Dramaturgias do Tempo

Conceição

Meu filho arde em febre,
pequeno corpo quente a contorcer
eu já não sei o que fazer
vem Maria me socorrer
Um chá com ervas do mato
Maria corre e já vai preparar
o menininho saltará, a doença não sentirá

(Milton Nascimento no álbum Maria, Maria)

 Personagens:

Coro “As Lavadeiras”
O Filho
Conceição
Sachica
Salviana
Mercês
Babalorixá
Cumadi Maria
Vozes em Off (Mãe e Filho)

As Lavadeiras
Lava o chão, lava a mágoa, lava o medo, lava a dor
Lança o véu, oi, lái vai água, toda grávida de amor

Babalorixá: Mas por quê você quer fazer essa viagem, filho?

O Filho: Preciso descobrir essa história, babá.

As Lavadeiras
Leva rio e vem riacho, acalmar quem se abalou
Leva riacho, oi, vem rio, abalar quem se acalmou

Babalorixá: Você conhece o itan da viagem de Oxalá?

O Filho: Não conheço não.

Babalorixá: Vou contar pra você.

As Lavadeiras
Conceição, é mãe do tempo, é quem canta o cantador
Conceição, é mãe do mundo, é quem mata o matador

Babalorixá
Oxalá queria um dia ir ao reino de Oyó, rumar só, seguir viagem, subir o rio beirando a margem. Mas conta quem canta a passagem dessa história, que não há glória, nem decisão que não passem pelo oráculo de ifá. Então Oxalá foi jogar os búzios pra pedir benção e proteção. Mas a queda dos búzios disse: não. Não vá, Oxalá. Não era seguro. Oxalá viveria momentos de apuro se fosse e, ao tentar ajudar, acabaria por trazer azar ao seu caminho. Oxalá seguiu sozinho, foi teimoso, resolveu continuar, contrariou o oráculo. Ele pensou “Oyó é o reinado do meu filho Xangô, ele vai me proteger.”

O Filho: Oxalá não teve medo?

Babalorixá
Não. E quando chegou no reino de Oyó viu um senhor carregando sozinho uma pesada lata, foi ajudar e a lata revirada banhou sua roupa toda de preto. O mesmo aconteceu mais à frente e ao tentar ajudar uma senhora, a lata virou na hora e banhou sua roupa toda de vermelho. Mas Oxalá só pode usar branco, quizila. Mais a frente, mesmo assim, Oxalá queria continuar ajudando. Viu um cavalo galopando sem dono e foi segurar pra que o cavalo não ficasse perdido. E o recado do oráculo dos búzios estava cumprido. Foi feito. Oxalá foi visto com o cavalo e foi preso, pensaram que tivesse roubado.

As Lavadeiras
Leva o barco, lava o povo, senhora da Conceição
Leva embora e traz de novo a nossa compreensão.

O Filho: E Oxalá se machuca?

Babalorixá
Pior. A peste envolve o reino de Oyó. Nada vinga, nada cresce, nada flore. Então Xangô resolve sair à procura, vasculhou e tentou descobrir a cura, tentou entender o que de errado tinha feito. E lhe disseram que tudo vinha acontecendo desde que um velho foi preso. Pra esse mistério Xangô tinha jeito. Ele era o rei da justiça, então só podia, de fato, naquela situação a justiça ter faltado. Pensou então em soltar o velho pra livrar Oyó do fardo. Abriu depressa a cadeia, destrancou os cadeados e ficou assustado. Xangô quase caiu pra trás ao ver que o tal velho, era seu próprio pai.

As Lavadeiras
Lavei, lavai, lavou, lavar
Lavai João, mandou lavar
Lavei, lavai, lavar, lavou
Lavai os filhos de Xangô

Babalorixá: O rei então mandou lavar seu pai e depois então mandou lavar seu reino. O reino então lavou Oxalá, depois lavou seu chão e as escadas. Tanta água, filho, tanta água, que nem dor nem mágoa restou.

O Filho: Que história linda, babá, mas por que você me contou?

Babalorixá: Exu gargalhou agora, filho. Eu vou jogar os búzios pra você. (som da queda dos búzios) Por que você quer tanto viajar atrás dessa história, filho?

O Filho: É a história da minha mãe, ela vai entender muita coisa se a gente for até lá. Eu também, eu acredito. Os búzios dizem que eu devo viajar?

Babalorixá: Filho, os búzios caíram no rumo de Oxalá. Você vai?(som da risada de Exu) Meu filho, que as águas possam te guiar.

Beira de um rio. Um tempo distante no passado.

As Lavadeiras
Perdi meu brinquinho de ouro ai ai á
Perdi meu brinquinho de ouro que o rio mandou levar
Perdi meu brinquinho de ouro, foi minha sina
Perdi meu brinquinho de ouro, rio devolve minha menina.

Sachica: Ó í, tá vendo? Tá ouvindo o que elas tão cantando? O rio levou a menina. Cêis duas tão muito na beirada, vem pra cá vem. E cuidado com a machadinha pra não cortar o dedo. Tem que mirar bem no cucuruto do coco pra quebrar. Isso. Ó só falta eu lavar mais essas duas peças de roupa e a gente já vai. Seu pai deve de tá pra chegar, viu Nilsa?

Sachica
Perdi meu brinquinho de ouro ai ai á

As Lavadeiras
Perdi meu brinquinho de ouro que o rio mandou levar

Sachica
Perdi meu brinquinho de ouro, foi minha sina

As Lavadeiras
Perdi meu brinquinho de ouro, rio devolve minha menina.

Cumadi Maria: Eita! Mãe Sachica, que sua filha quer matar a minha!

Sachica: Que é que foi que aconteceu?

Cumadi Maria: Sua filha deu com a machadinha no peito da minha menina.

Sachica: Nããã! Não é possível! Deve de ter sido sem querer. Cadê Nilsa?

Cumadi Maria: Eu lá sei, mulher! Sua filha quer matar minha menina e eu ainda tenho que saber dela? Minha menina tá se derramando em sangue.

Sachica: Cadê Nilsa? Cadê minha filha?

As Lavadeiras
Perdi meu brinquinho de ouro ai ai á
Perdi meu brinquinho de ouro que o rio mandou levar
Perdi meu brinquinho de ouro, foi minha sina
Perdi meu brinquinho de ouro, rio devolve minha menina.

Sachica: Cadê minha filha? Cadê Nilsa? Ela caiu no rio? Ela pulou? Filha?! Filha?! Volta, minha filha!

O Filho: E o rio arrastou brinquinho de ouro da cidade mais pobre do estado mais pobre desse País desgovernado, pra uma casa em outra cidade e em outro estado, com outra mãe e outro pai. Mas…não foi bem assim que a história aconteceu. Foi um sonho isso tudo. Conceição, Nilsa, Eunice, minha mãe existe. O conteúdo do sonho é real, a história é verdadeira, mas tá toda misturada, um pouco bagunçada, é verdade, embora não menos assustadora pra uma criança ainda com tanta esperança e nem menos difícil. Como foi, mãe? Digo, a história da machadinha e do coco babaçu?

