. relê a casa com a voz mais alta e pausada) O tempo é relativo! (Silêncio longo. Aurora vai ficando num misto de ansiedade e medo.) Tudo ficou tão quieto de repente… Será que o cuco já cantou 5 horas e não ouvi? Ou será que ele dormiu demais e perdeu a hora pela primeira vez na vida toda? Não quero mais brincar desse jogo; vou voltar pra minha casa. Tô indo, viu? Por hora, as respostas que tive já são suficientes pra minhas perguntas.

Aurora vai percorrendo o caminho inverso do tabuleiro, seguindo as casas já percorridas, no sentido da saída do porão, quando escorrega e cai.

Aurora (com voz chorosa): Ai!!!

Mnemosine (aparecendo, finalmente): Já vai? Sem terminar o jogo…

Aurora (ainda sem ver a Mnemosine): Ai!! Ai! ralei meu joelho. Vai doer um montão na hora do banho!

Mnemosine: O tempo cura tudo. Dizem que a pior dor é a de dente. Essa eu nunca conheci.

Aurora (estranha a resposta e olha para a direção de onde vem a voz, finalmente vê Mnemosine, no alto de uma caixa): Você é uma tartaruga?

Mnemosine: Considerando que todo jabuti é uma tartaruga mas, que nem toda tartaruga é jabuti, sim! Prazer, Mnemosine!

Cuco canta 6h.

Aurora: Ele cantou 6 vezes? Já são 6 horas da manhã e estou aqui embaixo conversando com uma tartaruga? Estou muito atrasada.

Mnemosine: Pra quê a pressa? Se não pode agarrar o tempo, deixe o tempo te levar…

Aurora: Perdi um tempão te esperando. Onde você estava quando eu chamei?

Mnemosine: Pensando.

Aurora: Você levou quase 2 horas pensando no que ia responder quando minha simples pergunta era “cadê você”?

Mnemosine: Nos meus 98 anos morando neste porão, já respondi muita coisa precipitadamente. Agora prefiro a precaução, por isso mesmo que escolhi me perder aqui; aí tenho todo o tempo do mundo pra pensar na melhor resposta.

Aurora (dividida entre ir embora e saber mais da tartaruga): Você tem 98 anos? Como assim você está perdida aqui por que quer? Você me diz tudo isso logo agora que preciso ir embora? Já tenho um monte de perguntas sem respostas novamente!

Mnemosine (falando tranquilamente): Volte quando quiser, sem pressa, e te conto a minha história. Já tive 3 donas – D. Gaia, que era mãe de D. Sol, que era mãe de D. Jaci. Todas muito perguntadeiras…

Aurora: Jaci é o nome da minha mãe.

Mnemosine: …atualmente procuro uma nova candidata para o cargo, porque ainda tenho muita vida pela frente e muitas respostas pra perguntas novas. Aceita a função?

Aurora (já no topo das escadas): Aceito! Aceito com certeza! Tchau, Mnemosine! Obrigada.

Corre para sua cama

Cena 11 – Amanhã Vai Ser Outro Dia

Aurora acorda, sua mãe já levantou.

Jaci: Que dorminhoca! Já passam das 10h.

Aurora: Essa noite passeei pelo nosso porão. É incrível! E está uma bagunça mesmo… mas até que bem organizado, sabe?

Jaci: Não me diga. Então, foi uma aventura e tanto! Achou muita coisa guardada por lá?

Aurora: Sim!!! Muita, muita, muita mesmo.

Jaci: Qualquer dia quero que você me leve com você. Faz muito, muito, muito tempo mesmo que não desço lá.

Aurora: Da última vez que você foi estava procurando alguma coisa?

Jaci: Sim. Queria achar respostas.

Aurora: Então, acertou o destino: lá estão todas as respostas do mundo – até para as perguntas que ainda nem foram feitas. Qual era sua pergunta?

Jaci: Me perguntava qual era a maior alegria do mundo.

Aurora: E qual foi a resposta?

Jaci: Pra olhar a lua, acreditar em suas fases, que na idade certa essa alegria chegaria.

Aurora (para si): Falei pro seu Saturnino que idade é importante.

Jaci: Falando nele…

Ouve-se Saturnino no outro cômodo da casa.

Saturnino: Este chá está realmente delicioso, Jaci. Aurora, criou raízes nesta cama? Chegou a grande hora!

Aurora (para a mãe): Hora de quê? Ele coube aqui?

Jaci: Aurora, quantas perguntas de uma vez! Tenho boas notícias: hoje vamos dar um passeio sem capacete, nem cotoveleiras!

Aurora: Oba! Esperei tanto por este dia.

Procurando a bota para vestir.

Saturnino: Acabei de ouvir na rádio que o tempo já está mais estável finalmente, e que poderemos voltar à vida como era antes.

Aurora: Como era antes? Impossível. Acontece que eu já não sou como era antes! Até minha bota está apertada.

Saturnino: Tem razão! Sempre disse que o impossível não existe, mas estes são outros tempos… Tudo está mudado.

Jaci: Ixi! Tenta o tênis. (Aurora experimenta e nada) A sapatilha? (também não serve) Vai ter que ir de chinelo, que mesmo pequeno dá pra usar.

Saturnino: Vá descalça mesmo. Os pés livres sentem o mundo de uma maneira única (mostrando seus pés descalços).

Jaci: Como você está crescida, Aurora! Nem acredito que já já você faz 8! Ontem à noite, antes de dormir, estava olhando a lua: ela parecia uma fatia de melancia, igual no dia em que você nasceu.

Aurora: Deve ser por isso que adoro melancia. Pena que só é docinha na época certa.

Jaci: É, tudo tem seu tempo, né? Este foi um longo período, e estou orgulhosa de sua coragem e força. Acho que, apesar de tudo, nos saímos bem.

Aurora: Você quer dizer que nós sairemos bem. E já! Não vejo a hora de ir sem hora pra voltar!

Jaci (para Saturnino): Minha menina está crescendo… Mal saiu das fraldas e já está pensando em ir pro mundão.

Saturnino: Fique tranquila, Jaci. Ela tem raízes fortes dentro de si. Sempre voltará.

Aurora (na porta da rua): E aí, vamos ou não vamos? O tempo está passando….

Saem de mãos dadas para passear!

e como em outros tempos
cai o pano.