Dramaturgias do Tempo
Espuma
Peça em 13 quadros
São Paulo, 2021
Primeiro quadro
Dois colhedores de algodão andam e conversam num campo branco.
Tula: Vê se anda rápido, cabra véio tonto! Desse jeito vamos chegar depois da hora de lá. Já disse mil vezes que os Barão não gosta que a gente perca os minutos.
Zé: E adianta a gente ganhar uns trocado de minuto, mas perder um montante de hora?
Tula: Tem mais de semana que você só sabe andar pra trás. Vê se aperta o passo e não fala mais mundo afora.
Zé: Tem doido pra tudo! Quando dorme sonha em acordar e quando acorda corre pra dormir. Se a vida não foi feita pra ser vivida, de que adianta ganhar os minutos? É do pouco que o quase chega ao fim.
Tula: Barriga de vento só de balão, a gente não tem tempo de esperar. Se quiser vida cheia, precisa gastar passo. Vamo logo que os Barão espera nóis!
Zé: Tá certo! (pausa) Será que hoje nóis consegue pular o muro?
Tula: Pra tudo dá-se um jeito, menos pra morte.
Zé: Mas é pra lá que nóis vai, se os Barão avistar as carcaça aqui.
Tula: Vai não, a gente se divide: um olha e o outro pula.
Zé: Você fala isso a vida toda, mas não dá certo, não!
Tula: Porque o medo atrapalha nóis, ele não deixa o corpo se mexer como deveria. Mas hoje nóis consegue!
Zé: Você olha e eu pulo!
Tula: Por que você pula?
Zé: Porque você olha.
Tula: Mas eu sempre quis pular primeiro.
Zé: E eu sempre olhei primeiro.
Tula: Mas eu nunca consegui pular.
Zé: Tá vendo?! Agora é a minha vez.
Tula: Nóis tem que seguir o combinado. Sempre foi assim, nóis combinou assim.
Zé: Mas nunca deu certo. De que adianta seguir o rumo errado? Vamo mudar o caminho que nóis encontra a sorte.
Tula: Deixa de conversa!
Zé: Dá pra me ouvir pelo menos uma vez?
Tula: Dá pra confiar em mim pelo menos uma vez?
Zé: Você sempre ca’s conversa tudo truncada, do lado contrário, não aguenta ouvir palavra diferente.
Tula: A gente já conversou sobre isso, não lembra da noite no campo? Fizemos um combinado: eu pulo e você olha.
Zé: Você olha e eu pulo!
Tula: Num desconversa uma hora dessa, peste! Aperta o passo e segue o caminho.
Zé: Caminho desvirtuado esse…
Zé avista o muro.
Zé: Olha lá! Parece que tá maior…
Tula: Deixa de bobagem!
Zé: Tá maior! Uns tijolo gordo, outros fino… mas tá maior!
Tula: Impressão sua, o muro tá igualzinho da outra vez. Você tá com medo!
Zé: Tá maior, eu juro por esses olhos que já viu São Jorge no cavalo. Tá maior!
Tula: Pra mim tá do mesmo tamanho como sempre foi. E uns tijolos a mais ou a menos não faz diferença.
Zé: Vou pular!
Tula: Você olha. Eu pulo.
Zé: Mas você não consegue pular, chega lá em cima e empaca, feito um burro em ladeira de barro. Não desce, nem sobe. Empaca!
Tula: Vou pular.
Zé: Então pula, quero ver a coragem.
Tula: Você olha.
Zé: Não precisa, você não consegue pular.
Tula: Olha os vigia pra nóis não morrer.
Zé: Pula!
Tula: Eu vou pular, só preciso saber se você vai vigiar mesmo…
Zé: Pula!
Tula: Promete que vai ficar aqui e olhar?
Zé: Pula!
Tula: Tô vendo onde coloco o pé e a mão…
Zé: Pula agora!
Tula: Para de apressamento…
Zé: Pula!
Tula: Cê tá me bombeando o coração. Preciso pensar…
Zé: Quero ver pular. Pula!
Tula: Para de falar preu pular!
Zé: Pula!
Tula: Desse jeito eu não vou conseguir…
Zé: Pula agora!
Tula: Calma, tô tentando…
Zé: Pula!
Tula: O muro tá maior…. Parece que tem mais tijolo
Zé: Pula!
