Primeiras Dramaturgias
Direto de Moscou
Personagens:
CrisValMinalbaNeto
CENA 01 – FALADOR PASSA MAL
Interior da estação, caminho do metrô para a plataforma do trem. Val e Cris seguem o fluxo da multidão.
Val: …Acho que você perdeu tempo com balela, só acho! Tô aqui te dando um conselho de graça, ó fiz mais uma azulzinha boa, sólida, bufunfa… nesse tempo em que você tava lá encostadão lendo, pagando de baobá… Isto aqui é passaporte meu amigo… pra qualquer lugar. Agora isso aí (aponta pro livro na mão de Cris) isso é luxo de quem tem a vida ganha. É distração, eu construí mais uma parte da minha ponte pro Paraíso enquanto você tava lá criando raiz, lendo algo que só te pôs mais dúvida, você tá se pondo num buraco. Andando igual caranguejo… Cê é trouxa! Sim ou com certeza?
Cris: Cara eu só fiquei porque ela precisava sair e não tinha como, o colega dela não tinha chegado, fui solidário e aproveitei o sossego da ocasião. Outra coisa Val, nem foi tanto tempo assim, duas páginas… só duas páginas… e parece que tava falando da gente. Eu achei bem interessante, me impressionou…
Sabe quando você ouve uma coisa que muda o sentido de todas as outras? É disso que eu tô falando e queria dividir com você… Cê vê algo que não dá pra desver, que tem um cachorro invisível, bravo amarrado de corrente na tua perna, um dia você consegue ver o bicho, daí percebe que ele não some mais. Ele sempre, sempre teve ali… Entende?
Val: Cê tá é totalmente brisado, tinha um beck nesse livro, é? Deixa eu ver, deixa? Outra coisa, tu ficou lendo e não atendeu os cliente da loja? Duas vezes errado então… preferindo um trampo que te pagou bem menos pelas horas do que o corre no vagão, e na real tava matando o tempo, só viajando… Se a Glorinha tivesse ali, tinha te filmado pra gente zoar depois.
Cris: Ah cara, a Glorinha! Mano que saudade daquela bandida, fiquei ali no Beijo, olhando pra barraca dela e lembrei da gente rindo junto. O que leva alguém a ir embora sem nem olhar pra trás, sem se despedir?
Val: Dinheiro! Quem ganha dinheiro, muda de afeto… Ela sempre falou que um dia ia ganhar na loto, vivia fazendo essas contas malucas. (Procura se lembrar de um termo) ESTATÍSTICAS… Foi isso! A sorte sorriu pra ela, e ela foi, deixou a tranqueira do dog e tudo. E tem mais, se ela não passou o ponto pra ninguém, acho que a Companhia tira o box dela ainda nesse mês.
Cris: Ela foi abduzida, isso sim… Tenho certeza! Ela gostava desses assuntos. Forçava esse tipo de comunicação com o outro lado, tinha cristal, gnomo… e jurava que tinha visto ovni… aqui em São Paulo mesmo. Nem estrela a gente vê, mas Glorinha viu um disco voador! Não duvido que ela tenha ido de carona num desses.
Val: Rica! Cara, enquanto a gente pula de trem em trem, sem sair do lugar, ela deve tá dando a volta no mundo.
Cris: Tomara! Ver o Dog ali resolvia um pouco da saudade, as vezes eu acho que ela vai aparecer a qualquer momento… Parar ali pra mim é que nem deixar flor no cemitério.
Val: Vira essa boca pra lá Cris, quem disse que ela morreu?
Cris: Sei lá, tô só falando de sentimento mesmo. Eu sinto isso aqui… Mas deixa pra lá… Então posso terminar a teoria que a Minalba tava me explicando?
Val: Termina até a gente chegar na escada. Que ali a gente não pode marcar.
Cris: …Merda de Emprego são apenas trabalhos ruins, geralmente até importantes para tudo funcionar, mas que no fundo são trampos que ninguém gosta de fazer, já que se ganha muito mal e são serviço pesado… já Emprego de Merda, são muitas vezes bem reconhecidos, bem pagos, mas no fundo são funções que não resolvem nada, são desimportantes sem as quais o mundo podia funcionar até melhor. A dona Zefa, e todo pessoal da limpeza, por exemplo, tem: … uma merda de Emprego.
Val: Então, nesse pensamento aí, os seguranças da catraca – dentro desse mundinho! Tem Emprego de Merda, por que ganham mais que a turma da limpeza e sem eles talvez o serviço até melhorasse pra todo mundo.
Cris: Todo mundo é muita gente, a companhia de trem não ficaria muito contente… Bom, melhor mesmo seria não ter catraca… Daí descartava o segurança também, de vez… (riem) Mas acho que o problema não é a função e sim o excesso de gente na função.
Val: Tá bem, entendi, você iluminou meu dia, muito obrigado por dividir essa coisa revolucionária comigo, a vida já é complicada! Ficar pensando no que você é e no que deixa de ser é bem importante aí, mas aqui fora, no mundo real a gente tá com a mochila bem pesada, isso significa trabalho. Vamos!
Cris: Eu não “sou”, eu “estou”!
Val: Pronto!vai começar de novo. Para, vai! Agora deixa eu falar, que o seu sermão já deu.
Cris: Eu “estou” vendedor.
Val: Para, tu “está” otário, isso sim, ficar pensando se é flor ou espinho tá tirando seu tempo de ser qualquer coisa de fato. ACORDA! Você é um vendedor e dos bons. Só tem que parar de ficar moscando… a gente já perdeu muito tempo meu, não se amigue com gente que vai te atrasar ainda mais Cris. Eu sei que você tá andando com essa mina errada, chave de cadeia, ela botou algo no teu suco. Você tomou e vai tomar de novo! Porque o Neto vai botar no teu cu por conta disso. O-TÁ-RI-O!
Cris: Vai rogar praga em outro! Você virou meu pai agora é? Quem vai tomar no cu com o Neto é você que anda puxando assunto com esse gambé. É todo sabichão mas só se garante no gogó.
Val: Tô falando e você ainda tá parado nisso, fecha essa porra meu, vamo que o nosso trem chegou… E vazio… Vai dar pra fazer um show hoje!
O trem vazio passa sem parar, frustrando todos da plataforma. Só Cris parece não ligar.
Cris: Não era “o nosso”. Pelo visto esse era daqueles pratos caros, cheio de comida bonita, apetitosa que sai da cozinha, pra gente sorrir, lambendo os beiços, enquanto na verdade o nosso tá vindo lá atrás, rachado, ralinho e sem graça… E alguém lá em cima fica rindo dos trouxa que tiveram 5 segundos de espanto alegre aqui embaixo.
Val: Meu, melhora esse astral, cara fechada não vende porra nenhuma.
Cris: Essa vida tá me matando! Viver está me matando… Tenho ânimo em acordar cedo e vir pra cá não, tô me afogando no seco, procurando respiro. Cê consegue porque não pensa, né Val?
Val: É que eu vejo o paraíso depois desse dia, como se esse hoje fosse cortina, cê tem que respirar fundo e levantar pra conseguir espiar o dia bom que fica logo depois, logo ali… Tem que pensar que é só mais um dia…
Cris: Porra só tem cortina nessa droga então, que a gente abre, abre e não abre nada! Eterna segunda-feira de chuva… Cê pode ter plano diferente, mas também não sai do lugar, tamo só enfeitando a bosta.
Val: Para meu irmão, você tá deprimindo toda a plataforma. Tá querendo o quê? incentivar as pessoas a pular? Já tem gente demais nessa função também. Levanta a cabeça, imagina aqui na tua frente 27 quilômetros de praia, e de praia LIMPA, não tô falando de cartão-postal do Rio, bonitinho e de água verde na foto, mas tudo imprópria pra banho. Essa não… é uma água cinza mesmo, por conta de um mineral me disseram, então imagina uma praia com uma imensidão de areia, que dá pra jogar bola, todo tipo de esporte, pegar banho de sol e ter minha barraquinha de caldo de cana por exemplo… são mais de 20 quilômetros de ciclovia, eu indo e voltando de bike, bronzeando o corpo e só vendo a paisagem.
Cris: E onde é esse paraíso?
Val: Long Beach. (esticando um imenso letreiro imaginário com as mãos)
Cris: Hein?
Val: LONG BEACH… Praia Grande, em inglês (Cris ri de engasgar). Palhaço!
Cris: Mó praia de maloqueiro. Eta mau gosto da peba, achei que você fosse falar da Bahia, de Pernambuco… Fernando de Noronha.
Val: Maloqueiro é seu pai, seus irmão, seu filho, seu bando todinho, e mau gosto teve é deus quando te fez, seu otário! Fala de mim, fica sempre me corrigindo, mas agora quem tá sendo preconceituoso é você. Qual a última vez que você foi pra Praia Grande?
Cris: Sei lá… acho que foi no Bug do milênio.
Val: Ano 2000? Vai fazer 20 anos que você foi pra lá, e fica falando como se conhecesse a cidade? Cris você é um merda! É isso que você é… Agora eu cansei da conversa…
Cris: Pô Val, eu tava só brincando de ser chato… inspirado no seu jeito mesmo… Continua, vai, me leva pro seu paraíso, ainda que seja a Praia Grande, cada um tem o Paraíso que merece.
Val: A Praia Grande cresceu com o charme dos enjeitados. Enquanto todo esse povo só olhava pra Santos e pro Guarujá, a cidade se modernizou cara! E quer saber, até prefiro que continue com essa fama ruim mesmo, assim não enche de gente, concorrência, aumento de custo de vida e tudo… No verão é a cidade que mais recebe turista no Brasil, quintuplica sua população nessa época, sabia? Quase 2 milhões de pessoas…
Cris: Isso é a imagem do inferno e não do paraíso… ESTOU BRINCANDO… viu? Mas 2 milhões de pessoas!! Que que tu vai oferecer no meio de uma aglomeração dessas?
Val: Sei lá… O que a gente pode oferecer no meio de um monte de gente que quer… se divertir?
Silêncio.
Cachaça, talvez… O que eu vou oferecer?… Ainda preciso fazer uma pesquisa de campo na região… (chega o trem) Opa chegou… e cheio, depois a gente fala mais disso. E aí ficou animadinho? Hein? Hein? Vai nesse ou no da ponta?
Cris: Vamos fazer o mesmo hoje, eu vou vendo você pra me lembrar como se faz. Tudo bem mestrão?
Val: Vem comigo que você passa de ano!
CENA 02 – TÔ NO BALANÇO DO NAVIO
Cena em ritmo acelerado, um dia intenso de trabalho dos marreteiros. A princípio Cris se encosta num canto só observando a performance de Val e dando cobertura por conta da fiscalização.
Val: Bom dia passageiro, bom dia passageira, a porta fechou, o perigo passou e o produto de qualidade chegou. “Para… animar a festa!” (cantando). Qualidade e novidade aqui na sua mão é só chamar. Trago o novo fone da Samsung, estéreo, cabo de metal, e ainda vem nessa caixinha linda. Opa! A cliente ali já levantou o braço. Vai querer quantos, minha flor? Mas segura aí que eu já volto… Eu tava vendendo por 10 ontem, e podem comparar com qualquer loja de shopping, se vocês tiverem a sorte de encontrar desse aqui, que tá em falta no mercado, vai sair na média de 25 reais. Aqui na minha mão era 10… (mexe com a moça que passa pelo corredor no meio do trem) Moça, moça, caiu! Caiu! O PRE-ÇO!
É isso mesmo minha gente, são as últimas unidades e eu prefiro vender barato pra vocês do que perder pros guarda (provoca Cris) então se chamar com 10 reais vai levar 2. Mas é só hoje. Aproveita. 2 kits de fone, com cabo de aço na caixinha, por 10 reais. Testo na hora, e se não ficar satisfeito devolvo seu dinheiro no ato.
É Direto de Moscou – Moscou o guarda levou!
Cris (totalmente re-animado): Pessoal aproveitando o corre do nosso amigo eu também vou incomodar um pouco a viagem de vocês, mas é pra adoçar a vida… trago pro trabalhador e pra trabalhadora o mais novo lançamento da Ferrero Rocher, esse sensacional chocolate trufado da Hersheys coberto com wafer crocante de um jeito que só a Garoto faz pra vocês. E hoje é dia de sorte, é só chamar com 5,00 que leva 3 unidades, dentro do prazo de validade, pode conferir, leva 1 por 2,00 e 3 por 5,00.
Aí na ponta vai querer quantos? 6? Espera que eu já estou chegando e se os guardas entrarem, eu tô dando pra vocês uma palestra sobre o aquecimento global. Certo, minha gente?
Minalba (disfarçando a voz e surpreendendo Cris pelas costas): Perdeu, perdeu, Marreteiro, pode levantar as mãos e deixar a mercadoria no chão.
Cris: Calma amigo eu sou trabalhador, eu tenho 5 filhos pra sustentar, e eu tenho nota de tudo. Ia vender na rua, não era comércio irregular não. Tava só fazendo uma pesquisa de opinião.
Minalba (Cessa a brincadeira, Cris demonstra alivio e irritação): Como você é inocente! Entrega toda a fita de bandeja… Não sei como você sobreviveu até hoje! Tem uma criança perdida aí dentro!
Cris: Poxa Minalba, que brincadeira é essa? Assim você me desmoraliza na frente de toda a clientela, ó lá, tão tudo rindo de mim agora…
Minalba: Não fica bravo não… Eu prometo que eu não faço mais… Eu fiquei pensando em nossa conversa… E até te trouxe um presente.
Cris: Você e um presente… Aqui a essa hora Minalba?… E o Beijo, tá fechado?
Minalba: Mais ou menos, a banca tá aberta, mas em manutenção, você viu a situação ontem né? Os rolos não rodam mais, e hoje as luzes que estavam piscando pararam de vez, Donagê mandou uns rapazes da manutenção lá, estão desmontando tudo, não cabe nem meia Minalba ali. Os fãs do Beijo estão temporariamente órfãos.
