Dramaturgias do Tempo

Cidade Livre

com a colaboração de Adriano Del Duca, Alexandre Vander Velden,
Ana Karenina Riehl, Bruno Marcos e Fernanda Martins.

Rio de Janeiro, julho de 2021

Personagens:

Anita cozinheira no bar de Chico
Jusepo operário e marido de Anita
Danilo operário
Ademir operário
Marão operário
Morena garçonete no bar de Chico
Selma cantora e namorada de Morena
Bernardo engenheiro
Chico dono do bar
Jairo barbeiro
Voz da rádio Cidade Livre
Voz da Rádio Nacional
Voz da empresa
Escritora de cartas
Intelectual paulista
Ator
Atriz
Comissária de bordo
Elizabeth jardineira
Sandra jardineira

Primeiro Ato

Cena 1 - Anunciação

Três espacialidades paralelas: a mesa de jantar de Bernardo, a mesa da casa de Anita e Jusepo e a mesa de uma escritora de cartas na rua. Na mesa da escritora de cartas há um aparelho de rádio. A escritora de cartas liga o rádio.

Voz da Rádio Nacional (música ufanista ao fundo): Agora, todos os olhos estão voltados para o planalto, ponta e vértice do momento brasileiro. Promessa e invenção de que se fala em toda parte. Digo invenção e não construção, pois foi o jeito mesmo dela acontecer, a cidade. Inventou-se a sua existência para que o país Brasil pudesse ligar seus pontos de nação. Subir seu concreto ao celeste infinito do planalto, sustentado pelos braços de seu povo de aço. Bandeirante novo, segue seu destino glorioso!

A escritora de cartas abaixa o som do rádio e uma mulher se aproxima.

Mulher (conta moedas): Bom dia, como vai? (Estende um papel) O remetente. (Coloca as moedas em cima da mesa)

Escritora de cartas: É por minha conta, já disse, suas cartas me fazem o dia. Recebeu o ordenado? Receio que os mandantes não se intimidem muito com a poesia de suas palavras, mesmo com tamanha ênfase.

Mulher (sem ouvi-la, preocupada): Hoje a carta vai pra outro lugar. Me cansei. Pode anotar, por favor. (Dita lentamente) É de tristeza e saudade que atravesso a cidade com a carta que nem mesmo pude escrever. (Pausa. Aguarda a escrita) Não precisaria de lápis e letras pra atravessar o trecho até a sua morada. Mas dinheiro sim. Até mesmo pra carta. Mas me custa menos…

Escritora de cartas (interrompe gentilmente): Como disse, hoje é por conta da casa.

Mulher: Até mesmo pra carta. Mas me custa menos não ver seus olhos de mágoa e decepção; a carta já não custa nada, que a dona das palavras se afeiçoou por meus contatos. Fosse um telegrama e teria dito: Falta tudo pt Sinto muito pt Fome e ausência sua pt. (Muda o tom da fala) Pode fechar. É só isso.

Escritora de cartas: Não pagaram?

Mulher: Não.

Escritora de cartas: E o plantio da nova safra?

Mulher: A intermitência é do pago. Enquanto uns plantam, outros não recebem. E quando os outros que não receberam são chamados de novo a colher a cana, tendo recebido bem menos do que o prometido e uns calabocas, estão os que trabalharam primeiro a escrever cartas ou a morrer de esbravejo e buraco dentro.

Escritora de cartas: No peito?

Mulher: No bucho. (Vai saindo) Mas dizem que o bucho é o segundo coração da gente.

Escritora de cartas: As moedas!

Mulher: Quem escreve também planta, também é filha de deus. (Sai)

A escritora de cartas aumenta o volume do rádio e envelopa a carta escrita.

Rádio Nacional: Quem comanda a empreitada, sem ele nem teria invenção, recebeu o recado como profecia. Um grande líder! Seu sacrifício de corpo e família é coisa pouca perto de seu tamanho. Para o oeste abria seu caminho de profeta do futuro. E como em toda guerra, secaram de homens os lares e lugares, garimpados para a cidade nova.

Bernardo entra empurrando um carrinho de bebê e leva o filho no colo.

Bernardo: Um homem é a herança que deixa. Posso ver com os olhos da alma a euforia daquele que decidiu construir uma muralha que poderia ser vista de fora do planeta, ou aquele em cujos sonhos apareceu a arquitetura da maior pirâmide do mundo. Diante de algo dessa magnitude estamos agora! Imagine, filho, que num dia como esse um homem e sua caneta rabiscaram a necessidade de um tempo novo. Com suas linhas naquela terra plana, seu papel em branco, riscou o desenho dessa grande aventura. Seu mapa. Eu lhe mostro, vem. (Percebe que o filho está com a fralda suja e o coloca no carrinho)

Bernardo vai até a mesa posta de jantar e retira os objetos.

Bernardo (para o bebê): Vê sua lisura, a cor de terra esturricada. Não demanda nem nivelamento, veio pronta, sem gente nem caroço. Trator, só pra carregar as vigas. Vá logo ali, é bom de olhar de longe. (Constrangido) É claro que eu vou voltar, por que não voltaria? Escrevo todas as semanas, sim, as cartas vêm de avião e suas letrinhas de caligrafia vão voar também, ao meu encontro, meu filho, quando já houver quase cidade e seus dedos forem firmes para empunhar caneta!

Bernardo coloca sobre a mesa vazia dois pratos com a forma do Congresso Nacional, um para cima e outro para baixo. Observa apaixonado a imagem criada. Em paralelo, Jusepo e Anita adentram o espaço de sua mesa de jantar.

Anita (recolocando os objetos na mesa): Eu não sei nem pra quê sair daqui, Jusepo, eu não estou feliz nem triste, o que é o melhor negócio, ficar entre os nossos. Aqui eu conheço como a palma da minha mão (olha a palma da mão). Todo ano há cana para plantar e colher. Além do mais, a promessa é pra uma tropa de homens.

Jusepo (delirante, não a ouve): Eu coloco um tijolo pra eles, um tijolo pra nós, cada dia sobem as colunas que farão sombra pra gente assentar. Tem até vento, não é de mar, mas cheira a pequi, a gabiroba, a cagaita. Deixa de teimosia, que eu perco a cabeça. Casa, ônibus, rua asfaltada, feira, barulhos, gente, aaaah! Pensa só.

Anita: Quero não.

Jusepo: No noticiário deu: “Eldorado para desbravador, terra muita, bem moderno”…

Anita (interrompe): É muito mau gosto.

Jusepo (olhando nos olhos dela): Eu prometo. Eu prometo, você entendeu?

Anita: Promete o que, homem?

Jusepo: Eu prometo!

Anita sai, aborrecida. Jusepo se desloca de sua casa ao posto da escritora de cartas. Tira uma moeda do bolso, joga para o alto e então a coloca em cima da mesa, escondida pela mão.

Jusepo: Cara ou coroa?

Escritora de cartas: Bom dia, meu caro.

Jusepo (faceiro): Coroa! (Narra a carta) Amigo Danilo, é tarde, é preciso dar seguimento ao que pensamos. Espero há dias notícias suas e de seus arregimentos. Anita não gosta, mas faz meu gosto, partimos assim que paguem a última colheita. Ela vai, sem ela não tenho como. É alto o tambor no peito ansioso por nossa empreitada. Penso quantas pessoas estão juntando agora seus pertences num saco, tomando o mesmo rumo. Procuram uma vida nova, e encontrarão mais desalento. Não é justo. O pouco que aprendi não é o suficiente nem pra uma carta, mas você pode ensinar a escrever nos horários de folga. Danilo, meu caro, essas ideias não são só ideias. Cada um daqueles que vai ao destino da nova cidade está cansado do trabalho no campo, e sabe, no fundo, que aquilo que é construído não é cedido a nós. Não sabem, talvez, que é possível ser diferente. Construir uma casa bonita e viver nela. Andar de avião. Isso a gente conquista na marra! Ah, Danilo, eu já imagino, eu, a cabeça, você, meu braço direito, numa história contada daqui a algum tempo… (A escritora de cartas ri. Desconcertado com a própria euforia, Jusepo encerra) Nos vemos em breve. Jusepo.

A escritora pega a moeda de cima da mesa e preenche o envelope da carta. Jusepo sai.

Escritora de cartas (narra): Para o nascimento de cada plano de vida, nasce oculto um plano de morte. Cidade Livre. Surge em 1956, no centro-oeste brasileiro. Por decreto. De caráter provisório, com função de amparar a construção de Brasília, seu destino era morrer enquanto cidade quando enfim nascesse a cidade mais levantada do mundo. Previu-se para ela a brevidade da liberdade mercantil, a suspensão dos impostos como meio de atrair para lá gente. Gente é o que faz uma cidade ser uma cidade. Gente é uma matéria para a qual os contornos do que seja livre podem sempre ser reinventados.

Sala de jantar da casa de Bernardo. Ele senta-se à mesa.

Bernardo (canta para o público): Ah, ya ya ya ya ya Little Darling, oh, Little Darling, O-oh where are you? My love I was wrong, to try to love you… (Ao filho.) Amanhã é o seu sobrenome que estará lá, meu filho, nas placas de cobre! É a minha herança pra você. Quer inaugurar o futuro? Faça um pedido!