VOZ OFF DA MÃE: Hum… É que eu trabalhava, né? Lá no Piauí trabalhava quebrando coco babaçu pra ajudar minha mãe. A mãe Mercês, minha mãe adotiva, não mãe Sachica que era minha mãe biológica, mãe Sachica eu só conhecia de vista, não conversava com ela. Tava eu e a Socorro. Eu tinha bem uns 6 anos, era pequena ainda, o coco era até muito grande pra minha mão. E aí… A machadinha escapou da minha mão e foi bem no peito da Socorro. Eu fiquei assustada e foram logo me dando bronca, até minha mãe Mercês e eu tava assustada e… Escuro. Só se veem rostos.

O Filho: Nem consigo imaginar, mãe. E o que aconteceu depois?

Conceição: Levaram ela lá pra ser tratada e eu… Tive que continuar a trabalhar, ainda tinha quebrado coco pouco. Anoiteceu, e a gente foi indo pra casa numa estrada de terra igual essa de agora. Um breu.

O Filho: Mãe, quando a vó faleceu você teve que fazer esse caminho todo sozinha com ela?

Conceição: Foi né, meu filho. Era isso. Era vontade dela, de ser enterrada lá no Piauí. Tinha que ir.

O Filho: Desculpa não ter ido com você.

Conceição: Não. Sua irmã era muito nova, não tinha o que fazer. Você tinha que ficar com ela lá. Ajudar seu pai.

O Filho: Vai… ser difícil fazer isso. Mas eu acho bonito, que o vô sempre tenha dito que queria ser enterrado do lado dela.

A luz clareia um pouco, vemos que Conceição e o filho, estão ao lado de um caixão.

Conceição: Ah, ele era muito apegado a ela. Tava tristinho já desde que a vó faleceu.

O Filho: Ê, meu vô… (olha para o caixão) Todo mundo fala que EU sou parecido com ele. Você acha?

Conceição: A cara, parece até que ele era seu avô biológico. Assim, de verdade. Você sabe como é que foi que eles me adotaram e por quê?

O Filho: Não.

Conceição: Ah, também não tem muito pra saber… Minha mãe Mercês pediu pra minha mãe biológica, Sachica, pra cuidar de mim porque sabia que ela não podia cuidar, era muito pobre, nem dar de comer, nem dar de mamar. E minha mãe Mercês não podia ter filho, tinha uma doença. Então elas combinaram isso. Então vieram ela e seu avô comigo aqui pra Santo André e o resto é como é… Você já sabe.

O Filho: Na verdade não sei muito não, você fala pouco sobre isso. Só me falou uma vez, eu lembro…

Conceição: Como foi quando eu cheguei aqui? Foi…

O Filho: Mãe?

Conceição: Foi…

O Filho: Mãe, não ouvi.

Conceição: Deixa pra lá. Vou te contar uma coisa da minha infância, uma lembrança. Uma coisa bonita. Quando eu era criança, minha mãe Mercês ia lavar roupa na beira do rio e ficava cantando uma cantiga… Como era?
Perdi meu brinquinho de ouro ai ai á
Perdi meu brinquinho de ouro que o rio mandou levar
Perdi meu brinquinho de ouro, foi minha sina
Perdi meu brinquinho de ouro, rio devolve minha menina.

O Filho: Enquanto ela cantava eu imaginava o rio, a beira, a imagem inteira. Imaginava a dor e a confusão de uma menina preta que foi dada por sua mãe a uma mulher branca. A mulher branca, minha avó, Maria Mercês, foi a melhor pessoa que eu já pude conhecer, mas minha família sempre foi curta, pouca, não enchia os dedos de uma mão e sempre que alguém morria, eu sentia como se fosse um rio secando. Naquela noite, a gente tava viajando pra enterrar meu avô Raimundo de junto da minha avó Mercês, eu ainda não sabia o que ia acontecer.

Conceição: Obrigado por ter decidido viajar comigo, viu meu filho? Tá sendo importante.

O Filho: Uma estrada escura esburacada adiante, uma caminhonete velha carregando nós dois e o caixão no rumo do sertão. Raimundo…

Raimundo era de João, era de Tereza, era de Maria. De João porque nasceu no dia dito “dia de São João”. De Tereza porque no sertão se chama Raimundo Tereza, qualquer criança que nasça Raimundo, do ventre de uma mãe Tereza. Mas de Tereza, que herdou o nome e a frieza, Raimundo logo escapou. Foi lavrar na lavoura de uma avó chamada “Dona”, curioso o nome, estancado o tempo. Dona de Raimundo a avó logo foi ficando.

Raimundo nasceu trovejando e é assim que eu me lembro dele: feito o mais doce trovão. Palavra nunca, nunca bronca. Bastava uma trovejada que a criançada corria parar de fazer o que tava aprontando. O avô trovão passava o dia trabalhando, de sol a noite, de domingo a domingo. Chegava e eu dormindo, saía e eu deitado. Foi chato perceber tão tarde que o chato não era ele, era eu, esperneando brinquedos caros, ganhando sempre um doado de sabe-se lá de quem, cobiçando as notas gordas e só ficando com centavos. Hoje é tão claro isso que me está escuro, que quem tem a pele assim trovejada enxerga outro mundo e outro tipo de cifrão na moeda.

Raimundo era vidraceiro, assim, fazia vidros. Depois da roça, fez vidros. Em São Paulo: vidros a vida toda. Trabalhou no chão da fábrica de uma vidraçaria mexendo com a forja quente. Depois de vinte anos, a falência da empresa e foi-se embora toda gente sem dinheiro na carteira. Digo triste a ironia que se molda em minha frente: ele fez vidro a vida inteira pra no fim ser tratado como invisível, transparente. Será que sempre quem tem essa pele raimunda, essa boca, esse cabelo, essa sede, esse peito mudo, será que sempre vai ter que avermelhar os olhos, as mãos, os dentes, pra buscar o tão pouco, o tão justo?

Raimundo era de Maria e com ela ria mesmo com tudo, com tanto tempo, tanto tormento. Com ela adotou uma filha em algum momento. Conceição – da pele também raimunda – é o silêncio depois do trovão, profunda e misteriosa. Num dos últimos encontros que tive com Raimundo, ele já estava com um sertão no estômago, um câncer causado pela quentura na forja da fábrica. Pensei sobre a justiça. Onde estava? O avô, que de São João era devotado, me deu seu escapulário como se me respondesse o pensamento, e disse “Dá São João pra ele, o que me faltou nesse mundo: Tempo”.