Cris: Então ganhou o dia minha musa? (se vira e fala para passageira, pessoa do público) Já vou te atender senhora, só um minutinho…
Minalba: Hoje sim, é que eu tinha folga atrasada também… Ah, e por falar no Beijo, a Donagê gostou de você viu Cris, do seu trabalho, você deixou a chapa limpinha, me rendeu na hora certa, não deixou nada de lixo no chão e deixou as lixeiras vazias. Você tem um “talento especial pra isso!” – Foi isso que ela disse! E ela confirmou que quer ir embora mesmo, vai passar o ponto. Que me diz? Se confirmar que tem interesse, ela senta pra conversar com você já na semana que vem, traz as papeladas e tudo.
Cris: Assim do nada Minalba, nem sei… (impaciente ao ser interpelado grita pra cliente/passageira) Derreteu tudo moça. Acabou! Desculpa. Continua Minalba!
Minalba: Ôôô tava brincando de novo, homem, só pra ver sua reação. (ri) Acho que você ia precisar vender muito chocolate pra comprar a banca. A não ser que você tenha alguma herança pra receber…
Cris: Ah… Não, pior que não, só tenho parente duro, O que eu tenho mesmo é umas dividas pra receber, mas ninguém respeita minhas cobranças.
Val: Cris, preciso de troco, e olha os clientes!
Minalba: Oi Val.
Val: Oi Minalba!!! Escuta, vocês podem pelo menos tirar esses sorrisos do caminho? Tão atrapalhando o visionamento da minha mercadoria, a clientela tá acompanhando os dois como se fosse novela… Chispem…
Ambos dão mínima atenção a Val e voltam ao interesse do flerte.
Minalba: E as leituras… Você terminou? Curtiu?
Cris: Achei interessante o lance do trabalho, tava até tentando explicar pro cabeça dura do Val. Agora esse conto não gostei não, achei bem sem sentido, o autor não explica de onde as pessoas vem, quem é o que de quem, parece que faltava palavra, difícil de entender. Parece poema, mas é chato, não rima e nem comove!
Val: Bichão tá moscando? (Cris o ignora e continua a conversa com Minalba)
Minalba: Te entendo! Mas que pena! É dos meus prediletos. É um escritor bem econômico, preciso!
Cris: Não, eu não quis dizer que é ruim… Quem sou eu pra avaliar isso,é só que pareceu difícil… acho que lendo mais um pouco talvez as palavras amoleçam né…
Minalba: Com certeza, livro é que nem gente, às vezes a gente precisa cercar de outras formas… e nem tudo é só questão de entender, as vezes é uma sensação que vai te provocar, te botar uma imagem na cabeça, da próxima você pode começar imaginando que é um chamado pra construir o sentido junto. Esse escritor trabalha sempre assim. Bom, mas se você não gostou dele nem vou te mostrar os meus por que também são nesse mesmo estilo. Cheios de lacuna.
Cris: Ah não, para, deixe disso! Eu quero te ler sim! É falta de hábito com essa forma de contar só, mas eu me acostumo. Sendo seu então, aí é que eu vou ler com atenção redobrada!
Minalba (flertando): Isso!… vai preenchendo… com a imaginação.
Cris (meio desconcertado): …Errr, eu, eu, eu gostei do homem de Java, aquele achei bem bom e engraçado… mesmo sendo bem mais antigo.
Minalba: Ah, eu imaginei. Do “Homem que Falava Javanês” eu já sabia que você ia gostar, é mais tradicional. E o personagem parece com você…
Cris: Tá me chamando de xavequeiro?
Minalba: Não, não por isso. (ri) Então tá, depois quero ver o que você andou escrevendo também.
Cris: Eu não escrevo nem bilhete…
Minalba: Você falou que tinha vontade… Falando nisso… já ia me esquecendo. Está aqui o seu presente!
Cris (desembrulha um caderno de capa dura,o tempo para em sua admiração de surpresa, ele manipula encantado o caderno): Nossa, é lindo, mas eu não tenho tanto assim pra escrever não, minhas rimas cabem no papel de bala…
Minalba: Então não precisa espichar o tamanho de nada, mas aqui você não perde. Não se assusta com a quantidade de página. Imagina que isso tudo é um espaço pra brincar… Um parque pra criança de qualquer idade… Depois de ontem eu tenho um pressentimento que assim que você começar, vai querer estampar todo esse caderno com sua letra, você já gosta de contar história. Agora põe elas aqui… Todo espaço em branco vai ser pouco.
Cris: Sim senhora! Mas melhor você esperar sentada… Eu preciso achar uma história primeiro.
Minalba: Isso é o que não falta, né Cris? Todo mundo tem histórias. Um punhado de história. Se você não apanhar elas evaporam… Precisa ser nada especial não, o barato não é O QUE você vai contar, mas sim COMO… Falada sua vida até aqui, ou aqui neste lugar. (cochichando) Ou das histórias que você ouve dos passageiros. Ou ainda de como você quer que as coisas terminem. O que só você sabe e que pode contar pra um leitor?… Inventa!
Cris: Tá bom, vou brincar além da poesia… no caderno. Vou aproveitar pra gastar as fantasia nele também.
Minalba: Ótimo, dá pra brincar com todo gênero! E… depois… como já tenho um monte de coisa escrita, só vou te mostrar quando você me ler suas primeiras páginas. Pra ser bem justa.
Cris: Tá bom. É justo. (Minalba se despede correndo, manda um beijo no ar e Cris a segue com o olhos) Tchau…
Pela mesma porta do vagão da qual Minalba sai, entra Neto de óculos escuro e chapéu. Minalba rapidamente o reconhece e se esquiva sem ele notá-la. Neto senta-se num dos bancos vagos, abre um jornal fingindo ler e passa a observar Val e Cris que seguem seu trabalho sem percebê-lo.
Val: Ei acorda. Volta pra terra que você não está num filme antigo não!
Cris: Eu sei, mas não queria deixar ela ir…
Val: Em compensação, você deixou um monte de venda ir embora… E ficou moscando com a mochila aberta! Você é três vezes trouxa! E não bula com a mulher do guarda não, que vai sobrar pra todo mundo. O Neto é meu amigo, mas ainda acabo perdendo a confiança dele por conta dessa sua asa arrastada.
Cris: Val, o Neto não tem amigo nenhum, não, e ninguém é dono de ninguém meu caro. Ainda mais Minalba, ah ela é diferente, independente.
Val: Não é assim que os outros pensam não. E eu concordo. Ela é estranha pra caralho, sempre olhando de cima como se tivesse investigando… Ela se acha melhor que todo mundo daqui. Fica com umas perguntinha besta… Cuidado! vou te contar uma coisa terrível, mas é pro seu bem… Tá prestando atenção?
Cris: Tô
Val: Outro dia passando pelo Beijo, ela não me viu, tava com os vidro tudo fechado e parecia em transe, falando como um disco quando a gente rodava ao contrário. (Nesse momento do outro lado do palco vemos Minalba na loja de churrasco grego estudando russo em voz alta, a luz vai ficando vermelha ganhando a atmosfera de terror que Val enxergou ali, a cena some quando Val encerra o que conta sobre) Era de dar medo, eu passei bem do ladinho e não era letra dessas que a gente conhece não. Ela tava invocando ó (aponta pra baixo) o tinhoso. (Cris solta uma gargalhada)
Cris: Cê tinha tomado o que antes de passar por lá?
Val: Cê não leva a sério, então esquece, mas falo pro teu bem, e fique sabendo que o Neto é meu amigo sim, ele pode ter um gênio forte mas tem uma consideração danada por mim.
Cris: Porra Val se olha no espelho. A gente não tem nada a ver com o tipo de cara que o Neto é! A gente é diferente!
Val: Cê tá querendo dizer o que Cris? No que que eu sou diferente dos outros, desembucha? Fala aí… Tá tirando onda comigo? Tô tentando te ajudar ô manézão… Quem avisa amigo é. Cê sabe que a gente tem que conservar a amizade com os guarda…
Neto (surpreende os dois se levantando do banco de passageiros): Bom dia amiguinhos, já estou aqui!
Cris: Falando no diabo.
Neto: Val, seu amigo bambi deu pra afrontar autoridade agora?
Cris (exaltado): Do que ele me chamou mesmo?
Val: Cris, calma aí…
Neto: Isso, lembra pra essa… figura… (ele checa se não tem ninguém muito próximo e fala mais baixo como quem conta um segredo) que é graças a nosso contato que vocês podem trabalhar aqui… E tô aqui só pra fazer a manutenção da nossa amizade. À paisana mesmo, tá… só pra te lembrar que o preço do café subiu.
Val: Como assim? Essa quinzena a gente já pagou o combinado.
Neto: É a crise, tá brava pra todo mundo, logo, esse serviço… essa gentileza que faço, também ficou um pouco mais cara, tô vindo lembrar que agora é semanal, ouviram, meninas?
Val: Olha Neto me respeita, que eu nunca te faltei com nada, e que papo é esse de pagamento. Cê tá zoando com a nossa cara?
Neto: Escuta aqui… ô… ô afinados.. Tão achando que eu tenho tempo pra maluco agora? Tenho não, só saio do meu posto pra zelar pelo espaço e pra fechar negócio. E hoje não vim negociar. Só AVISAR! Quer ter passe livre pela frota sem ameaça de recolha, em segurança, então tem que fazer por onde… Essa é minha linha. Não tá feliz pode tentar a sorte em outra… Tudo mais caro, com os sujeitos da pior espécie e vocês ainda vão ser engolidos por uma manada de vendedor que mais parecem jogador americano de basquete. Mas se tentarem, nem chegam a fazer essa fita em outra linha não. Ninguém quer problema e se eu conto que vocês dão problema, aí já sabe né. Ninguém aqui vai abrir pra vocês.
Então relembrando é 100 a semana por cabeça, eu tô lá no postinho. Tá ok? (sai de cena)
Cris: Eu não tô acreditando nisso, Val? Não faz sentido nenhum pagar pra esse vacilão, ele não faz absolutamente nada. Tremendo sanguessuga.
Val: É por isso que a gente tá pagando, pra ele continuar não fazendo nada, pra que ele não venha querer “trabalhar” atravessando o nosso. Vamo pro próximo vai… Aqui só tem caroço… é só mais um motivo pra você trabalhar mais sério meu irmão. Esse calvário é investimento, daqui a pouco a gente vai virar patrão. Pode confiar meu caro, o Silvio Santos começou assim, pergunta pro seu Oscar.
Cris: Nossa o Seu Oscar ja tava nas raspadinha quando o Silvio marretava? O véio mal se aguenta em pé e ainda na lida, achei que ele tava na sombra, finalmente pra descansar um pouquinho antes de descansar pra sempre.
Val: E como? Se o cara é escravo da birita. A marvada não deixou esse homi se ajeitar na vida nunca, cansei de passar sermão nele, mas fazer o quê… Ele disse que pro Silvio Santos não tinha tempo ruim não, o cara tinha visão, mas também era malandro. É, meu filho, o mundo é dos espertos…
Cris: Imagino! Se ele pagasse todo esse arrego que a gente paga, ia tá na rua camelando até hoje. Esperto é quem junta primeiro o maior número de otários pra pagar sua conta.
Val: …Com arrego ou sem, eu tô no corre, e tô indo atrás do meu baú da felicidade.
CENA 03 – TODO DIA NESSA RUA PASSA
Mais um dia de trabalho na estação. Cris está trabalhando solo, com sua mochila grande e pesada. A plataforma está lotada, o trem para e ele entra com muita dificuldade, todos se acotovelam. Já dentro do vagão, sem nenhum espaço pra locomoção ele demora a começar seu trabalho porque há alguns protestos de passageiros pelo incômodo a mais que a imensa mochila traz ali dentro.
Cris: Desculpa gente. Bom dia pessoal. (Cris está coberto pela multidão, de onde é possível ver sua mão, a mochila e o pau de selfie usado aqui quase como um boneco de ventríloquo) Nem todo mundo tá me vendo. Mas hoje trouxe essa mercadoria de excelente qualidade que todos vocês podem ver olhando aqui pra cima. Esse maravilhoso pau de selfie com acionamento automático. Você pode filmar, tirar foto, investigar o que seus olhos não alcançam, esse é o O-RI-GI-NAL usado pela KGB com tecnologia russa direto de Mosc… (o trem para, Cris se esconde pois vê Neto de fiscal, assim que se abrem as portas)
Neto (procura mas anuncia mesmo sem vê-lo): Ô marreteiro, a gente tá te vendo pelas câmera mó cota e também recebeu denúncia.
Cris (resmunga baixo): Ô cambada de filho da puta!
Passageiro 1: Segurança ele tá aqui se escondendo.
Passageiro 2: E tá atrapalhando a viagem.
Passageiro 3: E ainda tá com volumão de mochila que não pode trafegar nessa hora.
Cris: Mas ceis são filho da puta mesmo hein! Vai ser cagueta assim lá no inferno!
Socos e pontapés, começa um tumulto, os passageiros reclamam porque querem que o trem parta logo e Neto incidentalmente salva Cris de uma surra o levando pra fora do vagão que parte num grande vozerio
Neto: Você é uma figurinha difícil mesmo! Folgado! Devia te deixar tomar um corretivo no vagão pra você aprender a não ficar atrapalhando a viagem do trabalhador.
Cris: Eu também tô trabalhando!
Neto: Cala a boca que não te perguntei nada. Achei que tava menos atrevida hoje? E não responde não que é pior pra você. Que tem nessa mochila? Só pau de selfie?
Cris: Posso responder?
Neto: Rápido!
Cris: Não, tem suporte, carregador e chocolate também.
Neto: Ótimo! Seu amigo me pagou e você ainda não, né otário? Então essa aqui você perdeu… Mané.