Tula: Para, peste!
Zé: Pula vai!
Tula: Já disse pra parar!
Zé: Pula! Pula! Pula!
Segundo quadro
Campo branco. Tula está colhendo algodão. Zé chega.
Tula: Opa! Que tem de bom?
Zé: Essa hora só quase lua e vagalume.
Tula: Não te vi hoje…
Zé: Cheguei cedo, muito trabalho!
Tula: Igual todo dia.
Zé: E as cria?
Tula: A maior começou a escola hoje, tive que pedir licença de uns minutos.
Zé: E o que adianta ganhar uns trocado de minuto e perder um montante de hora?
Tula: Hoje é dia diferente.
Zé: E os Barão, o que acha?
Tula: Abriu os zói espantado, deu lápis e borracha. Disse que hoje é importante e que eu não podia perder um minuto sequer.
Zé: Se é assim que foi dito, é assim que tem que ser.
Tula: Deixei ela na escola e vim correndo pra mode não demorar. Foi difícil deixar a bichinha lá. Aquela multidão de erê, aquela pequeneza de vida. Mas tá em boa mão, não vai ser esquecida.
Zé: Sorte de fibra, hein cabra! Tuas cria é coisa de se desejar pra sempre.
Tula: E você, o que faz aqui? Sem luva, sem gorro…
Zé: Já deu meus minutos.
Tula: Fez quanto?
Zé: Terminei o canteiro. Hoje os Barão vai dormir feliz.
Tula: Se você diz…
Zé: Eu fiz. Juro! Limpei o canteiro, arei e plantei as sementes. Fiz o pedaço que tava por terminar.
Tula: Sorte a sua, vai pra casa mais cedo. Eu preciso de dá conta dos minutos que peguei emprestado.
Zé: Me disseram que esse ano a safra tá boa…
Tula: Recorde de cinco anos…
Zé: E no menor tempo já visto…
Tula: Nunca que esses Barão viram uma safra tão boa quanto essa.
Zé: Tamo fazendo um bom trabalho!
Tula: E tudo branquinho, levinho… parece até nuvem.
Zé: Nuvem de terra vermelha. O bom é esperar pra ver se dá mais safra, mais lucro… não adianta cantar vitória antes da hora.
Tula: Se der lucro, nóis vai ser os últimos a saber. Eles vão ganhar a vida, nóis vai congelar a morte
Zé: A sorte é que nóis planta nuvem com o céu virado de cabeça pra baixo. Vai ver nóis é dois carcará plantando o dia e a noite. E lá em cima, quer dizer, lá embaixo, tem dois bichos com asa, olhando nóis se embrenhar nas penagem branca.
Tula: Eita, tá vendo espuma as panca?
Zé: E fala se não é por verdade essa visão?! Se nóis olha o céu daqui de baixo, nóis olha lá de cima também. Afinal, a terra reflete o céu como ele é…
Tula: …e não tem cabeça que mude de fé.
Zé: Acaba não, mundão!
Tula: Tá tudo muito bom, mas eu preciso terminar isso aqui. Tô aqui querendo pagar meus minutos e você me tirando os coitados… tá me devendo uns trocado de tempo.
Zé: Chega uma hora que as mão pede calma, que as perna não responde mais, que a cabeça não pensa mais, que os zói se acostuma com a vertigem da noite. Chega uma hora que o corpo pede o fim do dia.
Tula: E as cria? Como faz?
Zé: Pra tudo dá-se um jeito, cabra! Tu tem eu, eu tenho você, de fome nóis num vai morrer.
Tula: Tu é sozinho, peste! Fala isso porque não tem com o que se preocupar.
Zé: Num tenho filho, mas tenho sonho. Preciso alimentar de todo jeito.
Tula: Moleque pede leite e sonho pede esperança. Cada centavo ganho nessa terra enchê três pança!
Zé: Nóis num tá aqui pra competir desgraça, cada um sabe o que passa.
Tula: Então me deixe ganhar o meu porque não tem quem faça.
Zé: Eu te ajudo!
Pausa.
Tula: Tá doido, peste?! Vai simbora!
Zé: Tá cedo, cabra! A lua ainda tá espiando o céu.
Tula: Num precisa ajudar, tu já fez o seu, já ganhou o dia.
Zé: Eu te ajudo e depois nóis vai pra casa junto.