Bernardo: Eu tenho um presente. (Dá um boneco de pano ao filho) Este sou eu, e vou estar com você enquanto construir a cidade. Ele construirá a cidade, eu. E, enquanto eu construo, você imagina, porque imaginar é também construir. Quem pensa é quem edifica de verdade.

Bernardo sai, deixando o carrinho de bebê e o boneco. A escritora de cartas lê uma carta.

Escritora de cartas: Há um mundo em que imaginar é mais importante do que construir. Nesse mundo, pensar é uma tarefa de grande dificuldade e honra. E construir é apenas necessário.

A escritora de cartas pega o boneco e sai.

Cena 2 – No olho do furacão nada acontece

Cidade Livre, ano de 1959. Muitos trabalhadores morrem nos canteiros de obras, e o clima de tensão é permanente e notável. Uma vez por dia, a Rádio Cidade Livre tem sua transmissão realizada num aparelho de rádio na praça em frente ao bar, onde operários e outros moradores se reúnem para ouvir e conversar.

Cair da tarde. Danilo encontra Marão e Ademir na praça, aguardando a transmissão. Estão apreensivos pela notícia da morte de um trabalhador do canteiro.

Danilo: Caracu, Marão?

Marão: Café.

Danilo: Café é a fé para o trabalho, é hora disso?

Marão: Pois não me pega nem pela manhã, meu sangue é ralo.

Ademir: Cada corpo uma cabeça.

Marão olha o horizonte.

Marão: Pensou que fosse ver uma coisa dessas alguma vez na vida?

Danilo: Pois nunca. Nem no pior pesadelo.

Marão: Parece ser a beirada da Terra, não?

Danilo: Se eu tomasse café como você, não passaria a noite sonhando que estava com o corpo pendurado por um fio, prestes a me misturar na massa cinzenta.

Marão: Cinzenta? Sempre imaginei o centro da terra de fogo. E olhando daqui, vejo um tapete vermelho, sem rugas, estendido até o encontro com o Sol.

Danilo percebe que Marão falava do horizonte do planalto e se irrita.

Danilo (irritado): Até quando olha, você não enxerga, Marão! É hora disso?

Marão: Faltam dez minutos.

Ademir: Eu não sei o que a gente ganha plantado aqui. Você sabe muito bem que não vão noticiar nada, Danilo. (Impaciente) Tem gente que vive em busca do aborrecimento.

Marão (apontando o céu): Vejam lá. Nessa época do ano, quando a lua deita seu contorno de prata a cinco palmos da igreja, é porque já deu a hora. Mas cinco palmos de peão!

Ademir (ironizando): Marão é cheio de ciência.

Danilo cruza os braços. Marão projeta cinco palmos no ar, medindo a distância entre a Lua e a igreja. O início da transmissão irrompe e eles silenciam para ouvir.

Voz da rádio Cidade Livre: Boa noite, ouvintes da sua, da minha, da nossa Cidade Livre. São seis horas em ponto, e as betoneiras não cessam de dar suas voltas nem mesmo para as notícias do dia. Já se vê no horizonte a cidade para qual a nossa serviu e serve de berço, que beleza. Noticiamos hoje uma ilustre visita…

Ademir (atravessando a transmissão): Só baboseira, vamos entrar pra tomar umazinha.

Marão: Na antiga capital… quero dizer… na atual antiga capital… bem. Ouvi dizer que no Rio de Janeiro existe uma estação de rádio pra cada cinco cabeças.

Ademir: E para que? Ficam zunindo todas as mesmas “boas novas”.

Interferências sonoras, a narração da rádio é interrompida.

Danilo: Assunto novo mesmo é a televisão. Ainda nem existe a capital e já prometeram antenas. Ademir tem razão, esse cabra não vai dar a notícia que todo mundo já sabe.

Jusepo chega correndo. Marão termina de beber o café.

Jusepo: Nada?

Marão: Engasgaram a resenha.

Danilo: Eles não têm coragem de circular um negócio desse agravamento.

Jusepo: Não demora e a coisa explode. Falta só uma fagulha.

Danilo (sorrindo): Igual na ilha.

Ademir: Toda semana esse negócio de fagulha. Aqui. (Ademir dá a Jusepo uma caixa de fósforos) Eu vou atrás de cachaça.

Sai.

Marão: O Danilo conta essa história como se tivesse vindo direto de lá para cá. Vai, conta outra vez, sei que faz seu gosto.

Jusepo e Marão riem. Danilo sorrindo narra a tomada da cidade pelos revolucionários cubanos em 1 de janeiro de 1959.

Danilo (imitando o radialista): Os fogos de primeiro de janeiro anunciavam o velho novo de sempre, quando a cidade foi tomada por eles. Desciam pela Sierra Maestra cantando, enquanto o povo se acercava, sem medo, bradando o triunfo da revolução. Eram centenas, milhares, crianças e mulheres dançando em polvorosa. Quem lá esteve não me permite mentir, Cuba deixava de ser uma ilha para alcançar grande altura em seu voo de pássaro caribenho…

Os três caminham abraçados em direção ao bar, onde ocupam uma mesa e fazem sinal à Morena.

Marão: Desce uma com canela, Morena, que é pra acompanhar os fogos no peito de Danilo.

Morena: É pra já!

Danilo (abraçando Marão com força): Você tira sarro, mas queria mesmo era meu abraço!

Marão: Seu parceiro bebeu, Jusepo. Carregue pra casa antes que ele termine contando essa história à chefia.

Danilo (dançando, falando alto): Bebi, bebi, bebi.

Ademir: Vocês estão aí, cheios de graça, enquanto Barbosa não pode nem tomar mais uma.

O clima pesa, todos silenciam.

Jusepo: Eu soube que contrataram novo chefe pra apaziguar os falatórios.

Ademir: Já três anos nesse ritmo. Ninguém tem notícia do que acontece aqui.

Marão: Quando der na rádio, todos vão saber. Se a gente conseguisse um jeito de falar.

Ademir: Não sei nem pra que serve essa rádio, o que acontece aqui, qualquer um sabe antes do locutor.

Marão: A nacional.

Ademir: Você já ouviu “Cidade Livre” alguma vez na rádio nacional?

Marão: O jeito seria mandar uma carta à sede da empresa contando tudo. Duvido que vão querer que seu nome fique manchado assim. Uma história tão bonita, construindo coisa tão importante, cheia de máculas. Ninguém quer isso! Pensam que a antiga chefia não deu conta, e não percebem que falta segurança na obra, coisa fácil de resolver.

Danilo: Quando o da vez chegar, a gente conta que os outros perderam o posto por falta de segurança no serviço. De repente pega medo e leva nossa necessidade lá pra cima.

Marão: É melhor do que ficar esticando o horário de almoço pra afetar a obra. Essa agressividade velada não cai bem.

Morena chega à mesa com uma garrafa de cachaça.

Morena (servindo os copos): Cada um com a sua fatia de ilusão.

Jusepo: Anita está aí, Morena?

Morena: Terminando de arrumar a cozinha.

Jusepo: Pois mande uma cerveja pra ela, por minha conta.

Morena: Seu Chico não gosta que beba em serviço.

Jusepo (se gabando): Seu Chico fica por minha conta também.

Morena (aponta discretamente para outra mesa): O chefe novo. Carinha de bebê, até duvidei.

Ademir: E vocês falando e gritando como se estivessem no quintal de casa. Sabe o nome dele, Morena?

Morena: Ele não disse. Perguntou se tinha whisky, com uma cara de assustado. Servi um conhaque no capricho, pra amaciar. Chegou hoje à cidade.

Ademir: Parem de olhar feito tarados, assim é pior do que anunciar aos quatro ventos que querem dar uma coça no sujeito.

Marão: Longe de mim.

Jusepo: Como se precisasse. Esse lugar já é coça o bastante.

Selma chega ao bar carregando figurinos brilhantes e se aproxima. Sua presença causa um alvoroço.

Ademir (se levantando): Selma!

Selma: Acabei as costuras, Morena.

Ademir: É pro show novo?

Selma: Amanhã, sem hora pra acabar, que é pra quem tiver folga não conseguir nem se levantar da cama no dia seguinte, de tanta ressaca!

Morena: Vai lá vestir, mostra pra gente.

Selma: Só se eu estiver louca. Assim quebra o encanto.

Morena: Parece até uma noiva…

Selma: Ai, meu coração. Não brinque com isso, meu amor, e me deixe com meus brilhos.

Vai para os fundos do bar

Cena 3 – Boas-vindas

Bernardo é apresentado por uma voz da empresa ao canteiro de obras onde será integrado como engenheiro.

Voz da empresa: A obra só para de madrugada e não é interrompida um dia sequer, embora os peões tenham um dia de folga. Se revezam. É preciso pulso firme, essa gente é folgada, e se der bandeira, te dobram ao meio.