Cris: Ah Neto não faz isso.
Neto: E desembesta se não quiser levar um esculacho.
Cris vai embora cabisbaixo. Multidão de passageiros de um lado pro outro em ritmo acelerado. Luz desce. Múltiplos sons de estação invadem a cena. Luz sobe e Cris passa de mochila nova e vazia nas costas com seu caderno e o livro Quarto de Despejo em uma das mãos, lendo um, anotando noutro:
Cris: Rebotalho?!
Ele anota a palavra, pensa e pensa enquanto os passageiros passam de um lado pro outro e anoitece na estação.
Passam-se mais alguns dias e noites, semanas. 1 mês. Cris e Val estão contando mercadorias no chão, fazendo a divisão do que cada um levará. Cris deixa Val na contagem sozinho, folheia o livro Dom Casmurro e anota no caderno.
Val: Que diabo que cê tanto anota aí?
Cris: Palavras novas…
Val: Pra quê se você mal sabe usar as velhas?
Cris: Pra impressionar a clientela.
Val: Humm sei! Você vai mesmo seguir nesse outro horário?
Cris: Vou porque assim não fico esbarrando no seu amigo cafetão de marreta. E também porque o trem fica mais sossegado.
Val: Sem cliente! Você quer dizer né! Essa conta não vai fechar é nunca assim. E o Neto vai te achar e cobrar do mesmo jeito.
Dia seguinte na estação, no meio do plataforma Cris entrando no vagão dá de cara com Neto que o lembra do dinheiro sinalizando com as mãos. Cris corre. Neto corre atrás mas o perde de vista. Tempos depois Cris se certifica que está livre de ameaça, está na plataforma, com sua imensa mochila no meio da multidão, o trem abre as portas, as pessoas se acotovelam pra entrar, ele está lendo O Capital: Uma Leitura Popular, ele fecha o livro por um instante, e se pergunta, consultando mais de uma vez pra memorizar a palavra:
Cris: Martirológio do trabalhador? Mar… Martirológio do trabalhador!
Nessa hora um passageiro mais afoito lhe dá uma cotovelada, e seu livro cai nos trilhos, ele pensa em reagir mas vai atrás do livro que caiu, ele bufa e está disposto a descer nos trilhos pra pegar o livro mas o trem chega. Todos se acotovelam para entrar, ele some nesse mar de gente e só reaparece quando o trem arranca, a plataforma está mais vazia, ele acompanha ansioso o trem deixar todo o trilho livre mas quando isso ocorre ele nota que o livro também sumiu dos trilhos. Emputecido ele exclama:
Cris: Eita porra!
Cris desiste do trem seguinte, retira a pesada mochila das costas e anota no seu caderno a palavra inédita desse momento:
Cris: MAR-TI-RO-LÓ-GIO! Martirológio do trabalhador.
Do outro lado da plataforma Neto aparece novamente e sinaliza que vai pegá-lo na próxima.
Noutro dia no mesmo local Neto está jantando numa mesa vazia acompanhando um programa que passa na TV de uma das bancas, quando Cris chega para negociar.
Cris: Neto, calma não precisa vir pra cima não!
Neto: Ô figurinha você tá me tirando de otário mesmo? Calote de novo! Cadê o acerto que você me deve?
Cris: Calma cara, você aceita em espécie?
Neto: Tá me gozando? Você vai me pagar em quê? Em barra de ouro?
Cris: Não, é muito mais leve ó. (ergue a mochila pra demonstrar) Mas é tão valioso quanto, porque está esgotado! Você vai ter uma raridade nas suas mãos. Isso aqui meu amigo, hoje vale ouro, sabia? Tem muito mais de 100 reais em material aqui dentro. É melhor que dinheiro. Porque cê sabe, tudo que tá esgotado, fica raro e valoriza muito!
Neto: Então vende essa caralha e me traz dinheiro vivo!
Cris (Cris canta para Neto): “Dinheiro na mão é vendaval é vendaval…” Agora conhecimento meu irmão! Conhecimento é uma coisa que ninguém te tira. É verdade, cara, sério mesmo! Eu já reparei que os passageiros que tão sempre aqui ó… (faz mímica como se folheasse um livro.) ficam menos tempo na mesma linha, e com o tempo mudam de itinerário de vez. Alçam outros voos!
Neto: Sei! Tão tudo desempregado lendo em casa! Acertei?
Cris: Não, eles ganham em ideia e com essas novas até arranjam jeito de ganhar mais. Isso é um investimento, meu caro. Prepare-se! Olha só… (Neto cruza os braços impaciente, estralando os dedos, de raiva)
Neto: Figurinha eu vou contar até 3…
Neto se levanta e parte pra cima de Cris que acaba o convencendo a sentar de novo, ele tira um embrulho do tamanho de um tijolo de sua mochila, desembrulha lentamente fazendo suspense, é um box de livros Lima Barreto: Obra Reunida, ele põe na mesa do Neto, que parece não acreditar no que está vendo. No box ainda falta um volume, Cris percebe aflito e rapidamente retira o volume faltante de sua mochila, tira o marca-página, clipes e lápis e o encaixa no box como se completasse um número de mágica
Cris: Tcham tcham tcham tcham… Que me diz? Lima Barreto Obras Completas reunidas em 3 volumes de capa dura. Edição de Luxo… E tudo isso nessa linda caixa, também dura!
Neto: Não me vem com essas conversinhas também não! A palavra e a verdade eu já conheço. Tá me achando com cara de desocupado, pra perder tempo com a cabeça enfiada nesse tipo de livro.
Cris: Melhor do que ficar com ela enfiada no pó, cê pode ter certeza!
Neto: Ah seu porra. Agora eu te mato! Vou enfiar essa lima no teu cu!
Neto procura a arma no coldre, percebe que está sem ela, ele vira a mesa e corre atrás de Cris até perdermos ambos de vista. Segundos depois ambos estão de volta.
Cris: Puta falta de visão a tua! (ambos correm em torno das mesas)
Cris repentinamente cai na capoeira com o Neto que não tem a mesma ginga, Neto avança pra apanhá-lo e espatifa contra o chão. Cris se safa num salto, apanha o box de livros do chão e some na estação.
Neto (Grita enfurecido): Você ainda vai precisar voltar e nessa eu te pego, seu lixo!
CENA 04 – PISA NESSE CHÃO COM FORÇA
Passagem de tempo acelerada em que vemos Val e Cris trabalhando vertiginosamente, mas agora mais receosos que antes. Há seguidas entradas e saídas dos vagões, andanças pelo interior do trem de ponta a ponta numa exaustiva coreografia. Ao fim da jornada com as mochilas agora vazias, os dois se despedem. Cris checa tudo ao seu redor até que resolve descansar num banco da estação enquanto folheia seu caderno.
Cris (começa a escrever, em vários momentos está visivelmente procurando em sua cabeça as melhores palavras): Era uma vez… (a cada tentativa de escrita seu pensamento é interrompido pelas vozes dos passantes na estação.)
Todas as falas dos personagens dentro do conto de Cris podem soar propositalmente artificiais, inclusive a narração de Cris em tom bastante afetado/radiofônico.
Vários passantes andando em diferentes direções.
Passante 1: Eu não vi como aconteceu, mas soube de fonte segura que foi exatamente assim como tô te falando.
Passante 2: Então pede a Deise pra deixar tudo exatamente como estava!
Passante 3: Se eu tivesse um sapato novo eu conseguia aquela vaga.
Passante 4: Para Claudio! Eu vi muito bem pra onde você estava olhando. Não tem “mas”, e nem meio “mas”.
Cris: Uma pessoa que trabalhava na estação andava aproximadamente…
Passante 5: Mas vai ter volta, a Vila vai contratar o Marquinho, você vai ver!
Passante 6: Ah que bom! Não vejo a hora que chegue sexta-feira, meus saltos estão me matando.
Passante 7: Nunca vi coisa assim na minha vida antes.
Cris: Meu nome é Cris, Cris na verdade é meu apelido, meu nome é…
Passante 8: ”Parabéns pra você, nessa data querida, muitas felicidades…”
Passante 9: Encomenda 3 do amarelo, que esses estão lindos.
Passante 10: Marisa, Ma-ri-sa! Quanto tempo! Achei que você tinha mudado de cidade, Mulher, você tá outra. Tá passando fome é?…
Cris (bufa, retoma o fôlego e deslancha): Os que vendiam. Eles eram em 3, compartilhavam de uma anatomia semelhante, montes e vales parecidos, mas em proporções diferentes, e relações diferentes com esses seus corpos… Esses corpos quando desnudos são constantemente entendidos como corpos de mulheres. Mas vestidos, Cris e Val escapavam das definições fáceis, eram em geral tratados como 2 homens, algumas vezes como 2 corpos estranhos.
Minalba não!… era uma mulher, “a mulher”, falando e se movimentando ficava mais latente essa diferença, esses 3 corpos trafegavam na estação mais movimentada da cidade. Estação de baldeação do trem pro metrô, do metrô pro trem. Há nessa história mais um corpo, corpo de homem quando sem roupa, corpo de homem quando vestido, homem que pode ser mau, sem explicar se quiser, porque… tem arma.
Neto: A arma também é um diálogo, porque serve pra entrar em contato com o outro. DI – Á – LO – GO.
Cris: DI-Á-LO-GO, palavra bonita que ele aprendeu na oitava série, no EJA, Ensino de Jovens e Adultos, antes da professora Margarida reprovar um dos meninos do Comando, tratado na ausência como turista mal quisto naquela Escola, pouco antes da professora ser carbonizada no carro em frente a escola, antes ainda das autoridade entenderem e justificarem que ali não havia demanda para se abrir uma escola à noite.
O corpo policial… o corpo do “guarda” que atendia pelo nome de Neto. Neto como Jr, como Filho, pessoa do sexo masculino que recebeu um primeiro nome, que não gosta, do pai ou do pai do pai, alguém com quem provavelmente não mantinha laço afetivo embora tivesse… O sangue… em comum.
Neto muitas vezes andava devidamente paramentado com suas ferramentas de diálogo como vocês podem ver, algema modelo XXX, arma XXX, calibre XXX, sempre carregada, e cassetete tipo XXX. Esse homem… é esse corpo de homem que coreografa a manada de corpos que andam pelo amontoado de lojas no caminho entre metrô-trem, trem-metrô. Neto se orgulha de ver o fluxo de gente trafegar sem a interrupção dos…
Neto: Cambada de vagabundo que insiste em atrapalhar a harmonia do meu cenário, ambulantes com suas lonas azuis, com todo tipo de porcaria sem procedência, no chão atrapalhando o trânsito. Se eu tivesse um trator, um tanque, um rolo compressor limpava tudo assim ó!
Cris: Todos os corpos que vemos aqui tem nomes – alguns tem vários – mas vamos seguir com estes 4, só esses 4 nomes curtos importam aqui. Neto, o “segurança”, Minalba, a atendente do churrasco grego Beijo Sabor Cerejeira, ponto que fica na divisa entre a área do metrô e a parte trem da estação, e por fim Cris e Val que são vendedores marreteiros, figuras ambulantes que vendem nos trens e metrôs.
Minalba não suporta o cheiro da carne, mas ama seu público fortemente carnívoro, tanto que retira meticulosamente, na pinça, devidamente esterilizada, todas as moscas que morrem assadas na carne assada do rolo quente que gira e pinga gordura que ela junta em garrafas pets com as quais faz sabão e vende pra complementar a renda.
Durante a descrição acima vemos Minalba matando as moscas com o mata-moscas contra o rolo de carne , depois, mesmo com clientes na frente da banca ela sinaliza irritadamente que a banca está fechada e se põe a ler sem dar bola aos protestos.
No Beijo Sabor Cerejeira, ela gosta do que faz, serve bem para poder servir sempre, recheia de forma generosa o pão, comprado em grande quantidade, do qual retira cuidadosamente a parte verde a mando de Donagê, sua patroa, todas as quintas quando tem de entrar uma hora mais cedo.
Minalba agora tira os nacos mofados do pão, sem paciência, com a mão mesmo e sem nenhum tipo de zelo, e os joga na bancada.
MI-NAL-BA que tanto AMA seus clientes e faz questão de demonstrar isso! Ela sempre dá um terceiro suco extra:
Minalba: Não é natural, mas é como se fosse, tem 10% de polpa de fruta… É bom né? Docinho… Ajuda a descer. (visivelmente irritada ela serve o suco revirando os olhos)
Cris: Neto e Minalba começaram a namorar um ano depois dela ser contratada por Donagê, o corpo de Donagê transita aqui só duas vezes por semana, nas folgas de seus funcionários. Neto sempre passava na primeira hora de funcionamento do dia, a loja a esta hora da madrugada sempre estava às moscas, então Neto nunca soube a verdade sobre o terceiro suco extra. Que não era exclusividade por afeto de Minalba para com ele. Minalba não tinha nenhum interesse em homens de farda, tinha algum medo e muita raiva, principalmente quando esses homens batiam nos cachorros e meninos que tentavam dormir ou simplesmente atravessar cortando caminho pela estação.
Neto (atravessa a narrativa para se defender): Jamais judiei de um cachorro ou gato na vida, inclusive eu sou pai de Pet!
Cris: Minalba é uma voraz leitora, e sempre escreve enquanto lê, prefere literatura brasileira e histórias de realismo fantástico, só aceitou o convite de Neto pra ver filme policial no cinema… e depois de algum tempo outros convites mais íntimos… porque o corpo de Neto prostrado em frente à loja afastava dali outros homens aparentemente mais nojentos ainda, que queriam o seu corpo.
Minalba (entediada): Limão com cravos, você espeta assim e é tiro e queda, espanta todo tipo de mosquito. Melhor do que bala de prata no combate a lobisomem.
Cris (rindo pra si): Ela jamais diria isso. É um começo tão fraco… mas é um começo…
CENA 05 – O CRAVO BRIGOU COM A ROSA
4h30 da madrugada, dia seguinte na estação.