Tula: Já disse que num precisa.
Zé: Deixe de cerimônia. É bom que nóis conversa e joga conversa fora, cabeça vazia fica triste.
Tula: Se você insiste…
Pausa.
Zé: Ficou sabendo do fim do campo?
Tula: Fim do campo?
Zé: Pra lá depois do último canteiro.
Tula: O que tem?
Zé: Coisa antiga, tem pra lá de 500 anos pra trás.
Tula: 500 anos?
Zé: Sem tirar nem pôr. Cinco séculos de fim de campo que ninguém sabe como começou.
Tula: E como você descobriu?
Zé: Tem um muro bem alto no fim. Pra lá depois das terra dos Seu Antônio, quase chegando no riacho.
Tula: Muro?
Zé: Com os blocos cheios de chuchu de cacho. A planta já tomou conta do concreto, o muro parece árvore.
Tula: E o que será que tem do outro lado?
Zé: Ninguém sabe.
Tula: Agora peguei curiosidade.
Zé: A verdade é que ninguém nunca subiu pra ver, o bicho é alto e escorregadio. Dizem que lá fora acontece outro mundo.
Tula: Pois agora tô de agarro com o mexerico.
Zé: Minha vontade é subir pra ver o que é.
Tula: Se for outro mundo mesmo, pego minhas cria e meto o pé.
Zé: Assim na fé?
Tula: Sem pensar muito, pego o pouco e vou embora.
Zé: Os Barão não gosta que ninguém chega perto, é castigo na hora.
Tula: Se organizar direito não tem erro, os Barão não vão saber.
Zé: Mas e a safra? Tamo na melhor época. Tenho medo de pular e não render.
Tula: Pior que aqui não deve ser.
Zé: Cabra de cabeça virada igual tu, tá pra nascer.
Tula: Pois então tá arranjado! Um dia nóis sobe e vê no que dá.
Zé: Vamo organizar direito pra não dar erro. Se os Barão pega nóis, tamo lascado.
Tula: Erro não há de dar, todo cuidado é pouco e todo pouco é muito. Se tem coisa do outro lado, nóis vai descobrir.
Zé: Já peguei gosto por essa aventura. O jeito é seguir o sonho, andar reto, sem curva.
Tula: Se aqui nóis planta nuvem, do outro lado nóis colhe a chuva.
Terceiro quadro
Campo branco. Zé está colhendo algodão. Tula chega.
Tula: Tarde!
Zé: Tarde!
Tula: Mandaram eu vir pra cá, vou dividir o dia com tu.
Zé: Trabalho é nosso! Devem ter levado o outro embora.
Tula: Vi umas roupas na mesa dos Barão, devia ser da outra pessoa.
Zé: Manuel da Silva! Cabra era bom, trabalhava bem. Disseram que iam manter ele aqui, mas levaram o coitado.
Tula: Me trouxeram com urgência, disseram ontem pra eu vir hoje.
Zé: Os Barão não perde tempo, aqui nóis é só um número. Um número que faz soma todo santo dia. Ontem foi Manoel, amanhã pode ser eu, depois você…
Tula: Isso aí eu não vou querer.
Zé: O jeito é fazer o trabalho bonito e rezar pra não sofrer.
Tula: Vou aprendendo aos poucos, com o tempo pego o jeito.
Zé: Trabalho assim pega num piscar de olho, daqui a pouco nóis acaba tudo.
Tula: Muito tempo aqui?
Zé: O suficiente pra ver Manuel ir embora e você chegar.
Tula: Tu tem cara de gente antiga, de mão esperta com o trabalho.
Zé: Nóis aprende com o pouco, né, Dona.
Tula: Pode me chamar de você, porque dona eu não sou de nada.
Zé: Então canta teu nome.
Tula: Tânia Maria, mas pode me chamar de Tula.
Zé: Pronto, Dona Tula!
Tula: E o seu?
Zé: José das Graças, mas pode me chamar de Zé.
Tula: Zé é nome de todo mundo, de gente antiga, santo de rua.
Zé: Por isso sou Zé, como todo mundo é.
Tula: Até a cabeça mudar de fé…
Zé: Quê?
Tula: Então tu viu o Manoel entrar?