As Lavadeiras
Dai o tempo e traz amor
Dai o tempo e leva a alma
Confortai quem já cansou
Derramai no chão a calma

O Filho: Naquela noite, a gente chegou numa casa de taipa, o caixão ficou no centro da sala. Algumas mulheres. Elas entraram cantando na casa. Em volta do caixão tinham uma mesa e uns bolinhos com umas cocadas feitas de babaçu como essas, inclusive vocês podem pegar e comer, fiquem à vontade. Já era tarde e o canto foi me embalando. Sonhei que Sachica, uma mulher que eu nem conhecia, estava lavando roupa na beira de um rio com sua filha. Sonhei que uma confusão acontecia, a menina assustada caia no rio. Sachica ficava desesperada mergulhava suas mãos na água e de dentro dela, tirava uma mulher, minha mãe.

Sachica senta-se, pega Conceição em seu colo e banha seu cabelo com uma cuia cheia de água.

Sachica
Perdi meu brinquinho de ouro

As Lavadeiras
E traz amor

Sachica
Perdi meu brinquinho de ouro

As Lavadeiras
E leva a alma

Sachica
Perdi meu brinquinho de ouro

As Lavadeiras
Quem já cansou

Sachica
Perdi meu brinquinho de ouro

As Lavadeiras
No chão, a calma.

A PIPOCA

O Filho: Vejam… Uma criança correndo. Desesperada, com raiva, com medo, com nada, se sente nada. Nada de nada de nada, zero, pequeno, lixo. Por que será que ela corre? Por que será que sente isso? Para na frente de um rio, o coração disparado e vazio. E respira. Acabou de sair da escola. Me lembro bem daquela hora.

Conceição: Meu filho, procurei você na porta da escola e não achei! Que foi? Que foi, meu amor? Onde você tava? O que aconteceu?

Voz em off do filho: Nada!

Conceição: Ai, e eu não te conheço! Como nada? Nada… E eu não conheço essa cara? Olha você! Vamos. Sai de perto desse rio, aqui é perigoso. Não precisa engolir o choro. Vem cá. Pode falar.

Conceição senta-se, pega o filho em seu colo e faz carinho em seu cabelo. Ele reage como se não quisesse que tocassem em seu cabelo. Ela insiste.

Voz em off do filho: Eu só tava pegando doce, mãe. Eu ia levar no caixa pra pagar. Todos os meus amigos tavam pegando doce também pra levar no caixa pra pagar, mas ela disse que viu o que eu tava fazendo. Ela disse que ia chamar o segurança. Ela só falou isso pra mim, mãe, só pra mim! Eu não entendi o que ela tava querendo dizer. Ela chamou o moço e ele saiu de lá me puxando, eu tentei me soltar, mas ele segurou meu braço. Ele me machucou até. Ele me tirou pra fora da loja e disse que se me pegasse roubando de novo ia chamar a polícia! Eu tava com as moedas na mão pra pagar, mãe! Eu fiquei com raiva! Muita raiva!… E com medo.

Conceição: Ai, meu amor, tão cedo… Tão cedo pra entender o que é isso. Eu não sei bem o que te dizer, mas eu sei como isso se chama, racismo. Eu também vivi, eu também vivo. Como eram seus amigos? Como era o cabelo deles, por exemplo?

Voz em off do filho: Lisos.

Conceição: Ouve o que eu te digo, meu amor. As pessoas às vezes machucam muito umas às outras sem motivo, mesmo os adultos. É esquisito, eu sei. E machucam muito mais a gente que tem a pele assim assim, o cabelo desse jeito, essa cor. É dificil, mas a única coisa que a gente pode fazer é se lembrar do tanto de amor que a gente recebe. E eu te amo demais.

Faz tempo que aconteceu, mas eu vou te contar…

Voz em off da mãe: Quando eu cheguei aqui em São Paulo, que tinha vindo lá do Piauí, eu tinha uns 9 anos. Eu tinha o cabelo bem pro alto e um sotaque muito forte, né? Como eu não consegui acompanhar a terceira série, eu tive que voltar pra segunda e na escola começou… Ah, começaram a me zoar por causa do meu cabelo, da minha boca, do meu jeito de falar. E também começaram a me zoar por causa do meu nome: Eunice Maria da Conceição. Conceição era o nome que eu tinha herdado da minha mãe biológica que eu nem conhecia. E Conceição virou meu apelido. Na hora da chamada falavam meu nome inteiro e eu queria me esconder. Eu sabia que iam começar a me zoar, e rir de mim, do meu cabelo… Ai eu pedi pra vó e pro vô pra tirar esse nome, que eu não queria mais. Eles ficaram felizes porque eu não tinha o sobrenome deles, porque a adoção foi feita assim de boca, sabe? Aí ia ficar Eunice Maria da… Eunice Maria da… A gente foi no cartório e fez o pedido.

O Filho: A próxima senha era a dela. Em volta, os vários tipos com seus papéis de impostos, débitos, depósitos, todos com a mesma expressão. Já ela, tinha os papéis da alteração de nome nas pequenas mãos suadas. Pequenas as mãos, grande o cartório, curto o momento e a vida tão larga. Era o basta, o ponto de virada para uma dor insistente, desavisada e sem trégua, porque mesmo numa idade tão rasa cabe uma dor profunda.

As unhas vermelhas da mão branca da senhora do caixa alcançaram os doze reais e apontaram o branco espaço embaixo da assinatura do nome completo. “Assina o novo nome, o certo”. Nada mais disseram, nem ela, nem a senhora do caixa, nem a mãe adotiva. Só se olharam. A mãe adotiva pegou a caneta porque a menina ainda não sabia assinar. Mas ela também não sabia, então borrou o dedo no tinteiro pra marcar o papel com a digital. Olhou novamente a menina igual se quisesse perguntar “Tem certeza?”, a menina, minha mãe, assentiu que sim com a cabeça, a mãe adotiva, minha avó, repetiu o gesto como quem diz “tá bom então”. No vidro do guichê havia um papel colado com a imagem santa do qual a senhora de unhas vermelhas era devota: “Nossa Senhora da Conceição”. O olhar da santa na imagem pesou no dedo da mãe adotiva no papel quando ela “assinou”: Eunice Maria da Silva. Deixando de fora o último sobrenome da menina.

A menina pegou os papéis, olhou, sorriu. As mãos pararam de suar. Na escola ninguém mais ia lhe chamar pelo sobrenome de sua nordestina vida antes de São Paulo, Severina vida antes de São Paulo, concebida a vida nova ali: na frente do guichê. Na certa, não iriam fazer mais músicas com seu sobrenome, nem rimas ou piadas associando ele à sua pele, sua boca, seu cabelo. Quem sabe, não iriam mais notar seu sotaque, já que não há nada mais de nordestino em seu nome que a professora insistia em chamar completo no início das aulas. Tempo novo, nome novo, futuro incerto, mas não importa, não importava. Conceição mudou o sobrenome porque não podia mudar de pele, mudou o sobrenome porque não podia mudar o mapa.