Cris (bate no balcão enquanto Minalba de costas está organizando as coisas da loja): Que bagunça é essa?
Minalba (muito exaltada): O que você tem na sua cabeça?
Cris: Parece que o jogo virou, não é mesmo! Dei o troco.
Minalba: É diferente. É muito diferente!
Cris: É a mesma coisa, trocando os papéis.
Minalba: Não! Não é… E esse seu argumento é uma falsa simetria… (ainda nervosa) Você é muito sem noção, sem graça. A última vez que um homem conseguiu entrar aqui sem eu ver, terminei no chão, com o babaca estranho em cima de mim, depois de receber tapa na cara, com uma série de hematomas, perdi meu celular e o caixa foi todo revirado… Você ser parado num trem lotado, por um suposto guarda é uma coisa, eu ser acuada numa banca num horário de menos movimento com facas e todo esse maquinário quente em cima de mim é outra bem diferente. Percebeu agora?
Cris: Entendi Minalba, não tinha pensado nisso e eu realmente não pretendia te assustar… tanto. É que fico sem jeito contigo… daí no improviso… eu tomei intimidade. (ela não deixa ele terminar)
Minalba: Uma intimidade bem da errada.
Cris: Eu sinto muito. Eu posso me desculpar de alguma forma, te ajudando a ajeitar a loja por exemplo, a pôr as coisas no lugar?
Minalba (ainda um pouco relutante ela reconsidera): Tá, aceito! Assim resolvo mais rápido essa zona, Tudo ficou desse jeito depois do cara fazer o conserto, tirou tudo do lugar pra resolver um negócio que eu acho que faria melhor sozinha… e deixou ainda mais serviço pra mim… Bom, me passa esses quadros e essas outras coisas de pendurar… Isso. Vai me dando.
Cris: Pronto, aqui, pega, cuidado com esse que tá pesado… (se esforça pra ler antes de entregar um quadro engordurado e cheio de pó que “decora” o interior da minúscula loja) “Rainha do samba-rock de 75”… Quem é essa, Minalba?
Minalba: Ah é a Donagê, parece que antes de migrar pro ramo alimentício ela fazia sucesso nos bailes. Sempre que está aqui, ainda passam uns coroas com chapéu de malandro que mexem com ela. Ela fica com um sorriso de orelha a orelha, nessas horas parece que vai pra outro tempo, só dela.
Cris: Ela canta?
Minalba: Ela nunca fala sobre, na verdade acho que eu que nunca perguntei. Quando ela faz meu horário, tudo que eu não quero é passar pela estação, e quando ela precisa me render, eu geralmente tô atrasada e saio queimando o chão… Mas acho que ela cantava, dançava… Não sei ao certo.
Cris: Você diz que todo mundo esconde um talento… Da próxima vez eu vou perguntar, qual é o dela… E pro seu governo, eu sei muito bem o que é “falsa simetria”, viu, ô “professorinha”.
Minalba: Hum… além de “íntimo” e sem-noção você tá irônico hoje né? Pois fique você sabendo que eu sou professora mesmo. Tá, meu bem?
Cris: Você ensina o que? Como são preparadas as camadas do churrasco grego? Sua história e seus Ingredientes?… Sua introdução aqui no Brasil… Técnicas de venda?
Silêncio.
Minalba: Tá muito cedo ou já posso lhe mandar tomar no cu? Vai pra casa vai, engraçadinho!
Cris: Desculpa, tá? De novo! Você dava aula do quê?
Minalba: Eu sou professora de Língua Portuguesa.
Cris: Língua Portuguesa… E por que você vive aqui nesse quentume disfarçada de atendente de churrasco, então?
Minalba: Bom, é uma longa e entediante história.
Cris: Pode cortar a introdução, e eu tô sem compromisso mesmo.
Minalba: Já que quer muito ouvir eu posso tentar resumir em um tweet.
Cris:Ok. Sou todo seu. Vai que eu sigo o fio!
Minalba: Bom vamos lá… (pausa silenciosa pra reencontrar o fio de uma meada)
Cris: Tô te ouvindo… Só respiração por enquanto…
Minalba: Eu dava aula, manhã e tarde na rede estadual, fiz isso durante uns 10 anos. Depois comecei a estudar russo também.
Cris: Russo? Achava que nem os russos falavam mais russo?
Minalba: Falam sim, e eu sonhava em ir pra Rússia, queria ler Tchékhov no original.
Cris: Humm, Tchékhov, sei!
Minalba: Você gosta também?
Cris: Eee… eu nunca ouvi falar!
Minalba: Tá, esquece vai!
Cris: Mas continua, por favor.
Minalba: …Então eu estava fazendo mestrado, russo, e dava aula, ao mesmo tempo. Meu tema de mestrado: Hábitos de leitura das pessoas que utilizam a mais movimentada estação de baldeação da cidade. Esta!… Entrevistei aqui cerca de 400 pessoas em 6 meses, mas minha bolsa foi cortada, eu tava num relacionamento ruim, que foi ficando beeem ruim, sofri um aborto, ele foi embora, não sem antes me roubar o pouco que tinha juntado de dinheiro, entrei em estafa dando aula, e basicamente cansei de trabalhar pensando. Não queria exatamente morrer, mas queria parar de pensar.
Um dia eu tava tão mal que eu caí na rua e não me levantei, fiquei sentada várias horas, naquele momento parece que entendi um dos motivos de muitas das pessoas que ficam morando ali… Tudo dá tanto trabalho. É tanta exigência! Tanto trabalho pra sustentar uma vida bosta, uma vida mais ou menos… Daí eu pensei… uma última vez… se eu levantasse, como faria pra conseguir pagar o aluguel? Eu descartei a prostituição por falta de talento, na real por medo mesmo, porque as meninas contavam horrores. Bom então eu… me levantei e no caminho pra casa vi a placa – BEIJO SABOR CEREJEIRA – PRECISA-SE, sentia que minha vida inteira tinha sido desmontada, e tinham recolhido as peças sem me avisar. Eu vi a Donagê , que “apareceu” aqui no caminho, do jeito dela, ela meio que me acolheu e eu estacionei aqui… Acho que sem pensar fui ficando… ficando e um belo dia parei pra contar, percebi que já tinha se passado… 37 meses. (Cris fica chocado) É… e sem férias! Preferi vendê-la pra tentar reiniciar meu pé de meia!
O automatismo disso aqui me ajudou a não quebrar a cabeça e também foi um grande incentivo para eu virar a vegetariana que eu sou hoje… Então foi isso!
Cris: Poxa Minalba, eu lamento muito… que coisa terrível. Que porrada!
Minalba (na lembrança ela ri): Lembrei de minha mãe: “Um beijo é melhor do que um tapa, mas um tapa é melhor do que nada!”
Cris: Todo dia no calor dessa carne que você não suporta mais, e namora aquele escroto do Neto. Você ainda tá com tanta raiva de você assim? Estacionada no inferno abraçada com o capeta.
Minalba: Ei não fala assim, ele não é um escroto, viu! Você tá se achando muito! Eu estacionada? Eu não sou uma lata velha não! Calma aí que essa é a minha vida, não é uma bela vida, mas ainda assim é a que eu consegui fazer até aqui. Quem você pensa que é pra me julgar desse jeito? Saber um pouco das minhas mazelas não te autoriza a nada… Sua vida não me parece nenhum centímetro menos miserável que a minha… Me dá licença vai… que eu preciso trabalhar. Você conseguiu me deprimir… Já me lembrei porque preferi trabalhar aqui guardadinha, separada de quem passa, do que se passa aí.
Cris: Minalba… Não foi minha intenção… É que você mesmo… (ela o interrompe)
Minalba: De boa intenção o inferno tá cheio… Eu tô com preguiça de gente, e mais ainda de homem, e não pense que você é diferente, que você é melhor, não! Não é muito não… Eu já vi você e Val conversando, são as mesmas bostas das conversas do Neto e os parça dele, falou?
Cris: Eu não sou igual o Val, ele é meu amigo sim, mas eu não concordo com tudo que ele fala, e mostro isso pra ele sempre que me dou conta… E eu não sou e nem vou ficar igual ao Neto… Nunca!
Minalba: Eu não sei mais de nada!
Cris (ressentido): O que mais você vê quando me olha? Aproveita e me fala agora, vai… Eu tô acostumado… O meu peito? A minha voz? A minha falta de barba… O que eu não tenho!… Essas coisas te incomodam? Diz… O que você gosta? Qual a diferença entre ele e eu que te importa?
Minalba: É essa aqui querido… (acarinha com todo amor a testa de Cris) A parte que mais me importa… E aqui… em mim… tudo é zona erógena… aí também, eu tenho certeza… Isso é o que mais me importa…
Beija-o demoradamente.
CENA 06 – DESENROLA CARRETÉ!
Na entrada da estação Val está impaciente à espera de Cris.
Val: Cris, cadê você parceirinho? Por que tá me deixando na mão?
Cris (parado noutro canto da estação continua escrevendo seu conto): Quem era essa mulher que lia sem parar, sem se importar com o rastro de gordura que deixava nos livros? (Minalba ouve isso indignada e mostra lentamente como limpa as mãos e cuida bem de seus livros quando os lê na loja) Ela não percebia ou não se importava com quem tava do outro lado da via vendo ela se distanciar numa viagem de tempo só dela a prova de som, in-có-lu-me a qualquer presença rara que passasse em sua frente. Ainda que Cristo passasse por ali com os 12 apóstolos ela não olharia, mesmo uma escola de samba, ela viraria a página e atropelaria sem pestanejar. (Minalba revira os olhos de tédio e crítica ao tom piegas empregado em sua descrição)
Cris e Val vendem os mesmos produtos. Geralmente alternando em rodízio quem oferece o que, em que vagão e horários. Val sempre trabalhou com vendas, começou com assinatura de jornal na rua, passou para plano de saúde, ficou anos no Telemarketing, cobrança, Instituição de caridade, no espaço restrito de uma cabine, num salão com muitas cabines, que chamavam de baias.
Atrás dos operadores de Telemarketing, ficava a supervisora aos berros:
Supervisora: Vamos bater a meta, minha gente! Vamos bater! Tem que sensibilizar o cliente, tem que fidelizar! Mês passado a Flavinha ficou na frente. Quem vai ser nesse mês? Quem vai sentar aqui?
Cris: Val se sentia um cavalo de corrida, ele detestava a supervisora, ódio já na primeira semana:
SUPERVISORA – A partir de agora você atende como Fran porque já temos 3 Vals no setor! E use um tom mais “assim”… Convence sempre! E lembre-se, mantenha o sorriso na voz! (Val aborrecido enrola o fio no pescoço da supervisora , ela ainda prossegue em sua fala até o fim e termina agonizando com um fio de voz até morrer por enforcamento) Independente do que te ocorreu lá fora, permaneça atento, deixe os problemas ao passar por aquela porta… MANTENHA SEMPRE O SORRISO NA VOZ! SEMPRE!
Cris: Val sempre foi ótimo em vendas:
Val: Quem sabe vender, vende qualquer coisa. Pra qualquer pessoa… Em qualquer situação!
Cris: A gerência! Val finalmente resolveu cortar esse intermédio inoportuno que ficava com as gordas comissões vindas única e exclusivamente do suor seu e de seus pares. (Val esconde o corpo da supervisora) Val agora é um autônomo, praticamente um micro-empresário! (Val insatisfeito estica sua lona de ambulante e oferece mercadorias a todos, a luz se fecha em seu semblante desesperançoso contrariando o otimismo da fala)
Este é Cris, um cara que já foi de tudo, e ainda está a procura de algo. Mas o que você procura Cris? Já iniciou diversos cursos, nunca terminou nenhum, ele nasceu de fórceps e demorou a desmamar, o pai foi embora quando tinha 7 anos sem se despedir. Cris este mês percebeu um padrão em sua vida, percebeu que tem uma certa dificuldade de passar de fase. De pôr um ponto final nas coisas:
Às vezes a gente se sente um pouco deslocado, às vezes é preciso voltar 5 casas e avançar só uma, desta vez na direção que você tem certeza…
Val é a pessoa mais desbocada que Cris conhece, gosta do poder de síntese que só um bom palavrão tem. Já Cris, prefere a poesia, as rimas, o ritmo. Entre uma entrada e outra gosta de ir rabiscando no automático todo jornal do metrô pra ver se sobrevive alguma poesia (rabiscando o jornal mostra o resultado à plateia):
Problema nos trilhos
Um trem bate
Acidente!
tarde segue
pontual no trabalho
Enterros do dia seguinte.
Cris também coleciona fotos, imagens que rouba dos passageiros quando está demonstrando:
“Este maravilhoso tripé portátil e ultra-flexível, o mais novo lançamento do seu ShopTrem…”
Cris imprime suas fotos. E cuida muitíssimo bem de sua coleção de anônimos que divide na sua pasta em três categorias: Homens que dormem e babam. As crianças que lambem a paisagem e as mulheres que se maquiam em todo tipo de transporte público e em qualquer velocidade. Ele também coleciona histórias dos passageiros e por causa delas muda até o momento do seu desembarque!
Cris está sempre em movimento. Síndrome das pernas inquietas. Foi o que ouviu uma vez sobre seu jeito.
Esta semana Cris trabalhou pela primeira vez num ponto fixo dessa estação, no Beijo Sabor Cerejeira, a banca de churrasco grego de Donagê, no lugar do jovem Oswaldo, colega que rende Minalba e que não pode vir ao trabalho, Oswaldo alegou por mensagem que estava de cama. Na véspera, aparentemente saudável, foi visto entrando no hotel Primícias, acompanhado de outros 7 meninos, jovens soldados que servem no quartel aqui do lado.