Zé: Chegamo junto, no mesmo dia e na mesma hora. Soltaram nóis aqui dentro e deixaram à Deus dará. Mas Deus não tem olhado pra nóis. Deus está em maus lençóis
Tula: Safra de algodão precisa de muita mão, tem que deixar branquinho e com qualidade.
Zé: Tá sabida, hein, Dona Tula!
Tula: Eu observava os peão com a carga nas costas, atrás da cortina da cozinha. O corpo cansado de tanto colher e carregar espuma, ficava ainda mais triste quando deixava cair no chão. Aí era tronco e desespero.
Zé: Algodão é coisa leve, de sensibilidade pra lá de forte. Tem que ter mão que cuida, desde a plantação até o ensacamento. Tá vendo esse aqui? (mostra um pedaço de algodão) precisa ver se tá macio, firme e branco. Se tiver, quer dizer que a terra tá boa e que o tempo tá pro nosso lado (sopra o algodão).
Tula: É trabalho pesado pra produto leve.
Zé: Igual a vida.
Tula: Cê gosta das filosofia…
Zé: E as cria?
Tula: Tenho três, tudo em escadinha.
Zé: Assim é que é bom.
Tula: E tu? É cabra sem cordeiro?
Zé: Da minha linhagem só tenho eu.
Tula: Assim é que é bom.
Zé: Num carece de molecagem agora, melhor esperar um pouco.
Tula: Olha que a espera perde minuto…
Zé: E o que adianta ganhar uns trocado de minuto e perder um montante de hora?
Tula: Que?
Zé: Vamo trabaiá que daqui a pouco passa a vigilância. Os Barão fica de olho em peão preguiçoso, é castigo na hora.
Tula: E o que tem pra fazer agora?
Zé: Nóis tem que acabar esse canteiro e preparar a terra do próximo.
Tula: Vou te seguindo agora, depois eu pego jeito. Quando passei lá na mesa dos Barão, me disseram que eu aprenderia tudo. Estendi minha mão e recebi as roupas, as ferramentas e um relógio de bolso.
Zé: Pacote de trabalhador.
Tula: Minha mãe dizia pra mim observar as coisas. Dizia que o tempo aqui é diferente, que o fim do dia é também o fim das pernas e das mãos. Acho que esse relógio era do Manoel, quando recebi os ponteiros tavam tudo parado, perto do meio-dia.
Zé: É a hora que o corpo definha…
Tula: Daí mexi aqui, mexi ali e os bicho voltou a andar.
Zé: Pronto, a vida voltou a correr novamente.
Tula: Engraçado é que minha mãe também tinha um relógio, andava com ele sempre no pescoço
Zé: E onde ela tá?
Tula: Sumiu. Um dia veio pro campo e nunca mais voltou.
Pausa.
Zé: O meu sempre está embaixo da roupa (Zé mostra o relógio)
Tula: Pois então vou colocar no peito também. Agora é começar o trabalho, antes que a noite comece a cair
Zé: Disseram que esse ano a safra promete, que já tá tudo vendido e que nóis precisa produzir.
Tula: Então simbora colher a espuma, arar a terra e preparar as sementes.
Zé: E encher a pança pra seguir em frente!
Quarto quadro
Dois colhedores de algodão andam e conversam num campo branco.
Tula: Vê se anda rápido, cabra véio tonto! Desse jeito vamo chegar depois da hora de lá. Já disse mil vezes que os Barão não gosta que a gente perca os minutos.
Zé: E adianta a gente ganhar uns trocado de minuto, mas perder um montante de hora?
Tula: Tem mais de meses que você só sabe andar pra trás. Vê se aperta os passos e não fala mais mundo afora.
Zé: Tem doido pra tudo! Quando dorme sonha em acordar e quando acorda corre pra dormir. Se a vida não foi feita pra ser vivida, de que adianta ganhar os minutos? É do pouco que o quase chega ao fim.
Tula: Barriga de vento só de balão, a gente não tem tempo de esperar. Se quiser vida cheia, precisa gastar passo. Vamo logo que os Barão espera nóis!
Zé: Tá certo! (pausa) Será que hoje nóis consegue pular o muro?
Tula: Tem pra lá de meses que tu só sabe falar desse muro.
Zé: Mas a gente combinou que ia ver o que tem do outro lado.
Tula: Mas nunca deu certo, ninguém consegue subir pra ver o que tem.
Zé: Falta de tempo, a gente fica o dia todo na safra. Tem de dar certo, um dia o tempo sopra pro nosso lado.