Quando ela, Conceição, minha mãe, me contou isso, eu esqueci o que tinha vivido. Fiquei empolgado. Eu não sabia que tinha uma avó biológica, disse que um dia a gente tinha que fazer uma viagem pra eu poder conhecer.

Conceição: Um dia, meu filho, quem sabe. Um dia, vai saber.

O Filho: E a mudança do nome deu certo? Não zoaram mais você na escola?

Conceição: A hora que saiu o papel eu já não precisava. Eu pedi quando tava na segunda série e os papéis só ficaram prontos quando eu terminei a oitava. Que foi quando eu parei a escola. Engravidei de você.

O Filho: Então não pararam de te discriminar?

Conceição: Não. Mas desde aquele dia eu emudeci, algo aconteceu, fiquei um ano sem falar.

As lavadeiras surgem, entoam um canto sem palavras por um tempo.

Uma cena muda: O caixão está no meio. O filho e Conceição o olham. Pipocas são servidas ao público, pipocas são jogadas aos pés de todos e no chão. Pipocas são jogadas no caixão. O caixão é retirado. O filho abraça Conceição e sai. Conceição fica ao centro, olha o público. Pipocas são jogadas na cabeça de Conceição. Conceição sai. Uma senhora entra, varre as pipocas, puxa uma cadeira de balanço, senta, olha o público e começa a se balançar. É Salviana, a primeira Conceição, avó biológica de minha mãe. Entra “O Filho”.

O Filho: Boa noite.

Salviana: Noite!

O Filho: A senhora aceita pipoca?

Salviana: Gradicida.

O Filho: A senhora conhecia meu avô?

Salviana: Raimundo Tereza? Sim, sim, cunheci ele sim. Cunheço você também?

O Filho: Me conhece?

Salviana: Cunheço… Sou sua bisavó.

O filho engasga com a pipoca.

Salviana: São Brás, São Brás, come que no prato tem mais.

O Filho: Minha bisavó?

Salviana: Mi ricunhece não? Sou Salviana. Mãe da mãe de tua mãe. Mãe de Sachica.

O Filho: Desculpa, não reconhecer. É que eu não sabia, eu… Eu já vi a senhora?

Salviana: Viu não. Eu murri antes da gente se reencontrar.

O filho engasga com a pipoca outra vez.

Salviana: São Brás! São Brás! Beba uma água, sente… pegue minha mão.

O Filho: Eu preciso, eu…

Salviana: Venha… Tenha medo não. Pense que tu tá dando a mão pro seu próprio tempo. Sente aqui do lado de minha cadeira.

O Filho: Meu coração faltou saltar do peito, fugir pela boca, sair num galope.
Terra mística e seca essa, de onde minhas memórias tinham enraizado.
Terra onde o sol racha o chão e a pele de quem fica parado.
De lá tinha brotado ela, minha velha, a mais séria mulher que eu já vi.
Guardava um mistério no rosto e quando franzia a testa
Uma fresta se abria, mostrando que sua pele parda,
por baixo da poeira, era preta.
Terra mística que, veja, na pobreza é dura, muda, escura
e traga pra dentro dela quem não se move.
Quando não chove, essa terra sente sede
e na sede bebe planta, bebe bicho, bebe gente.
Na era da sede, os seres viventes dessa terra se tornam terra também
Vão e vem com o vento, leves, os seres de poeira
se tratam com a mesma escura, muda e velha dureza.
Guardam tudo que têm de beleza na pureza dos olhos de mandacaru
Num coração cheio de espinhos, nas mãos caladas que constroem ninhos sozinhos na cidade de concreto, os ninhos que eles não podem morar.
Ao céu azul, um sol de mil, a sola do pé brasil de tão quente, a gente feita dessa gente que é feita o meu mais velho ainda consegue florar.
Pra falar de amor eles têm sempre o dom de cantar
e sabem aguar a aridez encantando com histórias até mesmo o chão mais seco.
Foi por medo que meu avô Raimundo veio pra São Paulo, junto de minha avó Mercês e minha mãe ainda pequena, medo de perder a força pra cantar… Quis escapar da seca, de carregar saco no braço sobre o largo das costas de lua a lua pra baixo e pra cima.
Juntou o que tinha, traçou sua linha, subiu no ônibus e tomou sua decisão.
Ia caminhar adiante com uma só direção, construir a ascensão de sua vida em São Paulo. Mas minha mais velha me disse ali, e eu falo que resisti a crer no que meus olhos viam, mas os ouvidos insistiam, ouviam e sonhavam. Minha velha me disse que meu avô, minha mãe e minha avó Mercês tinham deixado muita muita história pra trás que nem eles sabiam.

Salviana: Meu filho, lá em Sum Paulo enfiaram um relógio pra dentro do pensamento de vocês e isso fez nascer a ferida de um tempo apressado dentro do coração de quem lá véve. Mas aprende essa lição, escreve se for preciso, o instante de agora é sempre muito mais vivo do que o amanhã e muito mais forte do que o passado. Aqui nessa terra seca, meu filho, a gente aprende ouvindo o som dos cascos do cavalo que a nossa vida segue uma batida, no ritmo da força da nossa decisão. Se tu bater a espora com precisão, o cavalo da vida dispara, não freia, não deixa voltar atrás, e faz tempo que a espora da história de sua mãe foi carcada nas ancas do cavalo da vida. Mas chegou a hora dela voltar atrás e ver quem ela é, entender o que precisa. Sua mãe carrega nas mãos a cura, mas ainda não sabe.

O Filho: Fale pra mim que eu digo pra ela, minha mais velha.

Salviana: Tu conhece quem foi, quem é, quem era sua família, nêgo?

O Filho: Vejo só você, minha bisavó, só a senhora. Não conheço, mas queria.

Salviana: Sua avó, Sachica, foi mulher da vida. Na sua família, os homens partiram, fizeram farra e partiram, deixaram, fugiram. Sua família é feita de mulheres bravas que resistiram e criaram. Foram abandonadas, mas ficaram. Cuidaram, nessa terra, de suas crias.

O Filho: Mas… minha bisavó, a minha mãe foi uma filha dada. Não foi criada aqui nessa terra como você disse ainda agora.

Salviana: Há histórias, meu filho, por debaixo da história.