Bernardo: Sei. Eu tenho experiência com…

Voz da empresa (interrompe): Se precisar de alguma coisa, uma vez na semana vem um carro da empresa para fiscalizar e fazer balanço, é só mandar um recado com o encarregado. Mas não tem segredo. (Anuncia a um grupo de operários que estão próximos) Boa tarde! Esse é Bernardo, novo engenheiro responsável pela obra. É a nossa voz aqui, o recebam bem, é um profissional muito experiente. (Volta a falar somente com Bernardo) Nunca, em hipótese alguma, manifeste medo deles. Quem precisa ter medo não é você.

Bernardo: Há algum banheiro aqui?

Voz da empresa: A casinha ali. (Acompanha Bernardo até o banheiro improvisado) Aqui você fique à vontade. E naquele barracão são servidas as quentinhas.

Bernardo: O banheiro é o mesmo pra todos?

Voz da empresa: No alojamento, separamos um quarto para os supervisores, que é pra não bagunçar as intenções. Os lugares em comum costumam misturar coisas que não devem se misturar. É preciso ter bom senso, cada um com seu cada qual.

Bernardo pede licença para ir ao banheiro. Quando sai, a voz da empresa está anunciando uma mudança na forma de pagamento dos trabalhadores. A obra está paralisada e todos escutam a notícia.

Voz da empresa: É preciso seguir firme para o cumprimento dos prazos estabelecidos entre a empresa e o governo. A partir de hoje, os pagamentos não serão mais feitos semanalmente, como antes.

Jusepo (gritando): Pois estamos todos cumprindo os deveres até a carne! Podemos saber a razão da mudança nos pagamentos?

Danilo: Isso é retaliação! As condições de trabalho estão péssimas, muita gente se machucando e vocês fingem que não acontece nada!

Voz da empresa: Repetimos. A partir de hoje, os pagamentos não serão mais feitos semanalmente, como antes.

Bernardo se aproxima dos operários, apreensivo.

Bernardo: Boa tarde.

Ademir: Não é que ainda existe pra quem o dia seja bom!

Marão: Boa tarde, chefe.

Bernardo: Bernardo. Pode me chamar pelo nome.

Aperta a mão de Marão.

Danilo: Você sabe o que está fazendo aqui?

Bernardo: Perdão?

Danilo: Você sabe o motivo de ter sido contratado?

Marão: Não liga pra ele não, chefe, está nervoso com a notícia do pagamento.

Jusepo: Sabe o que é, Seu Bernardo?

Bernardo: Pode me chamar de Bernardo, sou como vocês.

Jusepo: Não é nada pessoal, mas você chega assim, com a pele boa, sem marca de olheira, não faz ideia do inferno onde está se enfiando. Na semana passada morreu um peão nessa obra. Um qualquer, não. O Barbosa. Já ouviu falar do Barbosa? Ele não foi o primeiro. Nem o quinto. Os homens da empresa disseram que ele desapareceu, sumiu do serviço. Mas nós sabemos que ele caiu aí, e deram fim no corpo. Só que tão boa praça era o Barbosa… Não teve jeito de sustentar. Demitiram o antigo engenheiro para ter alguém em quem botar a culpa. E agora veio você.

Marão: Que tipo de boas-vindas é essa, meu amigo? (A Bernardo) Olha, Seu Bernardo, se eu disser que por aqui anda tudo na santa paz de Cristo, estarei mentindo. Talvez o senhor pudesse nos ajudar, dar um aviso à empresa de que estão faltando equipamentos, coisa fácil de resolver. Pra ninguém correr o risco…

Ademir (interrompe): De dar sumiço, de virar pó.

Bernardo (apreensivo): Claro, verei o que posso fazer. É complicado, mas voltem ao trabalho, vai dar tudo certo.

Bernardo sai. Os trabalhadores estão inquietos com a notícia sobre o pagamento. Jusepo toma a frente e discursa.

Jusepo: Atenção, atenção! O que acabamos de ver é uma demonstração de força. Nossa insatisfação ficou clara, e eles vieram nos provar que são mais fortes. Mas eles são poucos! Nós somos muitos! Precisamos avançar em nossas ações! Os pequenos atrasos já não são suficientes, revelam nossa fragilidade. Eles estão pedindo! Trabalhador 1: É isso aí, ninguém aguenta mais. Vamos pra cima!

Jusepo: Precisamos calcular os passos, medir as forças e decidir pela melhor ação.

TRABALHADOR 1 (grita): Isso não serve, são só palavras! Eles não escutam palavras.

TRABALHADOR 2 (grita): Do jeito que vai, é quebrar tudo ou não tocar em nada!

Jusepo: É preciso pensar, e depois agir.

Trabalhador 2: É preciso agir pra não morrer. Agir pra poder depois pensar.

Ademir (para Jusepo): Quero ver sair dessa, Jusé.

Danilo: É o que eles querem, que fiquemos atordoados!

Marão: Minha mãe dizia, que Deus a tenha, que não há nada que uma noite de sono não dê jeito. Pensar um dia só, que mal pode fazer?

Jusepo: Boa, Marão! Amanhã nos encontramos à noite e pensamos na melhor forma de agir. Com um pouco só de pensamento, já é o suficiente.

Trabalhador 1: O peão gosta do pensamento, da palavra, de dizer o que precisa ser feito. Daqui a pouco vira chefe.

Ademir (apaziguando): Tá tudo entendido, acabou. (A Jusepo) Vai Jusé, melhor falar nada. Você precisa ter mais cuidado, vão acabar entregando sua cabeça. E o rapaz tem razão, tanto ideal e palavra bonita não combinam com a feiura daqui. Não tem jeito de ser bonito. Entendeu? E você não é melhor que ninguém, vamos voltar que ainda tem muito tempo de sol.

Voltam ao trabalho.

Cena 4 – Sustentar

Narradora: Dois ensaios sobre um corpo ereto.

a

Narradora: Um ator e uma atriz investigam possibilidades no teatro.

Ator: Se eu fizer em pé, dá mais credibilidade. As mãos (Busca algumas posições para as mãos), olhando de longe (Ri), flutuam como bailarinas.

Atriz (entrelaçando as mãos do ator à frente, uma na outra): Você já viu a panturrilha de uma bailarina? Pra ser leve, é preciso saber ser pesado. Tenta primeiro sem as mãos, pensando nas palavras, o que querem dizer.

Ator (soltando as mãos): O corpo quer dizer, não só as palavras. Não só as palavras quer dizer.

Atriz: Então não fique falando, apenas diga.

Ator se volta para outra direção. Entrelaça novamente as mãos. Sua fala é neutra.

Ator: Na maioria das vezes (pausa) o que as pessoas querem (pausa) é uma coisa comum. (pausa) Terrivelmente simples. (pausa) O que faz com que isso não lhes seja concedido não é a simplicidade (pausa) ou a dificuldade. (pausa) Custar muito (pausa) ou pouco. (pausa) E sim o fato de que elas querem. (pausa) O comum é o que elas querem. (pausa) O comum. (pausa) O desejo. (pausa) É o suficiente.

Atriz: É o suficiente pra elas ou é o suficiente pra que não sejam ouvidas?

Ator: Deixar em aberto, sem ênfase, me parece melhor. Assim as palavras podem encontrar pontas soltas por aí.

Atriz: As pessoas podem querer coisas muito estranhas, além de coisas comuns, e suas palavras podem encontrar essas pontas e com elas existir, como força material.

Ator: Eu não posso querer por elas!

Atriz: Você pode querer por você.

Ator: O que eu quero é muito simples.

Atriz: A gente pensa que é simples. Tenta dizer pra mim.

Ator (para a atriz): Na maioria das vezes o que as pessoas querem é uma coisa comum, terrivelmente simples. O que faz com que isso não lhes seja concedido não é a simplicidade ou a dificuldade, custar muito ou pouco. E sim o fato de que elas querem. O comum é o que elas querem. O comum. O desejo. É o suficiente.

Atriz (sorri): Isso é lindo.

Ator: O que faz com que uma pessoa seja ouvida por muita gente?

Atriz: Isso é um mistério.

Ator: Sua vez.

A atriz fala ao ator em tom de conversa.

Atriz: Quase sempre o que nós queremos, os que não possuímos nada e somos obrigados a trabalhar, é muito simples, e pode ser facilmente atendido, se for uma prioridade. Aos que controlam o que será ou não atendido incomoda muito que ousemos querer alguma coisa, e além de querer, que digamos. Mas nós queremos, e isso é o bastante.

Ator: Dito assim, soa como intimismo no alto-falante.

Atriz: E quem disse que é para ser dito no alto-falante? Pra você, uma pessoa escolhe ser uma liderança, e vai se esforçando, se preparando, percorrendo um trajeto escolar até alcançar a graça?

Ator: Como uma bailarina?

Atriz: Eu não sei se o que o nosso corpo quer é a leveza de uma bailarina, seus calos embalados em papel de seda.

Ator (rindo): Fazer parecer fácil é uma forma de iludir. Fazer, apesar de difícil, é mostrar que é possível.

Atriz: Então você já conhece o corpo de seu personagem, soldado de las ideas.

Atriz e ator dançam.

b

Narradora: Jusepo e Danilo experimentam formas de narrar em praça pública.

Danilo e Jusepo estão sentados num banco da praça em frente ao bar, ao cair da tarde.