Foi só uma experiência legal, tapa-buraco de emergência… Minalba precisava sair, eu já conhecia o serviço, e não tava querendo entrar naquele que seria o 39° trem do dia… ficar parado, encerrado num quase quadrado. Pensava: Vida de condenado! Uma solitária mesmo! Mas no retângulo tão curto de 1 metro por 1 e 80, nesse espacinho tão limitado, alguma coisa parece que cresceu, sentindo o cheiro insistente da carne, mas sem precisar convencer ninguém. Algo mudou aqui dentro, sabe?
A concorrência, dos lados e na frente leva vantagem no preço, então tenho tempo de sobra pra ficar aqui de boa só vendo, lendo… (enquanto fala com livro na mão, observa atentamente Minalba que iluminada vai tirando o uniforme, ficando com a roupa do dia-a-dia, soltando os cabelos pra largar o expediente) Acho que é isso que eu quero (se recompondo rapidamente)… SOSSEGO!.. Mesmo aqui na estação, nesse ponto aqui tem “um sossego”, entende?(sua fala/sonho é interrompida bruscamente por Val).
Val: Entendo que você enlouqueceu. Entendo que eu já tô escutando a mesma ladainha sua há 5 horas. E não vou falar mais nada. Já fez as contas de quanto perdeu por não vir pro fluxo? Hein? Hein? Você tá igual crente em semana de conversão. Viu Jesus e nada mais “do mundo” faz sentido… então foda-se!
Barulhos da estação atravessam a narrativa indicando a passagem do tempo.
CENA 07 – PARA DE CHORAR À TOA
A cena que se segue deve ser construída com constante tensão sexual, que oscila mas não desaparece até o fim.
Val (contando dinheiro na entrada da estação): Cris, cadê você, vacilão? Vai me deixar na mão de novo? (Neto se aproxima sem que ele o veja)
Neto: Bom dia, Val! Perdido? Cadê o ligeirinho?
Val: Que susto, cara, você parece que brotou do chão.
Neto: Calma Valzinho, quem não deve não teme.
Val: Magine cara, eu não temo nada não. Sei que você é gente boa, só assustei. Você tava meio pilhado da última vez, tá melhor agora? Quando é que a gente vai tomar aquele chope?
Neto: Eu ainda não tô muito bem. Entre outras coisas porque o Cris me engrupiu, cê tá sabendo?
Val: Putz, cara eu não tava sabendo dessa história não!
Neto: Sei… Não tava né! E o que você tá fazendo?
Val: Esperando…
Neto: Isso eu já percebi. Quem você tá esperando? (Val fica em silêncio) Nem precisa falar. Aposto que é a figurinha premiada que eu tô esperando vir também.
Val: …Neto, eu já paguei o que você queria, mesmo não concordando. Agora com todo respeito, cara, eu não preciso ficar te dando satisfação de tudo que eu faço. Você nem me dá essa confiança porque acha que eu vou me abrir todo?
Neto: Porque sim! Cada um no seu papel, pensa comigo, eu sou o responsável pelo bom funcionamento de tudo isso, de forma que você é indiretamente meu funcionário, embora na real eu jamais contratasse alguém… “assim” como você, pra ser sincero, mas então já imaginou se de repente alguém acusa um ambulante que trabalha aqui, se some uma bolsa. Se alguém é empurrado nos trilhos. Gente como você e seu amiguinho são os primeiros suspeitos… É gente que a gente amplia a imagem lá em cima, pra ficar de olho, porque quando a gente menos espera vocês dão problema…
Val: Papo doido, cara… Cê tá muito estranho. Não viaja, Neto… Mas só pra você não botar caraminhola eu te informo: Sim eu tô esperando o Cris. Satisfeito?
Neto: Sabia… Tá tudo ótimo agora! (Neto fica de plantão ao lado de Val que depois de segundos demonstra desconforto)
Val: Neto, você virou minha sombra agora é? Tá na minha cola por quê? Por que você precisa ficar assim tão perto?
Neto: Como já disse, eu também preciso falar com ele, sabia que ele não me pagou esta semana ainda?
Val: Eu não respondo por ele.
Neto: Presta atenção cara. Aquela coisinha, sua amiga, não me pagou e ainda tá se fazendo de coleguinha da minha namorada. Não sai do Beijo… Já me passaram toda a fita. como é que você acha que eu fico com essa história? Se eu não souber das coisas tudo descarrila, se ele vai mudar de setor isso influencia diretamente nos meus negócios, não dei meu aval pra mudança nenhuma aqui dentro, nem fui consultado sobre essa possibilidade.
Val: Neto, a gente já falou sobre isso, aqui não tem xerife até onde eu sei, você não é prefeito da estação… A gente te paga num acordo informal, e só… Meu, a gente não quer nada de ninguém, só quer poder trabalhar em paz.
Neto: Pois é Val, mas nesse mundo cão, tudo tem um preço e a paz é coisa cara. É instável. Sujeita à inflação. Cada dia cobra um pouco mais!
Val: Cara se é ele que você quer, vai falar com ele então… O que eu tenho a ver com isso?
Neto: Quem anda com porcos come farelo!
Val: Eu já entendi, já passou sua mensagem, eu estou indo embora tá… Preciso comprar mais mercadoria, se não eu não tenho com o que trabalhar, e isso influencia diretamente nos “seus negócios” como você gosta de dizer.
Neto: Paga o dele!
Val: Mano, para! Me solta, se não eu vou ter que gritar.
Neto: Você que sabe. Se gritar, vai ser seu último grito. Vai ser a minha palavra contra a sua, preciso te adiantar como isso vai terminar?
Val: Toma a parte dele então, aproveita e enfia no teu cu! (Neto apanha todo o dinheiro além do que Val separou) Cara, seja minimamente justo, me devolve o que é meu. Tô pedindo na moral.
Neto: Senão o quê? Hein? O que você vai fazer? Mantendo vocês na linha eu tô sendo justo. Mal te vi trabalhar esse mês. Logo, isso aqui, é uma interceptação de dinheiro sem fonte declarada.
Val: Dá isso aqui, eu ganhei com meu trabalho, seu demônio. (Neto lhe dá um tapa na cara)
Neto: Nome feio… Deus tá vendo.
Val: Você não precisa disso, é pra minhas mercadorias. Pra que essa gorilagem comigo? Eu achei que a gente era amigo.
Neto: Quem tem amigo é puta.
Val: Tá certo, então agora tô entendo qual é a sua… Eu sempre te respeitei e você me bateu na cara! A troco de quê?
Neto: Para de chorar e vai trabalhar vagabundo eu tenho mais o que fazer… (Neto vai embora)
Val: Você vai me pagar por isso. E não vai ser barato… Você não perde por esperar…
CENA 08 – AS CARTAS TÃO EMBARALHADAS
Cris (termina de escrever e declama quase como rap direto do seu caderno):
Jeito de mau
cara de pau
boneco de madeira
A fada azul do alto banco
desce-lhe a lua
ilumina a ladeira
Nunca mais mal,
se sente o tal
O menino de verdade
dança sua dança dança,dança,
dança…
Val: Nossa! Uau! (Cris se orgulha) Que bosta é essa hein? É esse desperdício de palavra que você anda colocando no seu caderninho?
Cris: Isso é inveja hein! Mas bem humorado que tô, ignoro teu recalque…
Val: Mano, na boa, olha na minha cara, tô me fudendo pro seu bom humor.
Cris: Eita que houve, andou beijando a lona?
Val: O corno, baitola do namorado da Minalba me carimbou… Tô com sangue no olho pra devolver esse carinho que ele me fez. Ele descontou a cisma que tá de você… em cima de mim. Cê não pagou o arrego desse otário, né?
Cris: Porra mano, que merda! Deixa eu ver, vai… (tenta examinar o rosto do amigo) Ah… A gente já devia ter denunciado esse filhodapeste há muito tempo. O nosso trampo é informal, mas o desse milícia é muito mais pesado…
Val: Denunciar pra policia? Pra direção da estação? Larga de ser inocente, Cris, denunciar como? Quando ele não tá a paisana extorquindo a gente ele tá jogando pebolim lá na corporação!
Cris: Eu sei disso, meu amigo, mas deve haver solução…
Val: Solução é ir embora, minha solução é o mar cara, disso eu sei bem… Só aguentar mais uns meses e eu consigo o suficiente pra arrancar com o meu empreendimento na P.G… E… Caraio. Porque você não pagou ele?
Cris: Puta, cara, não paguei mesmo… mas foi consciente, eu vou aguentar o tranco, se ele vier pra cima eu não vou arredar não. A gente tem que parar essa exploração. E isso só para com enfrentamento. Mano esse cara é desonesto até dentro da desonestidade, se a dívida dele é comigo pra que te cobrar, não tenho pai aqui não…
Val: Falou… Corajoso… Mas você tá certo mesmo…
Cris: Você, Val, me dando razão… Essa eu ainda tava pra ver.
Val: Não abusa que eu hoje eu não tô bom.
Cris: Já eu, tô ótimo! (dá um beijo na boca de Val)
Val (se livra de Cris lhe dando uma porrada violenta. Cris se esquiva por pouco): Que porra é essa, meu? Tá me estranhando. Cê tá cortejando a Minalba só de onda porque você é viado. É isso? Me fala que a gente encerra essa parceria agora mesmo. Eu não gosto desse tipo de liberdade não viu!
Cris (tenta acalmá-lo ainda chocado pela reação explosiva): Calma Val, nunca te vi assim. Eu sei que você não é de violência. Desculpa, era beijo de amigo, Val, de amigo…
Val: Você não sabe de nada seu moleque, me deixou esperando mais de uma vez, me fodi por sua causa e você vem com saliência!
Cris: Calma Val eu sou teu amigo, eu não tava te zoando, era de carinho só. Porque você ficou tão alterado assim?
Val: Cara eu já te falei que hoje não foi um bom dia!
Cris: Calma meu amigo a gente vai escrever um dia melhor.
Val: Vamos mudar de assunto, bola pra frente. (pausa, ambos se recuperam cada qual do seu jeito) Vamos comprar toda a mercadoria hoje com o teu dinheiro. Prepara teu bolso que você vai bancar tudo!
Cris: Tudo bem, é justo… Depois do perrengue que passou… Vamos, a gente para um pouco pra respirar lá fora, eu te pago um sorvete!
Val: Pode ser. Respirar é bom de vez em quando!
Cris: Bom, como você já tá nervoso vou te falar outra de cara.
Val: Porra meu, mais uma. O que você aprontou agora?
Cris: Aprontei nada. Mas eu preciso te dizer… Tô migrando pra outra provavelmente.
Val: Hum… Vai trabalhar no Beijo!
Cris: Acertou! Essa semana quero conversar com a Donagê, o Oswaldo andou pisando na bola, vou fazer uma proposta pra ela. Eu não te acompanho na próxima investida nos trens… Mas a gente ainda vai fazer muita viagem junto, Cê vai ver…
Val: Ahã… Sei… Eu sabia… E provavelmente essa mudança não é pelo salário.
Cris: Não é mesmo! É que lá é mais sossegado, dá pra ficar de boa, até lendo, não tem que ficar correndo e se escondendo todo dia, agüentando desaforo, sendo denunciado, xingado… Essas coisas…
Val: …E tem a Minalba…
Cris: É, e tem a Minalba!
Val: Você sabe o que eu penso, você tá caçando confusão, o Neto tá na sua cola, fica esperto que ele tá contando suas falta e vai te pegar no veneno, sem ninguém pra te cobrir. Hoje eu levei pescotapa no teu lugar, mas e na próxima?
Cris: Desculpa irmãozinho. Mas pode ficar frio que não tem próxima não. E ainda quebro esse otário pra te vingar.
Val: Deixa de onda, vai dar uma narigada na mão dele, palhaço? Ele tá ligado que você mudou de turno e tá marcando pesado aquela doida. Pro teu bem é melhor você abrir o olho no 360 e não colar mais no Beijo não.
Cris: Eu sei. Tô ligado mano! E porque você não se picou desse purgatório ainda? Cê desce tanto pra baixada que já dava pra ter erguido a ponte Santos-Guarujá sozinho!
Val: Eu tô acelerado nos plano, fazendo contatos de ponta a ponta, eu vou sim, é que dessa vez eu quero dar um passo sem erro. Pega essa visão mas guarda pra você porque só tem olho gordo nessa merda!
Cris: Mano, cada vez tu arranja uma desculpa diferente, e tá só dando renda pra maluco folgado..
Val: Ó quem fala, você vai ficar no churrasco mais da metade do dia pra ganhar uma merreca, só atrás da periguete.
Cris: Val, cê me respeita e respeita a Miná!
Val: Vai lá panguão, vai voltar a ter patrão no cangote, ganhar contado, ficar num quadradinho, na solitária, vigiado…
Cris: Mano tu tá cantando de galo, mas essa é quase a descrição do nosso trampo aqui. O Neto é o que seu? Nosso? Pa-trão! Dos mais escrotos. Te explora mais que a filhadaputa daquela supervisora maldita. Só falta te botar uns arreio.
Val: Nem me fala dessa sanguessuga. Mas não tem nada a ver, eu não trabalho pro Neto. A situação é bem diferente.
Cris: Então ele que tá trabalhando pra você? Porque a gente dá dinheiro pra ele! Mensalidade altíssima e zero benefício!
Val: Vai vendo! Donagê com aquela fala mansa dela vai te pôr na linha dura, daqui a pouco Minalba e ela tão abrindo filial na suas costas. Vamos ver quem vai terminar com cabresto.
Cris: Seu besta cê tá por fora!
Val: Tá bom. Vai lá… Vai ser feliz. Que eu te apoio nas burrice, não vai ser a primeira mesmo.
Cris: Vou sim. Agradeço o apoio. Meu nome não é dinheiro!
Val: Seu nome não é dinheiro… Ok! O meu nome é MAR. Quando você descobrir o seu, cê me avisa… Que a gente retifica junto…
Cris: Na mesma hora parceiro!