As Lavadeiras (vestidas de vermelho e preto, giram em volta do filho)
Na palma da minha mão, trago a rosa e o facão
Na palma da minha mão, trago a rosa e o facão
Para afagar quem me ama e também pra dar proteção
Para afagar quem me ama e também pra dar proteção
Na palma da minha mão, trago um espelho e uma canção
Na palma da minha mão, trago um espelho e uma canção
Pra afastar quem não me ama e para saudar à Conceição
Pra afastar quem não me ama e para saudar à Conceição

O Filho: Mulheres, mestras, rendadeiras, rodadeiras, rezadeiras, trabalhadoras da roça, senhoras, pretas senhoras cantaram em meus ouvidos um canto de amor. Me contaram que não esperaram homem nenhum botar comida na mesa, nem a tristeza do abandono e da solidão fazer com que ficassem paradas no mesmo lugar, estancadas. Minha mais velha balançava na cadeira e parecia ter certeza de por onde levava os caminhos do tempo. A única coisa que ela me disse que não entendia, era como a terra permitia tanto sofrimento pra quem tanto a cuidou, tanto sofrimento pra quem tem dela, o mesmo jeito e a mesma cor.

Conceição: Filho… Acho que vou deitar, tentar descansar um pouco. Vi você conversando com alguém… Quem era?

O Filho: Mãe, eu descobri uma coisa. Posso te contar?

Conceição: Pode falar.

O Filho: Escuta, eu descobri da forma mais maluca, você não vai acreditar, mas essa terra, sei lá, tem revelado dureza e mistério pra mim.

Conceição: Você falando assim tô ficando curiosa.

O Filho: Eu descobri que nossa família, da sua mãe biológica, minha avó, é uma família de mulheres poderosas. E sabe como eu descobri? Eu vi minha bisavó, mãe? Ela tava aqui, apareceu.

Conceição: Minha avó, Salviana? Filho, mas ela já…

O Filho: Eu sei, mas acredita em mim. Eu vi, vivinha assim, como te vejo agora, ela veio me dar um recado. De que você tem um poder guardado, um poder de cura.

Conceição: Ai menino, não me assusta.

O Filho: É sério! Sabe o que ela também, me falou? Que minha avó Sachica, trabalhou como prostituta. Que muito homem abandonou as “Conceição” nessa vida e foi uma luta… Mãe? Que cara é essa?

Conceição: Não… nada, umas memórias guardadas.

O Filho: Desculpa… Eu não devia estar falando disso?

Conceição: Não, é que veio uma lembrança de uns pensamentos esquisitos e… Deixa pra lá.

O Filho: Tá tudo bem, mãe?

Conceição: Preciso de um ar… Vou lá fora.

O Filho: Quer que eu vá com a senhora?

Conceição: Não… Agora não.

O Filho: E Conceição… sumiu no breu do sertão. Com dúvidas na cabeça e o coração apertado feito bicho acuado diante dos sons de uma cidade.

Conceição: Por que esse peso? Por que o peso dessa história na cabeça? Por que essa tristeza que não passa? Por que esse vazio? Por que esse nome me puxando feito um fantasma pra uma dor que não para de doer, não passa? O que eu tenho que entender ainda? Desde menina, enquanto tinha que aguentar as pessoas me chamando de Conceição e me calar, eu sempre pensei, penso, pensava por que é que eu precisava carregar a história de uma mulher que eu nem tenho contato, de uma mãe com quem eu nem falo. E aquela história, aquela fama, aquele nome “prostituta”, tava enterrado em algum canto das minhas memórias de infância, mas como a água de uma forte chuva agora, parece ter sido desenterrado. Ela era uma afirmação que levantava interrogações que eu nunca ia, vou, irei saber. Quem é meu pai? Meu pai biológico? Lógico que eu não vou descobrir. E o pai que tinha, perdi, a mãe que tinha já foi. Tão carinhosos, cuidadosos, tão silenciosos e eu, com tanto tanto tanto escondido por debaixo dessa pele preta, dessa noite funda, as palavras desaguam pela minha boca, uma multidão de palavras inunda o chão do sertão. Cada dúvida, cada questão se debate em cada esquina, cada viela, cada árvore. O medo de que o mar vire sertão não é tão grande quanto de que o sertão vire um mar de medo. Desde cedo me assombro com o que eu não sei, com o que eu não vejo e agora, parece chegada a hora de ver, não sei dizer por onde caminha minha história, não sei se quero ver por onde caminha minha história. Pai, meu pai, justo agora, eu queria ter dito tanto pro senhor…

E ela canta “A Morte do Vaqueiro” de Luiz Gonzaga.

Conceição: O amor, feito afogado aqui dentro pelas coisas que não sei se são, pelas coisas que não sei se acredito, pelas coisas que não se lembro, se posso, se quero lembrar. Parece que vai desaguar, Conceição, vai brotar de mim um rio…

O Filho: Foi aqui que Exu sorriu, riu tanto, gargalhou. Exu… Quando fui assistir o filme de Luiz Gonzaga com meu avô Raimundo, num dos primeiros segundos do filme passa lá uma paisagem. Alguns cactos. No cantinho da imagem, lá embaixo estava escrito “EXU”, cidade de onde nasceu Luiz Gonzaga. Meu avô que não lia uma palavra, logo disse “exu”. Acho que foi a primeira vez que ouvi esse nome. Aquele homem analfabeto, não sabia das letras, mas sabia ler o chão, as plantas e o canto dos pássaros, conseguiu entender bem rápido onde se passava o filme. E eu que só sei ler as letras, imagine, sai pra procurar Conceição no escuro daquela cidade do interior do Piauí. Ela tinha saído pra tomar um ar e eu não vi onde foi que ela se meteu, demorou a voltar então me preocupei e acendeu a vontade de ir atrás dela. No alto de um morro, subi em cima de uma pedra e olhei. Não avistei. A pedra rolou. Eu caí num rio. Ninguém viu.

As Lavadeiras
Lavei, lavai, lavou, lavar
Lavai João, mandou lavar
Lavei, lavai, lavar, lavou
Lavai os filhos de Xangô

É de justiça eu vou, eu vou lavar.
É de lembrança, eu vou, eu vou levar.
É de memória, eu vou, lavei lavar.
Lembrar da história, eu vou, Xangô lavar.

A cadeira de balanço ao centro. Salviana diz ao público. Conceição se põe de joelhos frente ao rio e reza.

Salviana: A dor de uma mãe em frente a um rio buscando um filho perdido, só pode, talvez, ser entendida, por uma mãe em frente a um rio buscando uma filha. Passaram três dias e o menino sumido, alguns davam como afogado. Passaram trinta anos que Sachica não via sua filha, Eunice Maria. Conceição. Que passou tanto tempo calada, amargando dores que poderiam ter se dissipado no colo de mãe. Conceição teve mãe e teve colo nesses trinta anos, só não teve colo pra suas dores pretas. Mas nem mesmo se tivesse as duas mães ali agora presentes com todo conforto de seus colos, conseguiriam estancar aquele rio pra parar o medo de perder seu filho. Onde é que tava seu menino? Seu pequeno brinco de ouro? Mal sabe ela, mal sabia, os encontros que aquele desencontro da vida vinha trazer. O primeiro foi com sua mãe adotiva Maria Mercês…

Mercês: Fia…

Conceição: Mãe?