Jusepo (a Danilo): Precisamos de uma posição coerente. Firme, sem nos expor desnecessariamente. Se apostamos tudo de uma vez, perdemos o que viemos fazer aqui. Não podemos ser intransigentes sem antes deixarmos claro o que aperta o sapato, tiraria a nossa razão! Quebrar tudo na calada da noite, como querem alguns, é suicídio! Somos homens, não ratos!

Danilo: Tenta de pé. Falando assim, suas palavras vão pelo ralo.

Jusepo sobe no banco e dirige a fala à praça vazia.

Jusepo (grandiloquente): O chefe escolhe se fala ou não à empresa os problemas da gente. E a gente nunca sabe se o pessoal lá de cima sabe mesmo o que acontece aqui todo dia.

Danilo (interrompendo): Só que olha pra cá, né, Jusé, que em praça vazia quem responde é o eco. (Danilo ri) Acho que não precisa ficar aí no alto.

Jusepo desce do banco e se volta a Danilo.

Jusepo: Quando o caldo começa a ferver, eles mandam o chefe embora e chamam outro, (Ironiza) vai ficar tudo bem! Mas e se a gente fala na cara deles? Aí a coisa muda de figura, não dá mais pra alegar desengano.

Enxuga as mãos na calça

Danilo: Você acha que faz sentido conversar se já existe força pra quebrar tudo?

Jusepo: Até você com essa história?

Danilo: Lembro de cada palavra de sua última carta, parceiro. (Cita a carta) Não há de restar pedra sobre pedra naquele lugar. Pronto, é o que eles querem. É o que você quer! Estou aqui pra não permitir que se esqueça.

Jusepo: As coisas têm um jeito de ser, Danilo. E não é assim, desembestado, que a gente chega em algum lugar. Uma coisa de cada vez. Não é porque eu quero, que dá pra querer pra já. Assim vai o carro na frente dos bois.

Danilo: Pronto. Pois deixe os bois dirigirem o carro. Eu quero pra já. E não só eu, você sabe bem. Não tem como controlar!

Jusepo: Às vezes é preciso ouvir a voz da consciência!

Danilo: E a consciência é você?

Cena 5 – Que brilhe a Lua

Selma se prepara para o show numa sala dos fundos do bar, onde mora. Morena entra.

Morena: Te esperam.

Selma: Como estou? Me ajude com os botões. (Dá as costas para que Morena abotoe o vestido)

Morena: Não bordava um vestido para hoje?

Selma: Pois. Há outra ocasião guardada para ele.

Morena: Você fica linda nesse. Posso saber qual é a ocasião?

Selma: Um show. Numa festa da alta.

Morena: Vai sair da cidade?

Selma: Aqui mesmo. E parece que precisam de gente pra servir. (Pega a mão de Morena) Vai lá me ver, eu dedico aos seus olhos de jabuticaba.

Morena ri e faz silêncio.

Morena: Sabe que queriam um jeito de levar aos donos das empreiteiras o conhecimento de que estão morrendo nas obras por falta de segurança?

Selma: Ai, ai, ai, Morena, não me sobra espaço nem pra gostar de você!

Morena: A arte sempre toca as pessoas, Selma, você tem esse dom.

Selma: Você quer transformar meu grande dia num palanque político!

Morena: Artístico! Sério! Um momento de pausa em que tudo se suspende e um grande grito é dado, que alerte, que choque!

Selma: Esses meninos fizeram a sua cabeça.

Morena: A cabeça é minha, sempre esteve aqui.

Selma: Meu repertório é de amor, você sabe. Não existe choque mais eficaz, mas não para isso que vocês querem.

Anita bate na porta.

Anita: Pronta?

Selma: Em um minuto.

Morena: Leva em conta, te peço.

Selma: Vou pensar, Morena, vou pensar.

Selma beija Morena e sai. O bar está cheio. Anita e Morena assistem enquanto trabalham. Selma sobe num palco improvisado e canta.

Canção

Selma: Mañana no puedo ver
mi tiempo es ahora
Si piensas demasiado
el grano de la vida te roba la cabeza
El amor
El grano de la vida
La sorpresa del amor
Si hay algo en tu cuerpo pidiendo el abismo, salta
La muerte quiere el aliento
El amor quiere el agua
La muerte quiere el aliento
El amor quiere el agua
No tengo amigos, hijo
Solo tengo amores
Haber negado un gran amor
Es lo que la vida me debe

(A Morena)

La muerte quiere el aliento
El amor quiere el agua
El amor quiere el agua

Ademir: Bravo! Bravo! (Convoca os aplausos)

Anita: (a Morena) É a minha favorita.

Morena: Ela é a minha favorita.

Selma: Meus caros, bem-vindos a essa noite tão especial. Não há noite que não seja. Importa mais que brilhe a lua, (A Morena) seus olhos foguentos e as pedras de meu vestido. O resto é bijuteria.

Jusepo tira Anita para dançar.

Anita: Estou de serviço, homem!

Jusepo: Pois só me faltava ter de pedir você emprestada a Chico.

Anita: Vou tomar o caminhão pela manhã e gritar seu nome na obra, chamando pra dançar.

Jusepo (rindo): Você é engraçada, diz cada loucura. Pode ir, eu vou gostar.

Anita ri, se desfazendo de Jusepo e volta ao trabalho. Ademir faz sinal a Morena para que traga mais bebida.

Ademir: Morena, Morena, sua amiga é uma flecha no peito!

Morena (cortando Ademir): Põe o copo na mesa, Ademir.

Marão dá uma golada na cachaça. Morena enche os copos vazios. Há dois montes de cartas de baralho em cima da mesa. Marão dá cartas a quatro.

Marão: Hoje eu não quero nenhuma notícia. Nem boa.

Morena: Eu consigo um jeito de vocês levarem as más notícias lá pra cima.

Marão: Hoje não, Morena, hoje não.

Jusepo: Como, mulher?

Morena: Falava com Selma, ela vai dar um show pra alta e poderíamos fazer uma participação. Só que não tem espaço para falatório. É um palco. Precisa de artistas.

Danilo: Para poeta, Jusepo leva jeito.

Todos riem.

Jusepo: Eu não sou artista. Como seria, Morena?

Morena: Quando ouvimos uma canção que interrompe o curso do sangue, a gente esquece até de respirar. Sabe?

Ademir: O nome disso é Selma.

Danilo: De amor?

Morena: Nesse caso, de indignação. Selma dará o tom.

Marão: Gostei.

Danilo: É a chance, Jusé!

Jusepo: Assim?

Marão: Como assim, assim?

Jusepo: Não foi como eu pensei.

Danilo: Chance é chance.

Marão: Vem de trem, vem a cavalo, vem de vestido.

Jusepo: E Selma concordou com isso?

Morena: Ainda não, está pensando. Mas vai.

Jusepo: Selma é jogo duro, vai mudar de ideia?

Morena: Nesse caso não vai passar pela ideia, Jusé. (Sorri, misteriosa)

Morena sai. Jusepo, Marão, Ademir e Danilo tomam as mãos de cartas da mesa para o jogo.

Cena 6 – De gala

Na despensa da cozinha do salão onde acontece a festa dos empreiteiros e políticos, Marão, Danilo, Jusepo e Morena se preparam para entrar em cena.

Morena: Eu trouxe uma sacola com roupas e adereços da Selma.

Jusepo: Não tem nenhum palhaço aqui, Morena, viemos apresentar a nossa posição.

Danilo: Deixa eu ver! (Danilo abre a sacola e vai tirando as peças de dentro) Olha essa gravata, quanto brilho!

Jusepo: Eu trouxe o capacete.

Marão (divagando): Um artista operário ou um operário artista?

Morena: Selma me fez prometer que não seria um palanque, Jusé. Capacete não tem nada a ver com arte.

Jusepo: E você sabe alguma coisa de arte? Capacete tem tudo a ver com a nossa arte.

Danilo: Capacete eu uso todo dia. Gostei desse chapéu, o que acha, Morena, fica bem em mim? (Morena ri)

Selma entra, já maquiada e vestida para o show.

Morena (aplaudindo): Uau!

Selma: Ainda estão assim? Aprontem-se, não temos muito tempo! Você maquia eles, Morena?

Jusepo: Maquiagem é coisa de mulher e de palhaço. Vocês ficam gostando de usar essas coisas, daqui a pouco vão gostar de aparecer pra essa gente, igual a Selma.

Morena: Jusepo quer entrar de capacete, Selma.

Selma: Se vocês fizerem o que combinamos, Jusepo pode entrar até de cueca.

Jusepo: Ela só está preocupada com o próprio sucesso.

Selma: Esse é o meu trabalho. Agora concentre-se, hoje é seu trabalho também. (Jusepo esbraveja)

Selma maquia Morena.

Selma: Ademir não veio?

Marão: E tem jeito de remover Ademir da teimosia? Aquilo lá tem jeito não. Disse que preferia ficar bebendo no bar da vila.

Danilo (se vestindo): Ficou com medo de ser artista e gostar, depois ter de voltar pra obra.

Jusepo: Que merda. Tenho mais frio na barriga agora do que quando estou lá em cima, pendurado no andaime.