CENA 09 – O NAMORADO DA VIÚVA
Neto e Minalba estão voltando do Cinema, no carro sem conversar, ambos aborrecidos, ele dirige enquanto ela lê, mudos durante muito tempo.. até que ele quebra o silêncio.
Neto: Miná como eu ia saber que você não gosta desse tipo de filme? Olha pra cá vai, fala comigo, eu te peguei, e vou te levar de volta né.
Minalba: Tudo bem. Você insistiu tanto. Já estamos voltando juntos.
Neto: Mas tá me ignorando enfurnada nessa bosta.
Minalba: Veja lá como fala comigo. Eu não sou seus colegas!
Neto: Desculpa vai!
Minalba: Eu não mato a mosca que pousa no churrasco. Eu nunca pedi pra ver sua arma, eu troco de canal quando você põe em programa de crime, eu nem leio notícia policial, eu não te deixo contar os casos desse seu tipo de trabalho. Ainda assim você me leva pra esse tipo de programa?
Neto: Ué é cultura também, não? E é a realidade da vida! Já te falei que é importante você se ligar nessas coisas, essa cidade não é fácil. Você mesmo devia ter uma arma na loja.
Sem levá-lo a sério ela responde debochada provocando-o a partir desse momento, ele segue defendendo o que realmente acredita.
Minalba: Já tem você que espanta toda a freguesia, não preciso de mais essa… 45 pessoas! Nos 15 minutos iniciais o cara musculoso, sempre com raiva no olhar matou sozinho 45 pessoas e veja bem, não foi pra salvar outras pessoas, o que ainda assim não o faria levar a medalha de humanista do ano, mas não, nem isso, ele matou 45 pessoas pra pegar uma mala, que tem “um dispositivo” dentro. Um dispositivo… Francamente Neto! Isso é ridículo!
Neto: Mas cê nem viu o resto do filme pra opinar tanto assim, isso é preconceito.
Minalba: Não, querido, isso é conceito mesmo! Mudou alguma coisa naquela porcaria até o final? Vai me dizer que ele ressuscita as 45 pessoas depois uma a uma, e pede perdão pelo excesso de violência na abordagem?
Neto: Ele é promovido, Minalba! Um gesto de reconhecimento por defender uma causa nobre. Esse filme é uma bandeira anti-terrorismo.
Minalba: O cara nem luta, nem entra num enfrentamento minimamente justo com os que ele encontra, você já pensou que cada uma das 45 vítimas desse franco-atirador tinha um punhado de história que virou fumaça. Cada um ali tinha uma família, era o filho de alguém, o irmão, o amigo de infância, era alguém que cantava nos fins de semana, ou que doava sangue, que pintava ou mesmo que só visse tv e ouvisse rádio, ou jogasse dama na praça com os velhinhos… Enfim, cada pessoa ali tinha outras várias faces, papéis na vida, e o teu herói, que atira em vez de perguntar ou mesmo ameaçar, não pensa nisso, ele simplesmente apagou tudo, uma parte da história de um monte de gente. Apagou tudo! Apertando um botão! Os adolescentes do nosso lado estavam rindo enquanto isso acontecia.
Neto: Isso não foi por muito tempo Miná. Dei uma enquadrada neles, que eles ficaram pianinho até o fim.
Minalba: Não é esse o ponto Neto, o que me emputece é que aqueles meninos acham que no mundo real aquilo é possível e justo.
Neto: Meu, cê tá forçando a barra, Não viaja. Isso é só um filme, porra!
Minalba: É que hoje eu queria ter conversado com você… Eu precisava muito mesmo… Mas agora acabou, minha paciência evaporou junto com a minha vontade. Meu tempo livre é tão raro, e você ainda me diz que escolheu o nosso programa pensando em mim. Ah pra mim chega, e pode me deixar aqui mesmo!
Neto: Ah Miná cê tá foda hoje! Eu queria te agradar e fiz o possível.
Minalba: Você já me olhou com atenção? O que me encanta? O que eu já te disse que gosto? Você nunca nem perguntou o que eu tô lendo, o que eu escrevo, porque que eu choro? O que me faz rir?… Ou seja, você só tem olhos pra você mesmo!
Neto: Lá vem você falar um monte de bosta… Sua louca. Cala a boca que vai ser melhor pra você!
Minalba: Como é que é? Eu vou embora sozinha…
Neto: Você fica!
Minalba: Porque eu ficaria?
Neto: Porque… (procurando argumento,“a resposta certa”) porque… eu… te amo?
Minalba: Você não sabe o que é o amor… Você não sabe o que é o amor!
Neto: Fica quieta um pouco, porra! Mina chata do caralho!
Minalba: Me esquece e não fala mais comigo por favor. Não me liga, não vá mais no Beijo e não me segue mais, deu certo uma vez… Duas, três, mas agora você já gastou todas as chances! (Minalba desce, bate a porta do carro e se afasta correndo)
Neto: Amor pérae… Desculpa eu não quis dizer aquilo… Eu fiquei nervoso. Volta aqui Miná. – MINALBAAAAAA! Volta aqui Minalba, Não me deixa! Não me deixa falando sozinho não!
(Aos gritos, acelerando e buzinando enfurecidamente) Sua desgraçada, arrombada. Vagabunda metida a besta. Filha d’uma puta… Isso não vai ficar de graça.
Puta,Puta,Puta fedida, esquerdista de merda, nordestina maldita do caralho.
CENA 10 – DESGRUDA DA CINTURA DELA
É madrugada, Minalba está andando apressada a poucas quadras de sua casa. Ela percebe atrás de si a sombra de um homem, que parece segui-la e quando confirma sua impressão, ela o derruba no chão com um golpe. Na penumbra e cega de raiva ela apanha uma barra de ferro e o acerta até que o homem grita, percebendo de quem se trata, finalmente ela para.
Minalba: Seu desgraçado… Vou quebrar suas pernas pra você aprender a não mexer com quem tá quieto!
Cris: Nãoooo… Para! Minalba… sou eu… o Cris… Sou eu… Sou eu… Eu não queria te assustar… Não era minha intenção, eu sinto muito. Eu sinto muito.
Ambos se abraçam.
Minalba: O que você tá fazendo atrás de mim uma hora dessa? Você é louco? Só dá mancada, cara… Eu podia ter te matado.
Cris: Eu sei que você só tava se defendendo. Achei que fosse perceber que era eu.
Minalba: Eu realmente ia te matar, e só ia perceber depois (ela o ajuda a se levantar)
Cris: Você não ia ser capaz.
Minalba: Você realmente não me conhece e me subestima. Impressionante! Mais um! Eu mereço isso?… Pensando bem, você precisa de umas paulada mesmo.
Cris: A gente só aprende pela dor, né? (ri)
Minalba: Negativo! Isso é ridículo inclusive, maior crueldade que alguém já disse. Isso é invenção pra te manter ocupado e culpado. A gente aprende apesar da dor!
Cris: Vou lembrar disso.
Minalba: Vamos!
Cris: Eu fiquei martelando nossa conversa e não consegui dormir… Fiquei pensando em você, misto de saudade e mau pressentimento.
Minalba: Eu terminei com Neto. Acho que preciso ficar só… Mas não acho isso ruim não! Calibre os seus pressentimentos aí porque nada de mau aconteceu!
Cris: Foi alarme falso então, mas me acordou. E o que te fez terminar?
Minalba: Muita coisa, mas hoje cheguei no limite por causa desse papo besta de tiro, bala, arma e porrada e essa necessidade estúpida de auto-afirmação o tempo todo que me faz questionar a necessidade de termos homens no mundo ainda hoje. (Cris fica atônito) Mas existem as exceções…
Parece que foi encontrado um homem muito bacana, seguro de si, amoroso, gentil, inteligente e bonito (Cris se envaidece)… na Antártida!
Cris (frustrado): Já entendi! Mas me conta, Neto saiu com você armado?
Minalba: Geralmente sai, ele adora deixar à mostra, hoje eu não vi. Mas não lembro dele desarmado nem em sonho… Eu sempre acho que vai disparar, mas mesmo sem, ele ainda é um homem-bomba… Eu acho… Uma vez vendo na TV a matéria de um homem que mandou um presente-bomba pra namorada… ele disse que achou engenhoso, acredita? Você já teve do lado de um cara e ficou pensando: “É esse cara que vai me matar?”
E se não for ele, pode ser alguém que não gosta dele, ele tem muito puxa-saco, uma verdadeira legião… Não fornece provas contra si mesmo, mas algo me diz que ele já fez mal pra muita gente…
Cris: É. Essa coisa de ficar cobrando pedágio pra gente poder trabalhar nos vagão é foda!
Minalba: Como?
Cris: Eu acho que você sabe do que eu tô falando, não disfarça!
Minalba: Juro que não sei do que você está falando. E é uma acusação bem pesada! Se a chefia da segurança souber, ele roda fácil. Pra mim o esquema dele era parceria nas mercadoria do Val, o que já seria bem errado. Mas por que ele cobra isso de vocês?
Cris: Por que ele cobra de todo mundo pra fazer vista grossa, pra garantir o vagão pra quem vende. É isso!
Minalba: Cris, todo os marreta comem no Beijo e te garanto que ninguém paga esse por fora não. Vocês tavam pagando um dobrado mesmo. De propina e de trouxa, ao mesmo tempo!
Cris: Eu e o Val! Por que ele achava justo achacar a gente assim? E cobrava sempre? Desgraçado!
Minalba: Se vocês falassem disso pra mim ou pra qualquer um, ele já tinha se emendado bonito!
Cris: É que ele botava pilha na gente, que os caras eram o perigo… E o perigo era ele. Ficava pilhando sempre, conservou a gente no medo. Mais essa agora! Putaqueopariu só me fodo seguindo o Val!
Minalba: Relaxa, agora você já sabe, não dá pra saber do que ele é capaz mesmo, ele tem uma história complicada também, tem as paranoias dele, teve um passado fudido de droga, “encontrou Jesus”, se redimiu, dizia que tinha parado com tudo. Era quase um pastor quando eu conheci, camisa fechada até aqui ó, e nem falava palavrão.
Cris: Não consigo imaginar ele assim não.
Minalba: É, mas daí ele me conheceu… (seduzindo-o) e acho que ajudei a desencaminhá-lo porque ele se apaixonou pelas coisas mundanas (gargalha efusivamente).
Cris: Tá bom, agora eu fiquei com medo… dele! Tretei com um sujeito armado. Sou jovem ainda.Somos! Não quero sumir não. Vamos se proteger né!
Minalba: Sim, vamos. E a Glorinha que até hoje não voltou, o ponto tá lá fechadinho… Ninguém teve noticias e a policia não tá nem aí… Não vamos sumir assim não. Pra desaparecido pobre não existe tempo e nem verba pra busca.
Cris: Credo, nem fala. Prefiro a teoria do Val, ele acha que ela ficou milionária e foi embora…
Minalba: Certo! Vou me apegar a essa ideia também, prefiro pensar nela assim, rica num paraíso tropical, não exatamente no Brasil, mas sim numa ilha caribenha… Era mais a cara dela…
Cris: É sim… Mas que bom que você deixou o Neto, vou ficar mais tranquilo agora… A gente corre tanto risco. Pode acontecer algo, também pode não acontecer nada… Agora andar do lado de uma bomba era meio kamikaze mesmo.
Minalba: Acho que sim, poetinha dos trens… (boceja) Bom, hoje quem cuida do Beijo é a Donagê e o Oswaldo… e o Neto pelo que eu me lembro, disse que ia resolver uns assuntos dele.
Cris: Que bom, outra coisa que eu tinha pra te falar, era sobre o Beijo, que acha da gente propor ficar com a banca? A gente pode transformar no que você quiser… Eu tô cheio de ideia… Como eu não gasto em muita coisa… Deu pra juntar um dinheirinho… Também posso pagar com trabalho dobrado… Não sei quanto é um negócio assim, mas vai que dá… Não quero ficar esperando mais nada acontecer não. Quero fazer algo acontecer. Conversei com o Val, sobre esse lance de planejar e não fazer e fiquei matutando de ir pras cabeça mesmo. Que me diz?
Minalba: Que eu tô com sono!… Hoje é só isso que eu te digo… E é aqui que eu moro. Boa noite. Tchau! (ela o beija e sai, ele fica estático)
Cris: Ô Minalba!
Minalba: O que foi agora?
Cris: É que eu vim até aqui te acompanhando, pô eu fiquei longe pra caramba da pensão, tá uma madrugada tão fria. Eu gripei semana passada, sabe!
Minalba: Ah tava demorando. Lá vem o golpe!
Cris: Poxa que consideração… É que eu achei que a gente… que você… er… deixa pra lá vai! Tchau!
Minalba: Tá bom! Você quer subir Cris?
Cris: É o que eu mais quero na vida! Prefiro conhecer seu quarto do que o Coliseu!
Minalba: Então você veio no lugar certo, por que eu A-DO-RO um cristão!
CENA 11 – EU SOU A NUVEM NEGRA QUE ESCONDE O AVIÃO
Val está no início do seu expediente com a mochila cheia aguardando o trem, quando percebe Neto visivelmente alterado vindo em sua direção, Val corre pela multidão e só para quando chega a um lugar afastado do movimento, julga-se a salvo até que Neto o surpreende por trás empunhando uma arma contra suas costas.
Val: De novo!
Neto: Val, Val… Que saudade… Sabia que eu conheço cada pedaço desse lugar? Cada azulejinho, como ninguém!
Val: Pra onde cê tá me levando Neto? Vamo parar com essa brincadeira… As câmeras tão vendo ó! (Val tenta sinalizar pras câmeras) Oi seu Valdemar… Olha o gambé tá me levando pra passear contra a vontade. Ele tá armado tá vendo?
Neto: Pode gritar a vontade, pode virar estrela se quiser que aqui NINGUÉM vai ver teu show.