Mercês: Sou eu. Não fica com medo.

Conceição: Eu não tô, minha mãe, que saudade!

Mercês: Oxente… Eu também tô, minha fia, mas não saí de perto de tu em momento nenhum. Eu fiz uma promessa pra uma mulher, e vou cumprir ela até o fim. De fica assim cuidando de você, não importa o que aconteça, pra te trazer luz e te dar ajuda.

Conceição: Eu tô confusa, mãe. Eu não consigo achar ele. Não sei o que aconteceu. Me sinto culpada.

Mercês: Fia, chega de culpa. Vim aqui pra te dizer só isso. A culpa é o que afunda a gente, num deixa a gente de nadar. A gente precisa tirar a culpa pra poder virar prum rumo novo. Então agora e também quando a hora chegar, fia, deixa a culpa de lado. Ela é pesada, não serve pra nada. O rio não volta atrás pra vê se esqueceu alguma coisa na nascente. Ele corre. E o passado é como o rio, só vai num rumo, fia. O rumo de empurrar a gente pro mar.

Conceição: Canta pra mim, mãe. Aquela música que você cantava? Da menina do brinco de ouro.

Mercês: Canto…
Perdi meu brinquinho de ouro ai ai á
Perdi meu brinquinho de ouro que o rio mandou levar
Perdi meu brinquinho de ouro, foi minha sina
Perdi meu brinquinho de ouro, rio devolve minha menina.

Sachica: Fia…

Conceição: Sachica?

Salviana: O outro encontro veio trazer pra ela a prova. Foi o encontro com sua mãe biológica.

Sachica: Acharam tiô menino… Levaram lá pra casa.

Conceição: Ele tá bem?

Sachica: Carece de tu vê.

As duas se olham, os corpos ameçam um encontro, não sabem o que fazer.

Sachica: Vem, minha fia.

As duas saem.

Salviana: Sente aí, cumade Mercês.

Mercês: Sento, muié.

Salviana: O que ocê vê dessa situação toda?

Mercês: Ah muié, vejo que de dentro a gente não se apercebe, de quantas vez é possível nascer nessa vida, muito antes de morrer.

As Lavadeiras
Às águas vou levar, sete lírios do céu
Das águas vou levar, sete conchinhas do mar
Às águas vou levar, um bocadinho de mel
Das águas vou levar, força para caminhar

Ai ai á que das águas vou levar, ai ai á que às águas vou deixar (x2)

O filho está deitado entre as duas.

Sachica: Disseram que engoliu muita água. Caiu no rio, não sei como.

Conceição: Ô, meu filho, não devia ter te trazido nessa viagem.

Sachica: Ele vai ficar bem.

Conceição: Eu devia ter feito essa viagem sozinha.

Sachica: Ele gostava muito de Raimundo, era? Por isso quis vir com você?

Conceição: Era muito apegado com ele. Mas não foi só isso não.

Sachica: Hum… Teve mais coisa, não foi? Queria conhecer aqui a terra dos avós dele?

Conceição: É, não foi só a terra não.

Sachica: Eu sempre quis conhecer ele, sabia? Meu neto… Posso chamar ele de neto?

Conceição: …

Sachica: Por que não trouxe a menina também? Eu ricibi as fotos que você mandou. Bonita demais ela…

Conceição: Ele queria vim pra conhecer vocês.

Sachica: E é?

Conceição: Queria que eu conhecesse também.

Sachica: Mas a gente se cunhece.

Conceição: Conhecer não é bem a palavra. Tem um monte de coisa que eu não sei da senhora, a senhora não sabe da minha.

Sachica: Ah, minha fia, minha vida é isso aí que cê tá vendo. Tem muito mais pra descobrir além disso aqui não.

Conceição: Tem sim. Um monte de coisa que eu não sei.

Sachica: O que é que cê não sabe?

Conceição: A gente nunca conversou direito. Não sei do seu trabalho, da sua vida, de como foi pra senhora me deixar, uma vez eu escrevi uma carta, sabia? Tentei colocar ali todo tempo de ligação que eu tive com a senhora, até o momento que fui dada pra minha mãe.

Voz em off da mãe: Eu hoje inicio o traçar das linhas da minha história. Uma história que durante 40 anos ficou presa na minha garganta, as palavras sufocando o coração. E com um grito da dor das minhas perdas, eu achei essa história aqui dentro de mim.

Quando pego no meu lápis é apenas para escrever e expressar meu sentimento.

Olá, mãe Sachica. Estamos no ano de 1973, aqui estamos, ligadas por Deus. Estou pequenininha crescendo aqui dentro do seu ventre. Aqui está quentinho e me sinto protegida. Aos poucos vamos conhecendo uma a outra, sentindo uma outra. É estranho. Tudo que você sente, eu também sinto.

Essa coisa passando rápido você fala que é o tempo, sempre fala dele. Acho que ele que faz eu ir crescendo, agora já estou grandinha pra ficar aqui dentro, acho que já está próximo da mina saída desse lugar aconchegante onde sinto seu carinho por mim, mas tenho te sentido triste e preocupada. Não sei ao certo o que se passa. Não fique triste, mãe, estamos unidas, posso te proteger.

Já está dificil pra me movimentar aqui dentro, lembro de quando tinha muito espaço e conforto, como será lá fora?

É mamãe, chegou dia 8 de novembro, não dá mais pra ficar aqui dentro. Chegou a hora de nos conhecermos. Chegou a hora de nos separarmos do cordão umbilical e nos unirmos por carne.

Ah, aqui em seus braços me sinto quase tão segura quanto lá dentro. Sinto amor, sinto carinho, me sinto protegida, você é uma mulher forte. O melhor momento é quando você me alimenta com seu leite.

Já estou há algum tempo por aqui, acho que 1 mês e sinto você triste outra vez. Hoje você me trouxe pra conhecer um casal. Parecem boas pessoas, mas senti que o encontro te deixou preocupada.

Agora já tenho 2 meses e mesmo você sendo meio calada, já reconheço sua voz, vejo que sua vida não é fácil.

Agora já tenho 3 meses, hoje tomei bastante leite, me sinto forte e preparada pro dia. Viemos de novo visitar aquele casal. Eles são carinhosos. O homem é bem grandão, parece gostar muito de mim. A mulher é pequenininha e ela até chorou quando me pegou no colo, ficou muito feliz.

Não estou entendendo muito bem. Você foi embora e me deixou aqui com o casal. Acho que você foi pra roça e depois vem me buscar.

Me sinto acolhida aqui, o casal está muito alegre, parece que estavam esperando esse dia. Mas eu estou confusa, estou esperando sua volta e estou ficando com fome.