Selma: É assim que se fala antes de subir no palco, Jusepo. Merda. Só que fala bem alto. Olha na minha cara de palhaça maquiada e fala, merda!

Jusepo (sem graça, falando baixo): Merda.

Selma: Tá muito miúdo. Não inventou de fazer? Faz com vontade! Vai. Mais, do tamanho do frio na barriga.

Jusepo (fecha os olhos e grita): Merda!

Selma sorri e passa a mão na cabeça de Jusepo.

Selma: Não vai doer. Fiquem a postos e atentos para quando eu chamar.

Morena (a Selma): Estou bem?

Selma: Sempre.

Selma sai. No palco, um mestre de cerimônias dá as boas-vindas aos convidados.

Mestre de Cerimônias: É com imenso prazer que recebo os distintos senhores nessa belíssima noite brasiliense. Já podemos dizer brasiliense? Creio que estamos tão perto, que me permito dizer sim. Na próxima semana, inauguraremos o primeiro monumento de nossa cidade, celebrando a vida e a memória de um dos bravos idealizadores do sonho que hoje já é quase realidade. O senhor Aníbal Florinto, que deus o guarde, é merecedor de muito mais do que seu busto abrindo caminho. Mas é nosso modo de reconhecer a sua ótima pessoa, sua excelência e bravura. Partiu a cinco meses de completar cem anos, uma pena! Viveu até o fim de seus dias com dignidade e amor ao nosso país. Um nome importante que jamais será esquecido. (Pausa e olha os convidados) Mas hoje não é dia de tristeza. Convidamos pra fazer maravilhosa a noite dos senhores uma promessa da música brasileira, devo lhes apresentar a belíssima Selma!

O público e o mestre de cerimônias aplaudem.

Selma: Agradeço muitíssimo a recepção calorosa. É uma honra cantar para os senhores!

Selma sobe no palco, é aplaudida e canta canções de amor. No fim do show, anuncia a apresentação surpresa.

Selma: Muito obrigada! Mais uma vez, muito obrigada! Antes de me despedir, gostaria de pedir licença pra apresentar aos senhores, gente de tanta visão, um grupo de artistas que começa a trilhar sua estrada, e veio mostrar seu número. Não se enganem, o futuro da arte sempre começa em algum lugar!

Observando da porta da cozinha, Marão, Morena, Danilo e Jusepo.

Jusepo: Isso não foi combinado, não somos artistas.

Marão: Selma é boa com as palavras, faz o jogo, convence.

Danilo: Também gostei.

Morena: Ela sabe o que tá fazendo, vai gente, anda, chegou a hora!

Os quatro sobem ao palco e Selma recua a um canto. Silêncio por uns instantes.

Canção

Morena (canta): Dos andaimes vi
Céu e chão não são iguais
Planar desde o alto é se confundir
Mesmo aqui, onde linhas se confundem

Linhas são riscos de pisar
Gente não é bicho de voar
Segura para não cair, segura
Gente não é bicho de voar.

Jusepo joga o capacete para cima, que se espatifa no chão, fora do palco. Marão abre uma garrafa, roubada da cozinha, e joga vinho sobre o capacete. Danilo tira o chapéu, o pousa sobre o peito.

Silêncio.

Um convidado da festa se levanta, grita “Bravo!” e aplaude. Eles são ovacionados. Jusepo, Marão, Danilo e Morena ficam atônitos no palco, sem reação. Selma volta à cena, dá as mãos entre eles, e os convoca a agradecer. Agradecem.

Na despensa da cozinha, Selma, Jusepo, Marão, Danilo e Morena conversam enquanto se trocam e tiram a maquiagem.

Jusepo: O que foi aquilo?

Marão: Se fomos aplaudidos, é porque deu certo!

Jusepo: Não seria o contrário?

Selma: Não temos como ter certeza sobre o que o outro sente, percebe, vê.

Morena: Foi bonito, Jusé. Eu achei que o capacete fez sentido.

Jusepo: Por que você fez aquilo, Selma? De agradecer?

Selma: Aprenda, Jusepo, quando aplaudem, nós agradecemos. Assim é.

Jusepo joga o capacete no chão.

Jusepo: Pra mim deu. Muitos de nós morrendo, e vocês fazendo poesia! Arte! (Sai)

Selma (gritando para Jusepo) :Desde que existe a vida, existe a morte e existe a arte!

Danilo: Deixa, Selma. A cabeça esquentou. Vai passar. (Coloca o chapéu sobre o capacete e sai atrás de Jusepo)

Morena recolhe objetos e figurinos e os guarda na sacola.

Morena (a Selma): Você agradece em qualquer situação? Mesmo se atiram tomates com os olhos, enquanto aplaudem?

Selma: Os aplausos e os tomates fazem girar. Enquanto gira, o vento sopra. Parece estranho, mas a gente se acostuma com o movimento, e se ele parar, já não se sabe o que fazer.

Morena: Esse movimento me deixa tonta, e a vertigem não é de amor.

Morena sai. Selma tira a maquiagem olhando um espelho de bolsa e se encara de cara limpa.

Cena 7 – A passagem ou O voo de Jusepo

Jusepo sozinho, no alto de um andaime, se equilibra sem equipamentos de segurança. O ator que faz Jusepo narra ao público.

ATOR-Jusepo (narra): Do alto, no começo, se tem a impressão de que a qualquer momento o pé pisará em falso e então o corpo entregará as forças à verticalidade do espaço, livre, carregando apenas seu peso. Com o tempo se acostuma com a corda bamba. Ao subir, sabemos que um dia ou outro pode ser a nossa vez. Com a própria morte nunca se acostuma, mesmo que ela fungue o seu cangote e você não saiba o que dizer. Então ela mesma diz: “você vai, num acidente de trabalho que será tratado como abandono do posto de serviço. E você não tem tempo de se preparar. Você parte sem levar nada, sem se despedir.”

Jusepo segura o próprio corpo enquanto se equilibra.

Marão (fala de um lugar mais baixo): É verdade que você, no encontro com deus, levava apenas um chapéu de palha?

Jusepo: Meu nome não interessa. Caso não chegue lá, nunca mais serei visto.

Marão: Ele deixou que você embarcasse assim, sem bagagem, como um louco?

Jusepo: Estou seguro de que amanhã ninguém mais se lembrará do dia de hoje. Os erros serão substituídos por acertos e assim decolará o futuro.

Marão: Futuro é o filho menor da vida e você é uma pessoa.

Jusepo: E daí?

Rádio Cidade Livre: Nunca pudemos imaginar que um homem de um país como o nosso fosse capaz de concentrar tanta sorte. Quando quem tem sorte atravessa os ares num aviãozinho, se encolhem as tempestades. Se assim não é, o motor ao menos aguenta. Mas caso não aguente, está aí para isso o homem e sua carne. A carne nem sempre aguenta. A sorte sim. Por isso acreditamos que o homem de sorte chegará. A coragem não é nada. Chegar é tudo.

Comissária de bordo: Bem-vindos a bordo. O aparelho cheio de falhas no qual embarcamos, os senhores e eu, é bem melhor do que os de antes, asseguro. Enquanto voamos, lutemos contra esse avião, e contra o que é arcaico.

Jusepo: Daqui o vento é mais forte que os músculos.

Marão: Amarre o corpo em sua vontade.

Jusepo: E se na hora H eu falhar e tiver medo de embarcar?

Marão: Estando sozinho, segura uma mão na outra.

Jusepo olha para o céu, segura uma mão na outra.

Canção

Jusepo: De avião se chega mais depressa
Da janela, o verde enorme, tão pequeno no caminho
Comer comida chique
Se cobrir de cobertor
O vento frio não me alcança
por trás do vidro temperado
Do alto o Brasil é gelado
quando olhado como planeta
e não me atinge

Um passarinho prateado
no azul do céu encontrasse
as enormes asas à motor
Teria horror
Teria inveja
Seria tragado pela boca da peçonha

Voa, pena
Voa, pino
Ai, como eu queria!

Coro: Voa, pena
Voa, pino
Ai, como eu queria!

Um grave barulho interrompe a canção. Bernardo dá um grito. Num acidente, Jusepo tem a cabeça decepada por uma máquina, e seu corpo é tragado. Os operários recolhem a cabeça de Jusepo, que escapou de ser concretada e coagem Bernardo a levá-los à vila para entregar o que resta do corpo a Anita.

Cena 8 – Tem pedra no feijão

Na frente do bar estão Anita e Morena, sentadas na soleira, com sacolas de mantimentos.

Morena: Não há de ser nada, imagina, não é sempre, todo santo dia, que a notícia é ruim. Ontem mesmo, chegou mais cedo o comboio afobado e era só fome. Danilo tinha machucado o dedo, e assombrado, porque podia ser pior, vê? Vai ver só atrasaram nosso feijão e…

Anita (separando o feijão, lançando os ruins ao chão): Sente o cheiro da poeira? Quando vem rara chuva eu torço pra encher tudo d’água, mas não tem beirada o horizonte.

Morena: É, então, fazia um lago bonito um lugar desse. Pena não ter quase criança pra brincar. Um dia vai ter, sua e de Jusepo. (Enxuga o suor da mão no vestido. Põe a mão no ombro de Anita) Lá vêm vindo!