Val: Pra onde você tá me levando? É sério, Neto! Isso não vai ficar barato, daqui a pouco os outros seguranças vão chegar e você vai se fuder… O Cris e a Minalba também sabem que você tá na minha cola faz tempo…
Neto: A gente tá no lado escuro da lua. Tudo que tá ali no teto é enfeite, ninguém toma conta daqui… E o casalzinho roçadeiro eu já ia resolver hoje mesmo. Mas você apareceu primeiro, então…
Val: Ai caralho! Que papo de lua é esse?
Neto: Aqui é onde o filho chora e a mãe não vê.
Val: Ai, merda…
Neto: Tô mais poeta que vocês dois juntos, percebeu?
Val: Tô vendo…
Neto: Esse ramal tá no projeto de expansão faz tempo. Mas só ficou no papel. É uma cidade fantasma, dentro de outra cidade… Essa é a minha cidade, é o meu espaço. Tudo que seu olho alcança… É meu! Bem-vindo… Chegamos!… Surpresa! (Neto arremessa Val contra a parede)
Esse local afastado dentro da estação é uma sala ampla, mal iluminada, abarrotada de coisas que visivelmente tem algum valor, há também muitas caixas, pás, picaretas e outras grandes ferramentas encostadas na parede, tábuas de madeira cobrem o chão, como se ocultassem uma escavação, túnel, túmulo… Val está voltado para uma parede buscando saída quando nota à sua frente uma caixa aberta que revela enorme quantidade de dinheiro em seu interior, Neto não se incomoda com o que está à mostra, na verdade tudo ali o envaidece…
Val: Esse chaveiro não é da Glorinha?
Neto: Acho que não. É só parecido.
Val: Tá escrito o nome dela… E o sobrenome também.
Neto: Então acho que é né! A Glorinha gostava muito desse lugar… Dá isso pra mim vai! Nós tivemos excelentes momentos aqui. Ela ainda tá por aqui, de certa forma (ri) e veja quanta companhia ela tem. Esse é o achados e perdidos de coisa que ninguém dá por falta. Por que oficialmente essas coisas nem existem. Vamos supor que você se perdesse aqui… pra sempre. Pensou?… Alguém ia te reclamar, minha figurinha… Não!
Ninguém ia dar por falta também! Fica quietinho…
Val: O que você quer Neto?
Neto: Que eu quero? (silêncio) Eu quero ver teu corpo.
Val: O quê?
Neto: Quero ver o que você tanto esconde aí. Anda!
Val: Hã, meu corpo?? Cara, se fosse de outro jeito… (silêncio) Mas assim você só tá me assustando!
Neto: Sente o tamanho da minha mão, a sua some na palma da minha, anda vai, pega aqui. Eu sei que você gosta! Sente…
Val: Neto, eu vou voltar agora, tá? Adorei conhecer (mostra o ambiente, procurando palavras) a Netolândia, mas agora você vai sair da minha frente e vai deixar eu passar, né?
Neto: Eu nunca perco e eu não vim ao mundo pra ser contrariado… Eu não sou comandado não, eu comando!
Val: Mas eu nunca te contrariei cara, eu te admiro pra cacete. Quem te botou chifre é Minalba, o Cris… Eu não tenho nada com isso (Neto agride Val que cai de joelhos)
Neto: Isso, ajoelha… Isso!
Val: Não me mata, por favor… por Deus.
Neto: Pensa que eu não sei que você é ateu… Seu desviado!
Val: Eu não sou não, Neto… Eu fui batizado e tudo.
Neto: Então reza…
Val: Pai nosso que está no céu… (pausa) o santíssimo nos dai hoje… (Neto lhe dá uma coronhada).
Neto: Ateu de merda, aposto que se fosse música de macumba você ia saber né? Anormal ateu! (Neto lhe cospe na cara)
Val: Mas você não é, Neto. Você é um cara… um cara… correto, eu acredito nisso. Eu vejo você sempre de bíblia na mão, na hora do meu almoço, Você pensa que é só você que vê os outros. Eu também te observo!
Neto: A terra já foi um lugar melhor, eu faço parte de um exército divino, seu anormal… Eu tô falando mas sei que você não entende. A gente existe pra limpar esse lugar! Tudo vai voltar a ser paraíso. Só com ovelhas obedientes. Ovelha revolta precisa de pastor bravo! Consegue imaginar o paraíso?
Aposto que você não consegue! Você não pode se ver nele, porque você é a falha, é a falta de vergonha, você é um erro da natureza. Mas eu sou a retidão, o rigor… Olha a nossa diferença! Tá vendo? Não adianta te ensinar… O impuro não consegue enxergar a pureza! Você é uma cobra, e esse aqui é o meu cajado!
Deixar esse tambor girar, me dá imensa alegria. Ver você se mijar de medo me deixa muito, muito contente. Não importa o que digam. Eu sei que do céu Deus me aplaude. Ouve! Estão me aplaudindo, nós somos muitos e vamos limpar o mundo…
Vocês vieram todos do mesmo bueiro, que nem rato e barata, invadem todos lugares, hoje tem lixo que nem você em tudo quanto é canto, na TV, no mercado, revista e até como chefe…
A gente mata 10 dessas praga e brota 20 no mesmo lugar… Vocês sobrevivem né! Mas a gente se aperfeiçoou também… Um dia a gente volta a ter alguém lá em cima e todo esse trabalho vai ser assim ó… (estala os dedos) Bicho nojento! (cospe na cara de Val)
Mas hoje é seu dia de sorte, ô barata, eu tô manso… que nem gato. Então primeiro a gente vai brincar…
Val: Não faz isso cara, eu concordo com qualquer coisa, qualquer valor. Eu tenho dinheiro no banco. Eu posso te pagar, eu não conto nada pra ninguém!
Neto: Então me paga… (Val lhe entrega tudo que tem) Não! Me paga mais, pelo que vale tua vida. Mostra teu valor…
Val: Eu tenho mais… no banco. Eu juro! Meu, as coisas não precisam ser assim, as coisas podiam ser bem diferente entre a gente!
Neto (carrega seu revólver e gira o tambor): Deus dá, deus tira, dá, tira, dá, tira… Abre a boca, vai!
Val: Cê vai me matar? Mesmo? Então… EU NÃO VOU TE AJUDAR NISSO! (grita com toda sua força) Seu filho da puta! Pode me quebrar então… Por que eu vou resistir até o fim (Val cospe na cara de Neto)
Neto dá outra coronhada na cabeça de Val, aproveita o grito dele e põe o cano da arma em sua boca.
Neto: Isso quieta, bicha estranha, sapatona… não vai engasgar hein… (insere a arma e tira, simulando sexo oral, demonstrando imensa excitação) Deus dá, tira, dá, tira, dá e tira… (Neto aperta o gatilho, nada dispara, Val fecha os olhos na hora, e os abre aliviado, incrédulo)
Isso é bom demais. Agora a sua vez, tenta. (ele faz que gira o tambor na sorte para que Val veja, mas às escondidas insere só uma bala na sexta e última casa)
Val: Não!
Val reluta mas apanha a arma, Neto se ajoelha e Val insere a arma na boca de Neto que está completamente excitado, Val aperta o gatilho, que não dispara, Neto é tomado pelo riso ensandecidamente. Totalmente entorpecido. Val subitamente segura a cabeça de Neto com toda sua força, e aperta 5 vezes seguidas até que ouvimos o disparo.
Múltiplos sons da estação sucedem o tiro.
Val: Eu vejo o paraíso… nele você não tá!
CENA 12 – VOU PERGUNTAR AO MEU AMIGO REALEJO QUANDO É QUE A SORTE VAI PARAR EM NOSSAS MÃOS
Luz acende num canto do palco mostrando Minalba que chega ao que parece ser seu apartamento. Ela faz uma longa respiração, retira da mochila uma caixa, a abraça e beija. Ela abre a caixa, há uma enorme quantia em dinheiro e um cartão postal que ela lê rindo. Parece descrente do que leu. Ela olha tudo à sua volta como se estivesse escaneando o ambiente com a visão, parece que seu raciocínio avança enquanto seus olhos passeiam, ela balbucia algo, são contas ou declarações, ou algo em russo, seu rosto nos informa que houve um avanço, o que estamos vendo é Minalba em uma tomada de decisão.
Em flashes a vemos em diferentes momentos sequenciais: comemorando, rindo, recebendo o entregador de comida a sua porta e banqueteando sozinha, Ela encontra um livro – possivelmente algo do Lima Barreto – que já dividiu com Cris e muda de expressão.
Minalba (contempla na parede um pôster que mostra o Palácio do Kremlin. Ela o desprega, enrola cuidadosamente e guarda na mochila que levará consigo): E lá vamos nós! “I zdies’ míi ídiom”!
Num segundo momento ela está escrevendo um bilhete e há vários papéis amassados pelo chão indicando que ela já fez várias tentativas. Ela desiste do bilhete, e se prepara pra sair dando uma última longa olhada no local, apanha alguns objetos mais importantes os coloca na mochila, por último a caixa de dinheiro, que ela abre separa alguns montes e coloca a parte num dos bolsos da mochila, já de saída na porta ela retorna, folheia um livro e encontra uma determinada passagem que reconhece e lhe agrada, balbucia a passagem escolhida enquanto escreve num cartão vermelho:
“Nos piores momentos, lembre-se:
quem é capaz de sofrer intensamente,
também pode ser capaz de intensa alegria.”
Luz apaga e cresce vagarosamente mostrando agora Minalba andando num espaço aberto, de mochila, visivelmente pronta pra uma viagem, com o cartão vermelho na mão ela procura a cada passo lento a frase ideal.
Minalba: Cris você é o homem mais íntegro que conheci na minha vida mas acho que não correspondo à sua expectativa.
Eu preciso ficar só…
Pausa.
Não gosto de sair de uma história e já entrar em outra.
Conhecê-lo foi a melhor coisa dos últimos tempos na minha vida. Mas eu preciso de um tempo.
Pausa.
É isso. Eu vou sair solo de férias, sem prazo pra voltar!
CENA 13 – BEIJO SABOR CEREJEIRA
É fim de expediente na estação, a companhia que cuida do lugar está desmontando duas bancas, rebocando a banca de dog de Glória e a do churrasco grego. Tomba no chão a placa “Beijo Sabor Cerejeira”. Cris olha desolado essa mudança de cenário. Minalba aparece e traz na mão o cartão vermelho que acabara de escrever, ela se aproxima lentamente como quem tenta adiar um encontro inevitável, ela fita Cris desolado acompanhando o desmonte das bancas, respira fundo, titubeia entre seguir ou voltar, então para, guarda o cartão na mochila, e segue ao encontro de Cris.
Minalba: Eu imaginei que ia te encontrar aqui!
Cris: Oi Minalba, eu queria muito te ver no último dia do Beijo mas parece que cheguei tarde, dei com a cara na porta, sem aviso nem nada. Parece que você saiu correndo, fugida.
Minalba: Eu resolvi fechar antes, foi um dia atípico, Donagê estava contente, me liberou dessa última arrumação, eu precisava sair e resolver algumas coisas urgentes… Mas eu não ia deixar de passar por aqui pra te ver.
Cris: E aí resolveu o que precisava? Você está melhor?
Minalba: Resolvi sim e acho que vou ficar bem. E você… A cara já denuncia, mas eu quero ouvir ainda assim. Como você está?
Cris: Tô processando as mudanças aos poucos… (aponta para o desmonte das bancas) Isso dá uma tristeza em mim… Essa coisa de fim, parece que é mais uma coisa que não deu certo, mais um balão que não subiu… Eu sofro como se fosse fracasso meu… A banca de dog mesmo sem a Glória tinha muito dela ali, parecia que a qualquer momento ela ia voltar, pondo ordem em tudo, reclamando como sempre… Quando eu chegava nesse pedaço de chão tinha você distraída no Beijo, era bom. Tinha o Val chegando falante ou me gritando pra ir atrás dele.
Minalba: Sim, foram bons momentos, principalmente quando Glorinha tava aqui, ela me fez rir muito, fazia todo mundo rir, era como um sol no meio da estação, até incomodava (ri) não dava pra ler nada com as brincadeiras dela, mas o dia passava rápido… Lembra de quando ela apresentou a gente?
Cris: Sempre.
Minalba: O menino do 4°suco (imita a amiga): “Pra todos você dá um terceiro, pra ele é a refresqueira inteira!”… E você ficou todo sem graça.
Cris: Até que você cortou meu barato dizendo que vocês estavam testando em humanos o quanto de corante uma pessoa aguentava sem sequelas.
Ela ri, ele não.
Minalba: Era brincadeira!
Cris: Você tem umas brincadeiras bem estranhas né? Nunca sei quando você tá falando sério ou tirando onda…
Minalba: É pra você ficar mais esperto. (ele revira os olhos) Tem que ler a cena além das palavras mesmo!
Cris: Eu só vinha aqui por causa de vocês mesmo. Porque a comida sempre foi horrível, almoçar o dogão da Glória e jantar seu churrasco, era o combo “Jesus Me Chama”! Aumentou o consumo de anti-ácido na região…
Minalba: Você disfarçava bem então. Não gostava dos lanches mas vinha sempre… (silêncio) E porque a gente demorou tanto assim pra ficar próximo…
Cris: Por causa do seu guarda-costas.
Minalba: Ah tá. Já tinha me esquecido dele.
Cris: Quando o que é ruim termina a gente se acostuma rápido. Né, Miná?
Minalba: Ah não, não… Não me chama assim, chama de outro nome vai… MinÁ é como um berro do passado… E estamos em tempo de mudança.
Cris: Do que eu posso te chamar então?
Minalba: Pelo meu nome!… Ou pode me chamar “Mi”.
Cris: “Mi”…. Gostei. Vou te chamar assim… E então não soube mais nenhuma notícia dele?
Minalba: Não e nem quero.
Cris: Engraçado, sabe que eu acho que o único que parecia gostar de verdade dele era o Val?