Ufa, você chegou, veio me dar leite. Que alegria. Mas continuo sentindo você triste.

Você me alimenta e vai embora.

Me alimenta e vai embora.

Me alimenta e vai embora.

E assim segue alguns dias…

Me alimenta e vai embora.

Você não volta mais.

Eu fiquei sem entender.

Apenas sinto a sua falta.

O casal está muito alegre, mas eu sinto a sua falta.

Assim segue, eu não tenho o que fazer.

E os dias… eles foram passando.

Sachica: Minha filha, é que eu não podia.

Conceição: Eu sei, você nem precisa falar sobre isso.

Sachica: Mas é que eu quero.

Conceição: Tá bom, mas não precisa.

Sachica: Eu era mulher da vida, trabalhava no bordel, era isso ou morrer de fome, que eu não ia ser sustentada, nem ter que depender, nem apanhar de homem. Criei as filhas que pude, outras morreram.

Conceição: E eu você deu.

Sachica: Criei filhas sem pai.

Conceição: Eu cresci na dúvida, com cada um dizendo que meu pai era um, que era outro. Isso sempre me angustiou.

Sachica: Os homens foram todos embora daqui. Nenhum ficou. Eu queria que pelo menos uma filha minha tivesse com seu pai. Com seu próprio pai.

Conceição: Tudo bem. E tá certo. Tá tudo certo, a gente não precisa falar disso. Meu pai Raimundo foi um bom pai adotivo. Agora preciso levar o menino no hospital.

Sachica: Raimundo Tereza era seu pai. Seu pai de verdade.

Conceição: Quê?

Sachica: Mercês não podia ter filho. E eu tava grávida de um homem que tinha ido no bordel passar a noite comigo. Um homem que dia depois conheceu o amor de sua vida. E eu aqui sem saída, com a barriga enluarando, ficando cheia, o que eu ia fazer? Chamei Cumadi Mercês pra conversar. Disse o que tinha acontecido. Ela aceitou de manter escondido e me prometeu cuidar de você quando nascesse. Então eu cumpri minha parte do combinado. Mercês sempre quis adotar um bebê, eu não podia cuidar e ainda por cima tinha a chande de pelo menos uma das Conceição poder viver com o pai do lado, ali, criando, de poder tomar outro rumo de caminho. Então cê pode dizer o que for, minha fia, sair e não voltar mais, se quiser, mas me responde. Ele foi bom pra você? Te deu carinho?

Conceição: Minha mãe Mercês sabia disso? Meu… pai sabia disso?

Salviana: …

Conceição: Ele foi um pai maravilhoso. Muito carinhoso.

Salviana: Então é o que importa, minha fia. Mais do que quem sabia ou não sabia.

As Lavadeiras
Não há chaga, nem dor na alma
Não há chaga na alma, nem dor
Aonde não caiba o amor
Aonde não caiba o amor

Salviana: Benze o menino, não carece de levar em médico. Vou buscar umas ervas. Se tem uma coisa que eu sei que ficou em você da nossas raízes é a força de cura com a reza, de tirar o mal com a mão. Acenda as velas.

Conceição começa a rezar em silêncio, uma reza fina que ecoa.

As Lavadeiras
Pretas almas que ecoam na história
As memórias de quem relutou
De um povo transformador
De um povo transformador

O Filho: Mãe? Mãe, é você? Mãe, tive um sonho bonito. Preciso te contar.

As Lavadeiras
Não há chaga de cor na alma
Não há chaga na alma de cor
Aonde não caiba o amor

O Filho: Não há nada nessa história que não esteja manchado de vida, não tem invenção, embora tudo seja imaginado, não tem fato, embora tudo seja real. Esse é o meu legado, marca de uma raiz preta em minha pele, é tudo dito assim em primeira pessoa e ferve o sangue de dizer. É tudo dito assim em primeira pessoa e mesmo tão íntimo sei que é possível reconhecer Conceição em tantas outras Conceições nos becos e vielas do mundo, de pretos e profundos sonhos. De dores seculares, de lugares distintos, de origens iguais. Mas não há mais doença que não preceda a cura, quando se trata de vidas pretas. É isso que a história das minhas antigas me lembram a cada dia. É isso que eu reconheço hoje na história de minha mãe, na minha, em nossa negritude e em como ela se entrelaça. Preciso ser um filho que fica e um homem que ama. Tenho um legado a contornar. Preciso der uma pessoa preta que muda e não se cala, alguém com vontade de transformar e se transformar. Preciso ter que aguentar menos que minha mãe, bem menos que minha avó e meu avô, mas preciso me lembrar da força que sustentou Conceição em pé em todos esses dias.

Conceição: Que você quer, menino?

O Filho: Me segue, Dona Eunice, vem.

Conceição: Ô menino doido. Mal melhorou já tá aí dando trabalho. Essa viagem quase sai caro demais pra gente. A gente precisa é comprar as passagens e voltar logo, isso sim. Vai, fala. Que você quer de mim?

O Filho: Preciso te contar meu sonho.

Conceição: E precisava ser aqui? Que horas são no seu relógio? Eu ainda tenho umas coisas pra resolver. Que lugar é esse?

O Filho: Um cartório.

Conceição: Tá. E por que você me trouxe aqui? Você não acha que já foi coisa demais pra minha cabeça, não?

O Filho: Presta atenção. Sonhei um sonho azul, sonhei com Conceição. Uma mulher negra que pegava na minha mão e me dizia que seria minha guia no que eu fosse fazer. Eu pensei que era você no sonho, mãe, mas não era. Foi o sonho mais lindo que eu já tive e acordei com uma ideia. Conceição, o nome que o racismo e a maldade te tirou, é o nome que eu quero ter no meu. Quero por no meu sobrenome Conceição, pra que saibam minha origem. Pra que saibam que existe uma preta raiz que diz de onde eu vim. Quero que olhem pra mim e saibam dela.

Conceição: Espera… Você é doido mesmo, menino. Mas você quer que eu faça isso também? Porque eu não sei se eu

O Filho: Não, não, não. Sou eu, agradecendo por estar aqui vivo. É por Conceição que existo como eu sou também. Então tem algo em mim que quer agradecer essa existência.

Conceição: Ai filho… Pensa direito. Tem certeza?

O Filho: Tenho. Quer ir comigo?

Conceição: Ah, não sei se eu consigo… É um lugar esquisito pra mim, as lembranças e tudo que ainda tá na minha cabeça. Posso ficar?

O Filho: Perfeito. Me espera aqui.

As lavadeiras surgem, entoam um canto sem palavras por um tempo.

Conceição tira um par de brincos de ouro do bolso. E um espelho. Se olha. Sorri. A cena leva um tempo.