Se aproxima na estrada um carro com quatro homens, é meio-dia. Bernardo está no volante. Descem Danilo e Marão, atônitos. Morena se levanta.

Danilo (para Morena): Tarde.

Anita (jogando feijão ruim nos pés de Danilo): Já conheço o prelúdio.

Marão (sorri apreensivo): Hoje tem feijão novo!

Anita começa a jogar pedrinhas, em vez de feijão, nos pés de Danilo.

Danilo (se agacha e começa a recolher os feijões entre as pedras): Todos os dias alguém toma estrada, verdade oficial, os cabras desaparecem, somem, tomam algum rumo, rabo de saia, cachaça, ninguém sabe, um horizonte comprido desse… (Morena, de pé, aperta o ombro de Danilo, Anita levanta os olhos.)

Morena (interrompe): Eu nunca dei trela pra homem nenhum foi por causa disso.

Anita se levanta, vai até o carro e se dirige a Ademir, que segura a boca de um saco preto.

Anita: Se esse daí tá junto, coisa boa não pode ser. (Bernardo engole seco) Desembucha, Ademir, que seus comparsas estão de missa pra cima de mim. Eu não quero notícia frouxa, fala logo que tá morto, merda! É meu, é só mais um. Cadê?

Danilo (chorando): Se acalma, Anita, é duro, eu sei, é duro demais. A gente vai te ajudar, se quiser ficar, se quiser voltar, se alguém tentar tirar você daqui, ninguém vai deixar, a gente segura as pontas. Jusepo era homem bom, você sabe, nunca ia te deixar numa situação dessas, pelo amor de deus…

Anita (para Bernardo): Onde está, sumiram com ele também?

Ademir: Eu quero te dizer uma coisa boa. Promete que vai se acalmar. Não deu tempo de desaparecerem com ele.

Ademir acena para Bernardo, indicando que ele deve partir. Bernardo vai embora com o carro.

Morena (sorrindo, delirante): Que brincadeira sem graça, onde ele está?

Ademir dá o saco preto nas mãos de Anita, sob gritos e protestos de Danilo e Marão. Morena dá um berro. Anita coloca o saco no chão e cai sentada, depois se deita ao lado dele. Segura a beirada do saco, sem abrir, como se fosse uma das mãos do marido.

Danilo (ainda chorando): Pensa que amigo nem mulher, ninguém aqui, até hoje, sepultou um corpo de pessoa amada. Velório, nada! O que importa é que você vai poder enterrar com vela, com reza, com tudo que é direito de Jusepo.

Ademir: Até no fim, Jusepo perdeu a cabeça, mas não se perdeu da gente.

Marão: Isso é coisa de dizer, Ademir? (A Morena) É bom vocês entrarem, antes que alguém nos veja aqui e venha bisbilhotar.

Morena (tentando levantar Anita do chão): Vão, eu fico com ela e organizo tudo. Anita precisa descansar, vamos pra casa, dá aqui o feijão bom…

Anita (ao saco preto): Era essa a promessa? Promete, promete de novo! Agora fala, que você tem boca é pra falar, cada palavra. Ou pra calar. Jusepo. Jusepo.

Morena: Mulher, vamos nos recolher, vem. Danilo, tira esse saco daqui.

Anita (empurra Morena): Ninguém bota a mão no meu Jusepo! Sai! Não tem vela, não tem choro, merda nenhuma de ninharia, deus que me perdoe, mas é de jeito nenhum que eu deixo Jusepo debaixo de uma terra poeirenta, envenenada, fedida feito essa. Essa terra pisada, cruzcredo. Sai!

Morena: Como é que vocês me trazem a cabeça do homem num saco preto? Seus desmiolados!

Anita: A gente vai dar uma festa.

Danilo: Esse é o espírito, mulher. Fazemos uma festa pra celebrar a vida do amigo, lembrar tudo de bom que ele trouxe pra gente, sua presença alegre. Jusepo sempre falou que quando morresse não queria gente babando e chorando em cima dele. Gurufim que ele merece.

Anita: A gente vai dar uma festa.

Fim do primeiro ato.

Segundo Ato

Passados quatro dias da morte de Jusepo, a empresa anuncia que Anita deve deixar o alojamento, alegando que o marido não apareceu mais para o serviço. Tendo testemunhado o acidente, Bernardo está pressionado entre a posição cínica da construtora e a demanda por respostas por parte dos trabalhadores.

Cena 9 – Aparar a notícia

Sábado, no salão de barbearia da Cidade Livre.

Jairo: Quem vem lá! Bom dia, meu amigo.

Ademir: Dia.

Jairo: Vejo que já faz tempo que não lhe colocam a navalha no pescoço, está parecendo um cachorro. Se acomode, que hoje é sábado e lhe faço um precinho.

Ademir senta-se, Jairo arruma uma toalha sobre os ombros do cliente.

Jairo: Quer o jornal?

Ademir (incomodado): Sei ler não.

Jairo: E você acha que quem sabe, lê alguma coisa embrulhado pro abate? Veja as figuras, é nelas que se enxerga o ocorrido. Diferente da voz da rádio, a figura não mente.

Ademir faz silêncio e pega o jornal da mão do barbeiro. Deixa sobre o colo, sem abrir.

Ademir: Eu gosto da rádio, que você escolhe a voz que interessa. Se não gostar, escolhe outra. Mas escuto mais pela música, notícia que precisa mesmo ser dada não se encontra, nem nas figuras. O que essas letras dizem? Aqui, em cima de onde tem foto de obra?

Jairo lê a notícia com dificuldade.

Jairo (lendo): Cidade nova já está na pista, prestes a decolar. (Para Ademir) Parece que a primeira inauguração é essa semana. Uma homenagem.

Ademir: Dizem que foi um construtor. Quase cem anos. Nunca foi visto por aqui, não conheço.

Jairo: E você conhece a mulher que anda assombrando os canteiros?

Ademir (abre o jornal, procurando uma figura): Assombrando? Do que você fala?

Jairo: Essa não deu aí não. (Pega de volta o jornal da mão de Ademir) Estão dizendo que uma mulher foi vista nas últimas noites circulando pelo canteiro. (Passa a navalha pelo pescoço com espuma de barbear) Sozinha. Leva sempre uma trouxa pendurada no ombro, amarrada de lençóis.

Ademir (apreensivo): Você pode ir um pouco mais depressa? Preciso ir.

Jairo (rindo): Não é uma coisa esperta a se pedir a alguém que lhe passa a navalha, jovem.

Ademir (se olhando no espelho): Já está ótimo, Jairo. O bigode não precisa.

Ademir se levanta, tira a toalha do ombro e se limpa, enquanto Jairo tenta fazer por ele o mesmo.

Ademir (saindo): Eu pago na segunda, que é quando cai o do mês.

Jairo: Essa mudança nos pagamentos atrapalhou todo mundo. Vocês não recebem, eu não recebo.

Ademir (impaciente): Desculpe, Jairo, mas é o que tem.

Jairo: Vá, jovem, pendurar mais um quando tudo já está pendurado não faz mal.

Ademir sai às pressas. No caminho, avista Danilo.

Ademir: Anita ainda não resolveu o enterro?

Danilo: Ela não me responde mais. Finge que não escuta.

Ademir: Deve estar traumatizada. Você sabe o que estão falando?

Danilo: Pois eu também estou tentando não ouvir nada, que é pra seguir adiante.

Ademir: Viram Anita no canteiro de madrugada, Danilo. Isso pode ficar feio pra ela. Imagina, encontram essa mulher perambulando com uma cabeça de gente na sacola, ainda vão culpar a coitada pela morte. Morena precisa nos ajudar a dar logo um jeito nisso. Se ela não aceitar, a gente mesmo enterra, sem ela saber. Não é bom, mas é melhor.

Danilo, cabisbaixo, faz silêncio.

Ademir: Desculpe. Mas estou preocupado. Fomos nós que levamos, agora é nossa responsabilidade.

Danilo: Vamos dar mais um tempo, ela vai aceitar. Sempre foi mais centrada que Jusepo.

Ademir e Danilo veem Anita chegar ao bar e ser recebida por Selma.

Ademir: Quer que eu fale com ela?

Danilo: A construtora a mandou embora do alojamento, alegam que Jusepo não foi mais trabalhar. Vai ficar com a Selma até arrumar um jeito de voltar. Nem isso garantiram.

Os dois fazem silêncio enquanto observam Anita e Selma.

Danilo: Você está com um pouco de sangue no pescoço.

Ademir (passando a mão no pescoço): É da navalha.

Cena 10 – Um corpo é um corpo

Nos fundos do bar, Selma apresenta os aposentos a Anita. Morena as espera.

Selma: Fique o tempo que precisar, Anita. Tem minha palavra.

Morena: Dê aqui suas coisas, minha amiga. Descanse um pouco. (Pega a mala das mãos de Anita e a pousa no chão.)

Anita se senta, e fica olhando ao redor, com sua mala aos pés. Selma se aproxima e pega sua mão.