Minalba: Hum… E porque você acha isso?
Cris: Por que ele tinha um ranço contigo… Se gastava de ficar defendendo o Neto… E acho que eles sumiram na mesma semana.
Minalba: É, foi na mesma época mas acho que não tem nada a ver não. Não faz nenhum sentido Val gostar dele, ele extorquia e tratava vocês dois piores do que todos os outros marretas.
Cris: Disso com certeza Val não sabia. Eu não sabia! Ah Val, você faz uma falta lascada! Todo mundo pergunta… Já me pararam várias vezes aqui, tudo cliente, amigo dele… Os marreta se juntaram e a gente espalhou uma pá de cartaz perguntando por ele, eu fiquei meio ressabiado… Não sei se ele tinha algum enrosco com a polícia… Mas acho que ele tá bem… Pressentimento, sabe?
Minalba: Você e seus pressentimentos. Já o Neto, pelo menos pra mim ninguém perguntou nada.
Cris: Faz mais de 3 meses que o cara virou fumaça e ficou por isso mesmo…
Minalba: Eu até achava que ele era querido entre os colegas, mas pelo visto o que tinha não eram exatamente amigos… Não teve lamento. Tudo continuou!
Cris: Eu que o diga…
Minalba: E você percebeu que mesmo sem ele “controlando” o número de vendedores, barrando a entrada dos artistas de rua, das crianças pedintes e da galera que mora debaixo da marquise, nada de fato mudou aqui, não aumentou o número de “indigentes”, os marreteiros não estão se matando nos vagões, idosos não estão caindo nas vias em maior número, os colegas da segurança, tudo de boa sem ficar dando ordem, tudo transcorre na santa paz… Dentro das possibilidades desse caos, né? Tanto que a vaga do Neto nem foi mais ocupada. Você lembra o que isso significa?
Juntos:: “Emprego de Merda!”
Minalba: É vero! Emprego de merda! A comprovação de uma tese.
Cris: Mi… Mi é uma beleza mesmo! Simples, curto e musical… Mi! E falando em musical…
Minalba (Cris mostra um embrulho e ela reage encenando com artificialidade exagerada): Ó… um presente! Eu também trouxe algo pra você ver comigo… Algo que me deixou tão atordoada que nem embarquei no seu luto…
Cris: Eu percebi… Eu aqui me acabando, no chão, só tristeza e você aí… “Estoica”… Então é agora que vou saber o motivo?
Minalba: Estoica! (admirada) É uma boa palavra!
Cris: Aprendi no livro da Sofia. “Estoico”, eu queria ser também mas não sou estoico e cada parte dessas bancas, parece uma parte minha. Primeiro a Glória some sem se despedir, depois o Val, agora as duas bancas saem também e fica esse espaço vago, e você também não tá mais aqui, é como se tudo que eu conhecesse se dissolvesse de uma vez só.
Tô me sentindo um peão que tomou um tapa atrás do outro e não parou nunca mais de rodar. Saca aquelas portas giratória que só faz rodar… E passa Glorinha, e passa Neto, e passa Val…
…Passa Minalba…
…E Cris aqui. E tome tapa! (ela o para com as duas mãos e o beija longamente, ela o prende nesse abraço como num abraço de despedida)
Minalba: Um beijo. Você merece um beijo! Para aqui comigo então e olha isso! (Ela põe a mochila no colo de Cris) Vai, abre! (a primeira coisa que ele pega é justamente o cartão vermelho)
A caixa, Cris! Não o cartão, esse você me devolve, dá aqui vai!
Cris: Agora que não devolvo não, você falou que ia dividir comigo (ele abre e se põe a ler, ela arranca da mão dele, cada um fica com um pedaço do cartão) “Nos piores momentos, lembre-se: quem é ca…”
Minalba: Já falei que isso não é seu. Porra. Pronto, resolvido! (impaciente, ela toma da mão dele e pica ambas as partes do cartão vermelho)
Cris: Desculpa aí, Minalba!
Minalba: Tá, tá bom. Mas você passa dos limites. Toma, esse você pode abrir!
Cris (abre a caixa, que é do tamanho de uma caixa de sapato e tira de dentro um cartão postal, a imagem que estampa o cartão é uma praia de águas claras. No verso ele lê com certa dificuldade):
“Minalba, minha amiga.
O sucesso está a caminho.
Confie em Deus.
Ele escreve certo por linhas tortas.
M.G.”
Cris: Maria da Glória?
Minalba: Acho que sim? Agora olha aqui (Dentro da caixa há uma imensa quantia em dinheiro, somente em notas de 100 reais, novas, separadas em montes, presos por elásticos.)
Cris: Nossa! (guarda rapidamente olhando se tem alguém em volta) Quanto azul… Quanto peixe…
Minalba: E ainda tem mais esse! (ela diz enquanto junta o pacote que havia separado ao montante da caixa original. Cris acha tudo estranho, mas não comenta nada. O riso toma conta de ambos) Eu recebi isso exatamente aqui! Depois de ver eu saí correndo. Quem me trouxe foi um velhinho, mas tão velhinho, tremia tanto, tadinho, que nem bambu, me pareceu familiar, e com certeza não era carteiro… O que me deixou um pouco desconfiada, ele perguntou se eu era a “Dona Minalba” com um fiozinho de voz que eu só entendi meu nome na terceira tentativa dele.
Cris (franze a testa buscando em sua memória a descrição do velho): Eu teria ficado com medo!
Minalba (narra pausadamente e ao longo de sua fala a expressão de Cris vai da apreensão pra decepção e desconcerto): E eu fiquei. Mas ele era tão velhinho, parecia tão no fim de tudo, tão vivido, sem perspectivas já, que eu fiquei à vontade pra fazer uma… meia maldade.
Eu não peguei a caixa da mão dele!
Eu me distanciei aos poucos fingindo estar ocupada, até tava mesmo por que havia um sacão de lixo pra descartar e quando eu já estava há uns 6 metros de distância e já tinha me livrado do saco, mostrei as mãos, fiz que tavam sujas, mas era drama e eu prossegui, pedindo pra ele do outro lado: “O senhor pode abrir a caixa pra mim por favor?”
Eu tampei os ouvidos… e fiquei olhando com toda atenção, ele abrindo com uma dificuldade. Eu vi a hora que o corpo dele ia explodir no ar, mas não aconteceu.
Quando ele abriu, olhou dentro e parecia que tinha tomado um tiro… Como nada explodiu mesmo, corri pra ele na hora… O fio de voz dele tinha sumido, ele começou a chorar e mudou de cor como se tivesse acabado de presenciar um milagre.
Eu olhei a caixa aberta e não parei mais de rir. Eu ainda tô rindo, mesmo que não pareça… Eu enchi minha mão com muitos montes dessas notas azuis, botei nos bolsos dele. E disse: “É seu!”… Ele beijou minha mão com uma gratidão que nunca vi antes, como se eu fosse uma santa…
É, ele não fazia ideia do que tinha se passado na minha cabeça segundos antes… Me achou insuspeita, e por fim uma pessoa generosa, sem igual!
Ri. Há uma longa pausa. Cris está sem fala e ambos só se entreolham, recobrando o fôlego ele retoma a conversa.
Cris: Porque você fez isso? Bom, esquece… eu acho… não sei… Afinal de onde veio esse dinheiro?
É…A Glorinha talvez tenha ganhado na loteria mesmo, por que não? Um dia a insistência vence qualquer estatística… E ela insistiu muito!… Eu mesmo já tinha conferido pilhas de bilhetes com ela. Parecia doideira mas ela fazia com seriedade como se fosse investimento mesmo!
Minalba: Tinha método!…
Pois é… E então o que fazer com essa caixa que me chegou nas circunstâncias que agora você também sabe, e, detalhe, com o endereço do remetente rasurado. Essa frase no postal deve ser uma ironia… dupla, só pode: “O sucesso está a caminho, confie em deus, ele escreve certo por linhas tortas” Primeiro porque eu nunca fui religiosa… e Glorinha, muito menos, em segundo, porque não sei se a pessoa tinha algum problema ou é uma criança em fase de alfabetização… Só sei que ela não acertou uma letra sequer nas linhas.
Cris: É verdade. Provavelmente algo escrito no banheiro de um avião em turbulência deve ser assim… Ou uma pessoa com pressa?
Minalba: Algo escrito por alguém que tenta disfarçar a letra pode ser assim também…
Tem bastante dinheiro, muito, muito… O que nós faremos com essas azulzinhas cheirando a novo?
Cris: Nós? (ri sem graça, talvez até preocupado)
Minalba: Sim!
Cris: Bom, eu tenho bastante disposição, mas ainda me falta uma direção… Eu posso seguir na mesma que você. Isso se você quiser, deixar, se não for um problema… É que eu acho que já passou da hora de sair dessa estação, e tudo que passa do tempo fica estranho…
Minalba: Um vale de estranheza…
Cris: Bom, meu estágio aqui já terminou… e esse seu mestrado também né?
Minalba: Sim. Já acabou! E antes que fique mais tarde, passa pra cá o meu presente que eu não esqueci não. Anda logo. Deixa eu ver!
Cris: Ah sim, é que foi muita emoção de uma vez só… Tá aqui.
Minalba: Ou… ou… ou… É um LP! Olha, uau, é a Donagê! Digo: GEOVANA! (mostrando o nome em destaque no disco) Que linda!d
Cris: A Deusa Negra do Samba Rock. Eu fiquei triste de levarem o Beijo… Mas acho que ela não fechou negócio com a gente por um excelente motivo… Uma galera jovem, descolada descobriu suas músicas e, pasme, ela vai lançar um disco novo… Como a banca tava cheia da dívida, então ela deixou virar a página… com gosto… Incrível não? É como se Tina Turner cantasse em português e tivesse dado um tempo trabalhando no Brás… e de repente a gente olha pra trás e percebe… Caramba. Era ela mesmo!
Minalba: Eu não sei o que dizer… Adoraria ouvir.
Cris: Eu já ouvi no vendedor e te adianto. É maravilhoso! E é uma raridade, esse ela autografou pra gente. Atenção pra última faixa do lado B.
Minalba: “Beijo Sabor Cerejeira”… Ah que maravilha! Faltou a vitrola agora.
Cris: Não falta nada…
Cris abre a mochila de onde tira seu caderno, fones (com cabo de aço), um smartphone. E… o box de livros do Lima Barreto: Obra Reunida, deixando Minalba boquiaberta.
Minalba: Ah, e preciso deixar bem claro que eu gostei muito do seu conto, muito mesmo, mas faltou um ponto final, para amarrar a história, dar um destino pra cada personagem talvez.
Cris: Eu segui o teu conselho, deixei lacunas… Tá em aberto. Se você não tá satisfeita, te vira, inventa outro fim…
Minalba: Terminar algo é tão difícil, e como é seu, deixo o ponto final pra você, mas a gente pode fazer um novo começo juntos. Pensando em você eu recomeçaria como poesia. (Ela pigarreia e de improviso declama):
Eram 4 corpos.
Num mar de corpos latentes.
Numa piracema constante e espelhada.
Prosseguiram ali muitos corpos. Na estação de transferência.
Indo do metrô pro trem, do trem pro metrô.
Não indo a lugar nenhum..
Eles dançavam,dançavam
mesmo sem saber…
Cris: Nós temos todo esse espaço agora e nós sempre teremos… A internet…
Ele coloca os fones em si mesmo e em Minalba, dá o play no aparelho. Todos ouvimos a faixa “Beijo Sabor Cerejeira”, de Geovana.
Eles dançam. Todos podem dançar…
Ai meu amor
Beijo sabor cerejeira
Beijo sabor cerejeira
Beijo sabor cereja
Meu amor
O meu destino é o mundo
O meu destino é o mundo
O meu destino é o mundo
Minha alegria
Inverno em pleno verão
Minha Tristeza
Se chama solidão (solidão)
É no outono
O meu amor te espera
Com Beijos sabor cereja
Cerejas da primavera.
Julho de 2021
Fim
NOTAS SOBRE O TEXTO
1 – Val e Cris são 2 homens trans, e devem ser interpretados só por atores que também sejam homens trans.
Seguindo assim a reivindicação do “Manifesto da Representatividade Trans”, lançado pelo Movimento Nacional de Artistas Trans (MONART) em 2017.
Mais detalhes sobre a causa podem ser lidos nos links abaixo:
https://www.change.org/p/sated-representatividade-trans-já-diga-não-ao-trans-fake
https://www.facebook.com/RepresentatividadeTrans/
https://www.globalsustentavel.com.br/manifesto-representatividade-trans-ja/
2 – A teoria que Cris tenta explicar a Val na primeira cena realmente existe e foi defendida pelo professor e antropólogo anarquista David Graeber em seu livro Bullshit Jobs: A Theory [algo como “Empregos de Merda: uma Teoria”].
Um artigo sobre essa teoria pode ser conferido aqui:
https://outraspalavras.net/trabalhoeprecariado/a-estranha-sociedade-dos-empregos-de-merda/
https://monstrodosmares.com.br/produto/sobre-o-fenomeno-dos-trabalhos-de-merda/
3 – Geovana (ou também Giovana) de fato existe e é cantora. “Beijo Sabor Cerejeira” é um dos seus maiores sucessos ainda hoje. Ela realmente voltou a gravar.
https://www.youtube.com/watch?v=gB1eb9qM7-s
https://osindicatodosamba.com.br/?p=1105/
https://www.youtube.com/watch?v=Q7GeSvypKB8
4 – O nome de todas as cenas é também nome ou trecho de um samba rock – a maioria, músicas compostas/gravadas por Geovana. Ela nunca teve uma banca de churrasco grego.
Ouça Geovana:
https://open.spotify.com/artist/3oWSIlB1wq6fZf3olazy7v?si=ZnE94tzcT4G9ok4yrW4oCg&dl_branch=1