Conceição: Tô bonita? Tô? Posso ser bonita? Posso me sentir assim? Bonita? Posso deixar meu cabelo tomar a forma que ele quer e sorrir assim bonita pro espelho? Eu posso amar a espessura da minha boca? Posso amar a largura do meu sorriso? Posso sorrir? Eu posso olhar pro meu ventre e ver que nele venta liberdade? Eu tenho esse direito? Eu posso, ai, posso tirar um pouco do peso das costas? Como pesam essas memórias. Posso aliviar as costas? Tem certeza? Posso cantar e dançar e correr e dizerem olha ela que canta que dança que corre e tá tudo bem? Rezar minha reza. Chorar meu choro. Amar. Posso amar? Eu posso parir e sangrar sem tanto medo? Eu tive medo. Medo da minha menina mais nova nascer preta e ser chamada de feia, medo do meu filho nascer preto e não se achar bonito. Isso (mostra o espelho)… É só um espelho, tem quem pense… Eu sou preta. Isso não é um espelho, é o mar. Tem quem contemple a paisagem e tem quem seja tragado por ele. Tem quem veja beleza e tem quem veja histórias. Eu sou preta.

O Filho: Mãe.

Conceição: Você acha que ela vai gostar?

O Filho: Do brinco? Vai achar lindo! Vai sim.

Conceição: Então tá bom. Como foi lá? Deu certo?

O Filho: Assim… É… Não. Pelo jeito você não pode colocar um sobrenome, só tirar. Mas sabe que eu pensei? Pensei em começar a assinar meus textos com esse sobrenome no final. Isso eu posso. Quem sabe eu até não escreva uma peça da nossa memória aqui dessa viagem.

Conceição: História não vai faltar…

O Filho: Você tá bem, mãe?

Conceição: Um pouco confusa ainda, com algumas coisas pra curar, mas sinto que um vazio foi preenchido e fico pensando em como deve ter sido pra ele…

O Filho: Como você imagina?

Conceição: Ah, não sei… Fico revendo algumas cenas dele comigo, pensando em outras. Ele grandão, comigo no colo. Fico lembrando que sua irmã cabia na palma das mãos dele, penso no carinho, aí fico pensando isso comigo.

O FILHO (pegando um pano nas mãos): Maria! Olha só pra ela, ela não é linda? É minha princesa ela, Nilsa. Ói Mercês, ela ri quando o Eli Corrêa fala. Ela gosta do som do rádio, Mercês, ela acha bonito. (liga o rádio antigo, que toca Luiz Gonzaga).

Conceição: Você é igualzinho ele mesmo. Como é que a gente nunca percebeu? Tava debaixo da nossa fuça.

O Filho: Tava mesmo. Nossa! Tava mesmo!

Conceição: Ai ai…

O Filho: Agora imagina como foi pra ela…

O radinho chiado continua por um tempo até cessar.

Conceição: Sachica…

Sachica: Fia…

Conceição: Eu vim lhe trazer um negócio. Será que a senhora vai gostar?

Sachica: E o que é?

Conceição: É um presente.

Sachica: Pra mim?

Conceição: Olhe…

Sachica: Ave maria que é bonito demais… Tenho nem orelha pra butar esse horror de brinco. É lindo demais, minha fia. Quando foi que você comprou?

Conceição: Depois que o menino melhorou. Me acalmei, fui no rio, rezei, pensei nas coisas que a senhora e resolvi que queria comprar um presente.

Sachica: É lindo, minha fia. Muito obrigado! Óia… Eu me sinto muito culpada de não tê tido com você, viu? Não sei das coisas que você viveu se eu podia ajudar…

Conceição: Se sinta culpada não. Se sinta culpada não porque hoje eu nasci de novo e a senhora tá aqui e minha mãe Mercê também tá, e hoje eu sou mãe também. O tempo correu e a gente tem vencido.

Sachica: Não sabia que quando fui butar teu nome, o moço do registro falou que teu nome significa vitória? Eu ia butar era “Nilsa”, mas ele falou que tal de Eunice significa vitória, aí eu butei. Filha minha tem que vencer na vida.

Conceição: Vencemos juntas. Agora… Eu vou me embora daqui um pouco, que o enterro já foi. Já fiz o que vinha fazer aqui e muito mais, não é? Mas antes, cê não iria comigo na beira do rio? Queria ver ele contigo antes de ir.

Sachica: Vamo!

Conceição: Sabe, eu não lembrava de rio aqui na cidade. E agora tem aquele rio bonito. Parece até sonho.

Sachica: Mas dizer que parece sonho, não é dizer que parece mentira. É dizer que é mais verdade do que a verdade. Antes da gente ir, ó, toma….

Conceição: Não, é seu o presente.

Sachica: Não, ó. Fique com um e eu fico com outro. Cada uma numa orelha. É boniteza demais pra uma véia só. Ó, veja aí no espelho. Agora ficou bom, uma completa a outra.

Voz em off da mãe: Completando sobre as Conceição da família. Agora pouco ouvi um padre falando. Contou a história de um caçador que achou um ovo de águia e colocou junto aos ovos de galinha para ser chocado e quando nasceu, foi criado como galinha, mas sempre que o caçador o encontrava falava pra ele: você não é galinha, você é águia.

E cheio de medos ela dizia que não, aí o caçador levou ela até um penhasco e mostrou as outras águias voando e disse: eu vou te jogar e você vai ver que pode voar assim como elas. E ela: “Não pelo amor de Deus não faz isso, eu vou me arrebentar” e ele a jogou e ela voou lindamente. Bonito, né?

Acho que Deus me escolheu pra ser forte e guerreira, assim como todas as Conceição da família, que são mulheres fortes e guerreiras.

Mulheres que não esperam que o tragam o que comer, porque se não tiver, elas vão à caça e alimentam sua família, mulheres que tem no sangue uma força, mulheres negras que lutam para se sobreviver, mulheres negras que não abaixam a cabeça para olhares tortos, mulheres simples, mas de um coração gigante, que assim como minha avó Salviana, minha Mãe, tias, irmãs, primas, todas, todas vão à luta e mostram para a sociedade que elas são gente sim, gente como toda gente. Mulheres que carregam todas em seu nome “Maria” são guerreiras e fortes, assim como Maria.

FUI FEITA MARIA, FUI FEITA CONCEIÇÃO, FILHA DE CONCEIÇÃO.

Pronto, doido… Acho que tem o bastante pra você finalizar sua peça. Tem não?

As Lavadeiras

Lava o chão, lava a mágoa, lava o medo, lava a dor
Lança o véu, oi, lái vai água, toda grávida de amor
Leva rio e vem riacho, acalmar quem se abalou
Leva riacho, oi, vem rio, abalar quem se acalmou
Conceição, é mãe do tempo, é quem canta o cantador
Conceição, é mãe do mundo, é quem mata o matador