Tula: A gente aqui é peão de campo. Tempo pra gente é tempo de gado. Dois bicho plantando e colhendo com o sol na cabeça, cuidando da espuma branca dos Barão. Não há de ter tempo pra descanso, que dirá olhar o muro.
Zé: Se a gente não arriscar, não tem como saber.
Tula: Bota essa luva que o algodão tá pra crescer.
Zé calça as luvas e dois começam a colher devagar os pedaços de algodão.
Zé: Eu juro que tento entender por que é que deu aparecer esse muro que cresce cada dia mais. Deve ser tão bonito ver o sol se despedindo atrás do campo. A luz deve bater na terra pro céu acender. Imagina ver o passeio do sol todo santo dia? Deve ser de uma belezura de dá gosto de trabalhar. Mesmo nóis, peão de campo lascado, teria um respiro no fim do dia e os zói todo iluminado.
Tula: E esse muro nunca que foi derrubado?
Zé: Parece que foi chumbado.
Tula: Mas então é muro grosso, de grossura bem massuda. Pra derrubar é difícil, só pulando pra ver o que é.
Zé: Quem pulou nunca mais voltou.
Tula: O que será que tem do outro lado, Minha Nossa Senhora dos Muro Alto?
Zé: Carece de ser coisa boa.
Tula: Se for coisa boa, nóis pula com cria, sonho e tudo.
Zé: Tu tá com a decisão agarrada com o absurdo.
Tula: Agora é você quem desistiu? Vai pular fora do barco?
Zé: Tô pensando como é que a gente faz pra não ser pego. Se os Barão pega nóis, não tem boca pra contar história
Tula: Guarda as palavras pra quando nóis pular.
Zé: Hoje eu tive um sonho. Sonhei que eu estava lá no céu, colhendo pedaço de nuvem, uma atrás da outra. Era tanta nuvem, mas tanta nuvem, que eu dava de voar em cima de tudo. O céu tava tingido de branco, e tudo parecia uma cama macia bem grande. Eu andava, pulava, corria, fazia bola de nuvem, soprava, comia… Era uma sensação de ter tudo o que eu queria. Teve um momento em que eu não vi mais nada, tudo ficou exageradamente branco. Até que uma nuvem se abriu e vi tudo lá embaixo. Tinha um carcará voando de um lado para o outro, não sabendo onde pousar. Lá embaixo também era tudo branco. Era tão bom ficar naquela branqueza toda, eu sentia uma paz no peito, pensamento leve, corpo descansado. Parecia que eu era outra pessoa.
Tula: Você e essa sua mania de nuvem, parece anjo caído do céu.
Tula vira-se de costas.
Zé: Era tudo tão leve… (Zé vai entrando dentro da plantação do algodão).
Tula: Simbora acabar com esse canteiro, peste! Senão, nóis não sai daqui hoje.
Zé: Tão macio… (Zé vai entrando dentro da plantação do algodão).
Tula: Essas aqui tão com as folhas grandes, precisa cortar devagar.
Zé: Tão sonho… (Zé desaparece no meio do algodão)
Tula: E tomar cuidado pra não sujar a espuma, isso aqui tem que tá branquinho.
Pausa.
Tula: Vamo logo peste, pega a tesoura.
Pausa
Tula: Vamo peste, o tempo tá curto! (vira-se) ué, cadê tu? Zé? Oh peste cadê tu? Não carece de brincadeira agora, nóis tem que terminar isso aqui. Zé! Aparece peste! Zé? (anda de um lado para o outro) Zé, para de brincar peste. Aparece! Zé? Cadê tu? Cadê tu? Zé!
Quinto quadro
Campo branco. Zé mergulhado na espuma.