Selma: Mulher, olha pra mim. Você precisa enterrar Jusepo. Já estão falando.

Anita: Você enterraria uma parte da pessoa que você ama, sem o resto do corpo? Ele nunca vai descansar assim.

Selma: Alma não tem forma, Anita. Se desprende e vai, inteirinha, pra onde tem que ir.

Anita: Não sabe que Jusepo não tinha alma? Não acreditava em nada pra depois daqui.

Morena: E só tem alma quem acredita? Pensa comigo, Jusepo não ia querer que você ficasse assim apegada.

Anita: Não é apego.

Anita abre a mala e tira de dentro um conjunto de cartas.

Anita: Ontem Danilo veio trazer as cartas. Ele não sabia escrever.

Selma: Você sabe?

Anita faz que sim com a cabeça.

Anita: Você já pensou quanta gente será enterrada se eu enterrar Jusepo?

Morena: Vai fazer justiça a muita gente.

Anita: Que justiça? O esquecimento?

Selma: Enterrar não é esquecer.

Anita: Enterrar quem está morto não é esquecer. Mas é como se ele estivesse vivo. A empresa nem reconheceu a morte por acidente de trabalho. Pra eles Jusepo está vagando por aí, atrás de outro trabalho, de outra mulher, é o que dizem. Então está vivo.

Morena: Mas quem é importante que se lembre dele? Que tenha um lugar onde ir e saber, está aqui um dos meus.

Anita: Não é um corpo como os outros.

Selma e Morena fazem silêncio, constrangidas, se entreolham.

Anita: Não falo por faltar o restante do corpo. Se eu cobrir Jusepo de terra, darei a eles o que querem. Ele precisa estar exposto, às vistas de todos.

Selma: Eu não consigo ver como isso possa ser bom, Anita. Entendo seu ódio, sua dor, mas isso não tem cabimento. O corpo dele merece descansar.

Anita: Nesse lugar nada tem cheiro, a não ser o pó. Tudo descansa. (Cheira as cartas) Suor tem cheiro. Sangue tem cheiro. E carne.

Marão e Danilo batem à porta.

Marão: Viemos trazer um pão doce. (Dá uma sacolinha a Anita)

Anita: Obrigada.

Danilo: Está melhor? Como se sente hoje?

Anita: Estou bem, agradeço.

Marão: Queremos estar presentes no enterro do amigo. Você precisa de ajuda?

Danilo: Ademir sugeriu que fizéssemos à sombra do angico, na estrada.

Anita: Obrigada pelo pão, podem ir.

Danilo (a Morena): Ela ainda está com aquelas ideias? (A Anita) Sabe que eu tinha Jusepo como um irmão, não posso concordar. Ele ia querer que eu cuidasse de você. Que seguíssemos adiante. Mas não desse jeito.

Anita não responde. Se levanta e começa a desfazer a mala e arrumar as suas coisas no quarto. Selma faz sinal para que as deixem a sós. Danilo e Marão saem.

Selma: Vou fazer um café novo para tomar com esse pão doce. Vem.

Morena dá a mão a Anita e as três saem.

Cena 11 – O que é um monumento

Bernardo acorda em casa com a camisa molhada, com a visão delirante de uma arena de operários a sua volta, gritando revoltados pelas mortes e desaparecimentos. Aflito, conversa com seus interlocutores imaginados.

Canção

Bernardo: No sonho desta noite
Vi um grande temporal

Coro:Ele atingiu os andaimes
Curvou a viga
A feita de ferro
Mas a viga carne dos homens
Dobrou seu corpo pro fundo do inferno.

Bernardo (recuando): Eu entendo as reclamações, são justas. Mas não há mesmo nada de bom? Digo, é verdade, o que aconteceu é terrível e precisa ser cuidado pra que não se repita. Só que a revolta não vai ajudar ninguém a resolver! Precisamos ser ponderados.

Coro (avançando): Sobre o couro de quem?

Bernardo (muda o tom): Não há como comer um bolo delicioso sem sujar a faca com sua carne, a do bolo, e sem bolo não há festa. (É atingido por um objeto) Isso aqui tá custando o trabalho de muita gente, que pensou em cada detalhe da escultura. Há sempre custos. Eu não sou ruim como me pintam, eu sou objetivo. Todos estamos tendo perdas. Eu mesmo deixei tudo, minha amada família, e torro o capacete debaixo do sol todos os dias, como vocês, não somos diferentes. Eu também assumo riscos. Não consigo compreender como não se compadecem de mim. Amanhã vocês terão sido parte da construção da cidade mais moderna do continente. O trabalho de vocês estará em cada bloco de cimento. (Vai se acalmando na medida em que fala, vai voltando a dormir) Ao final, tão bonito, frondoso, com o nome de tudo quanto é gente estampado no cobre… (Dorme, o sonho prossegue)

Um ator entra caracterizado de operário, sujo de pó. Tem o boneco de pano de Bernardo nas mãos.

Operário (se destaca e fala ao coro): Costumavam dizer que um edifício não para em pé sem uma coluna vertebral vigorosa.

Entra um intelectual paulista, é parte do delírio de Bernardo. Senta-se numa poltrona e discursa para um programa de rádio do sudeste, com leveza.

Intelectual paulista: É parte da mitologia e da tradição o entendimento de que um edifício não se estrutura verdadeiramente sem uma coluna vertebral vigorosa. Tudo quanto é edifício da civilização teve seu sacrifício. Sem metáfora, um esqueleto de vinte e quatro vértebras, sacro, cóccix, cabeça, esterno, costelas e esqueleto axial. Sabe que a primeira das vértebras cervicais leva o nome de atlas? Atlas. Coleção de cartas geográficas sobre as quais erguem-se os edifícios humanos. Quando as vértebras sustentam a cabeça ereta, é dado a nós o papel da civilização. Do mito é sabido, tijolo e massa não dão liga sem a força de um fermento vivo. É sobre os braços humanos, afinal, que se ergue a beleza.

O operário tenta colocar o boneco em pé. O boneco e o operário caem, como se não tivessem ossos.

Cena 12 – Romaria ao encontro dos mortos

De madrugada, Anita circula pelo canteiro de obras carregando uma trouxa de lençóis que envolvem a cabeça de Jusepo. A noite é muito clara e bate uma brisa quente. Seu olhar procura por algo, calmamente.

Depois de um tempo circulando, senta-se, tira os sapatos, verifica se há novas bolhas nos pés, troca o esparadrapo do calcanhar. De dentro do concreto das construções, começa a surgir uma névoa sonora. Anita escuta, enquanto massageia os pés.

Canção

Vozes: Depois de um tempo na terra
todos terra nos tornamos
Se desfazem os membros que unem
nosso ser enquanto um
De um a um deixamos de ser
para verter o fogo da vida
em chão

São dispensáveis os sapatos
Nessa viagem ao tempo da terra
A última viagem
Romaria sem promessas

Se o acaso suspender o destino de algum
E negar a morada na terra, romagem comum
Entre os muros se prensa a matéria
Retém a água sob a forma de cristal
Minas suspensas de cristal
Ilhas de água cercadas de cinza
Não se tornam um
A não ser pelo orvalho de sua voz

São dispensáveis os sapatos nessa viagem
A última viagem
Romaria sem promessas

Ela, ela te sustentará
A água viva, tesouro de cristal
Presente preservado ao futuro dos vivos.

Cena 13 – Sacrifício

De manhã, no canteiro, sente-se a ausência de Bernardo pelos operários. A Rádio Nacional anuncia a inauguração do monumento a Aníbal Florinto. A Rádio Cidade Livre anuncia a evacuação próxima da cidade provisória. Numa mesa de canto, Bernardo toma café.

Marão: Sente a tensão no ar? Nem as paredes parecem aguentar.

Ademir: Não aguento mais nem falar sobre isso.

Danilo: Hoje tudo caminha muito lento. Como se a ausência de Jusepo fizesse grande diferença no andar da carruagem.

Marão: Cozinhar com ódio azeda a comida. Cinco dias de comida azeda, começa a desandar o organismo.

Rádio Nacional: Amanhã, com o raiar do dia, inaugura-se o primeiro monumento da cidade de Brasília. Uma pedra fundamental, a da memória do país, lembra que todos os que fizeram parte são importantes para a nação que ganha nova casa. Dentro em breve as quatro colunas da Caravana da Integração Nacional sairão das pontas Norte, Sul, Oeste e Leste do Brasil, desde as cidades de Belém do Pará, Porto Alegre, Cuiabá e Rio de Janeiro, formadas por automóveis fabricados em terras brasileiras, para apertar as mãos do presidente, na novíssima Praça dos Três Poderes. Com o movimento de cada coluna forma-se sobre o país o desenho de uma cruz.

Marão (aéreo): Ele está no meio de nós.

Danilo: Numa altura dessas, nem fazer corpo mole adianta mais.

Marão (volta a si): Alguém viu Bernardo hoje? Não consigo tirar da cabeça o semblante de terror que tomou sua pessoa.

Ademir: Morena contou que o viu no bar, com a mesma mala de quando chegou, na mesinha do canto. Pediu um café forte, e já não tinha aquela cara de bebê. Tudo muda e nada muda.

Danilo: Mandaram embora?

Rádio Cidade Livre: Com a proximidade da inauguração de Brasília, mudanças decisivas ganharam o cenário. Fundamental ao processo, valiosa em sua função de suporte, a Cidade Livre cumpriu seu papel e deve deixar de existir para ver brilhar a outra. O governo agradece a generosidade dos que vieram de longe e se dispuseram a contribuir.

Marão: Eu perguntei, mas era óbvio.

Danilo: E resolvem assim, repetindo a forma.

Ademir (irônico): Para alcançar o bem maior, cada qual com seu sacrifício.

Bernardo, à mesa, redige uma carta. Está acabado, de semblante melancólico. Enquanto escreve, a escritora de cartas narra.

Escritora de cartas (narra): Me sinto honrado em poder retornar com o dever cumprido, filho. Um dia você aprenderá que cada um de nós tem um papel num plano maior. Pode ser grande, pode ser pequeno. Mas é um papel. Voltar a tomá-lo em meus braços, antes mesmo que consiga escrever suas próprias cartas, é uma alegria sem tamanho. Até breve.

A escritora de cartas coloca o boneco de pano dentro da mala de Bernardo e sai. Bernardo termina o café e sai.

Cena 14 – Cartas na mesa

Na praça em frente ao bar estão Anita, Morena, Selma, Marão, Ademir e Danilo. Anita pediu que todos viessem. Estão reunidos para ouvi-la. É noite.

Anita: Pedi que viessem hoje para partilhar duas cartas. Vocês devem se perguntar como é que eu sei ler. Não faço segredo. No corte da cana, nos clarões do capim, havia gente interessada em que lêssemos todos. Assim aprendi. Jusepo nunca soube, e a carta que trago dele foi escrita por uma professora de nossa terra.

Danilo: Anita…

Anita: Deixe, Danilo. Eu preciso falar. Falar não, eu preciso ler.

Morena sinaliza a Danilo que a deixe falar.

Anita (lendo a carta de Jusepo): Amigo Danilo, não sabe a pressa que tenho para enfim chegar e dar vida ao nosso plano. (Pausa) Todas as cartas começam assim. (Volta a ler a carta) Você me pergunta como faremos, e eu te respondo que com o tempo vamos percebendo o que é necessário e o que precisa ser feito. Nos preparamos estando atentos e conquistando pessoas de confiança. A verdade é que tudo o que é ruim é rapidamente percebido por quem o vive. Talvez o mais difícil seja pensar, e então agir. (Anita dobra e guarda a carta, tirando outra da sacola)

Danilo chora.

Anita: Essa aqui é minha. (Lê a própria carta) Eu pergunto como faremos, agora que as pedras estão erguidas e fazem a vista de um cartão postal. Dentro delas estão guardados tantos corpos. Corpos nossos. Saber onde se quer chegar não é saber onde se vai chegar. Eu caminho todas as noites, ao encontro daqueles que dão aos edifícios a possibilidade de perecer. Como você perece, morto. E como nós, vivos, perecemos. Me acreditam louca. Por estar agora, diante de todos, em sua companhia.

Anita tira da sacola a trouxa de lençóis que envolvem a cabeça de Jusepo.

Ademir (se levantando): Alguém ajude essa mulher!

Selma (puxa Ademir pelo braço): Deixe que ela fale.

Anita (volta a ler): Com o raiar do dia, será honrado o nome de um homem que nunca pisou esse lugar. Um morto digno de memória. Brasília será inaugurada com uma festa, com o sol a pino, sem que suas sombras se revelem nos retratos. Vocês me obrigam a enterrar Jusepo, como se a honraria de uma cova fosse horizonte digno. Pois eu digo que não. Cobrir Jusepo de terra é cobrir todos os mortos que vieram antes dele, e cobrir a nós, vivos.

Ademir: E não foi sempre assim? Isso não é novidade pra ninguém.

Morena (repreendendo Ademir): Eu nunca entendi essa obsessão pela novidade.

Anita (segue a leitura): Vai ter pipoca, vai. Vai ter champanhe. Vai ter o céu pegando fogo com a esquadrilha da fumaça. (Ri) Jusepo sempre quis ver. (Volta a ler) Há mais coisas mortas do que sua cabeça.

Danilo(com delicadeza, tentando não ofender): Onde você quer chegar com isso, Anita?

Anita: Pra chegar, precisamos primeiro partir, não é Danilo?

Marão: Vamos enterrar o amigo hoje a noite, Anita. É o melhor para todos. Assim você nos assusta.

Anita: Amanhã. De um outro modo, com os ânimos no alto, ao estilo de Jusepo. A cabeça ao presente e as cartas ao futuro.

Ademir: Alguém está entendendo o que ela diz? Está delirando.

Anita: A inauguração. Às seis em ponto saímos, para a chegada antes das dez.

Danilo: Chegada?

Anita: Saber onde se quer chegar não é saber onde se vai chegar. Mas é um começo.

Anita recolhe a trouxa e a guarda na sacola junto das cartas. Sai. Todos olham atônitos, sem nenhuma reação.

Morena: Vão ficar aí parados?

Marão: Eu não entendi foi nada.

Selma: A inauguração, Marão. Amanhã.

Ademir: Isso é uma loucura!

Selma: Sim, isso tudo é uma loucura. E onde nenhuma razão tem lugar, tudo é possível.

Morena: Vão! Não temos muito tempo. Falem com os outros.

Cena 15 – Quem inaugura o monumento no planalto central do país

Às seis da manhã seguinte, Anita sai do bar e encontra os demais à sua espera na praça. Ela leva consigo a cabeça de Jusepo. Ninguém diz palavra, todos partem em silêncio.

Quando despontam no campo de visão dos que inauguram o monumento e sua festa, são vistos também pelos mortos, concretados nas edificações, que narram a sua chegada em bando.

Canção

Vozes: Diante de um horizonte como esse
É possível olhar para todos os lados
O que não significa ter um norte ou saber onde se está
Quando chega a hora do medo
Perguntamos de quem ele é
Uma festa à céu aberto, plena de tranquilidade
Celebra, distante, um segredo
Uma festa à céu aberto, plena de tranquilidade
Prensada entre os mortos e os vivos
Querem eles saber a natureza do cristal
Querem eles sentir o sabor da terra
Uma cabeça é a chave para o mundo dos mortos
Você quer uma cabeça na história de seu país?
Uma cabeça é a chave
Por caminhar com tantas pernas
Enxergar com tantos olhos
Ter a pele mais extensa
De um corpo só
Seu movimento de maré alcança o coração
Do continente, seco, alcança o coração
Engole com a boca de mil
Com a fome de milhão

Quando chega a hora do medo
O cardume pesca a rede
Imerso no sal do suor do cristal
A memória da água, o segredo
Quando chega a hora do medo
De quem é?

Cena 16 – Poética da dinamite ou desesculpir a martelete

Brasília, segunda década do século XXI. Duas mulheres trabalham no jardim ao redor da Praça dos Três Poderes. A grama está sendo replantada.

Elizabeth: Encontrei um dreno que não entendo de onde vem. A terra fica enlameada, a grama não adere.

Sandra se aproxima e mexe na terra com o rastelo. Elas descobrem um alçapão, em torno do qual há muita umidade.

Sandra: Será uma casa de máquinas desativada?

Elizabeth: Eu já trabalho aqui há vinte anos e nunca tive notícia.

Sandra: Preciso de ajuda pra abrir.

As duas tiram a tampa e descobrem um estreito túnel subterrâneo que liga a um pequeno cômodo. Conversam enquanto olham.

Sandra: Quem desce?

Elizabeth: Meu trabalho é cuidar da grama, Sandra.

Sandra: E se aí estiver guardado um tesouro? (Ri)

Elizabeth (enquanto Sandra desce): E você acredita mesmo que se houvesse um tesouro debaixo de Brasília, ele ainda estaria guardado? Cuidado, pode ter algum bicho.

Sandra: Pode iluminar? Não vejo nada.

Elizabeth ilumina com uma lanterna. Silêncio.

Elizabeth: Se você para de falar enquanto desce, me enche de aflição.

Sandra: Não tem nada, Elizabeth. Só inscrições nas paredes.

Elizabeth: E o que há nelas?

Sandra: Parece a letra de uma pessoa só. Uma lista enorme de nomes.

Elizabeth: Será que isso é de conhecimento de alguém?

Sandra: Vou fotografar.

Elizabeth: Tem alguma coisa além dos nomes?

Sandra: Algumas palavras. “Eis os nomes dos mortos na construção da capital. Perecemos todos, sem nunca morrer. Sobre o corpo de muitos, pode uma cabeça morta se tornar um pesadelo, com olhos vivos. Um monumento que jamais se petrifica”. (Silêncio) No contorno dos escritos há gotículas de água. Só neles, e em mais nenhum outro ponto da parede. Como cristais.

Elizabeth: Não é um tesouro para piratas, por isso ainda está aí.

Sandra (com urgência): Me ajuda a subir, antes que nos vejam.

Sandra sai do túnel e elas fecham a entrada novamente, cobrindo a tampa com um quadrado de grama nova.

Fim.