Zé: Espuma. Movimento de dentro que gera vingança pra fora. Estado de tremor que vai desde a primeira lembrança à última palavra, sem remorso, sem culpa. Só safra. Ensacamento de solidões, mapeamento de fraquezas. Um corpo fadado ao uso e perdido na imensidão das surras diárias, tendo que escolher entre cantar e chorar. Morto pelos dias, definhado pelas horas. Espuma! Que corrói, que sangra, que mata, que apaga. Corpo roubado, configurado pro trabalho. Sem ampulheta interna avisando a hora de parar, de fugir, de falar. Sem consciência. Vigiado pelos olhos brancos. Enquanto tiver algodão pra crescer, vai ter mão preta pra colher. Moer até a última gota de existência, até o último segundo de atenção, até a talo de palavras coreografadas sob a língua da peste branca. Espuma! Pontilhado de gado, fadado ao desgaste, sem descanso. Morte lenta e assistida pelas mãos apontadas em todas as direções. Não sabe saída, não sabe entrada. Somente o horizonte sem vista, tampado pelo muro que separa a dúvida do direito de saber. Vertigem próxima aos olhos, embasada com a branquidão do campo. Campo de espuma. Espuma o corpo, espuma a alma, espuma a memória. Espuma!
Sexto quadro
Campo branco. Tula está colhendo algodão. Zé chega.
Zé: Fez quanto?
Tula: Terminando o canteiro de anteontem.
Zé: Anteontem?
Tula: Ou ontem… hoje não sei mais.
Zé: Ainda, peste?
Tula: Quanto mais algodão eu colho, mais ele cresce.
Zé: Temos que terminar isso aqui. A safra tá boa, tamo na melhor época…
Relógio de Tula apita.
Tula: Tem dia que esse relógio tá todo desregulado. Ajeito o bicho pra frente e o bicho volta pra trás. Parece que arrumo o amanhã de um ontem quebrado.
Zé: Tempo é um corpo que vive machucado. Vamos terminar isso aqui, temos um muro pra pular.
Tula: E vai dar?
Zé: Num tem volta, faz mais de ano que tamo nesse combinado.
Tula: Eu pulo e você olha.
Zé: Você olha e eu pulo.
Tula: Ê cabrunco!
Tula e Zé olham o horizonte.
Tula: Você tinha razão, parece que o muro fica maior a cada dia que passa. Daqui um tempo o céu vai desaparecer.
Zé: Se cobrir as espuma de cima, cobre aqui embaixo também.
Tula: Será que tem espuma atrás do muro? Será que tem peão trabalhando?
Zé: Se tiver deve tá igual nóis: definhando.
Tula: Hoje eu tive um sonho. Sonhei com dois carcará voando nas nuvens de um lado pro outro. Dois passarinhos pretinhos brincando de voar na espuma branca. Bico curvado, garra forte, olhar distante. Em um momento, um deles mergulhou na nuvem e sumiu. E não mais se viu. Sumiu. O outro procurou, procurou, procurou, mas não achou. Sumiu. Daí acordei, mas não abri os olhos na minha cama, acordei aqui no campo com roupa de trabalho, com ferramenta e espuma nas mãos. Acordei que sonhava. Daí olhei pro lado e você não tava aqui, tinha desaparecido. Eu chamei, gritei, chorei seu nome na espuma branca, mas você tinha sumido. Nunca mais que vi. Depois disso não me lembro de ter dormido. Foi como se eu estivesse continuado aqui.
Zé: Tá trabalhando demais, a espuma tá te consumindo.
Tula: E quando é que a gente trabalha de menos?
Zé: Nunca. Campo é morada de peão. Aqui o corpo trabalha, sem fala. Não pode parar, nem descansar. Aqui a gente trabalha até o tempo cair.
Tula: O que impede de ir?
Zé: Pra onde?
Tula: Sei lá…
Zé: Peão é peão em qualquer lugar. Meu pai dizia que a gente é gado que foi roubado de um lugar e solto em outro. A gente vive perdido sem saber pra onde ir, porque nada que tem aqui é semente da gente.
Tula: Se nóis tem chão de semente, nóis tem que achar a raiz.
Zé: Eu sempre quis. Juro! Plantava meus pés pra ver se minha pessoa brotava, mudava o percurso do meu relógio pra ver se o tempo parava, mas nunca deu de dar certo. Era pra cá que eu sempre voltava.
Tula: Não é possível que ninguém nunca tenha pulado esse muro.
Zé: Meu pai tentou, mas não foi até o fim. Perdeu as estribeiras e foi descoberto pelos Barão. Foi castigado. Tempo zerado!
Tula: Tempo?
Zé: Ganhou uns trocado de minuto…
Tula: Zerado?
Zé: E perdeu um montante de hora, de anos, de vida.
Tula: Que tempo?
Zé: Castigado pela espuma, de dentro pra fora e de fora pra dentro.
Tula: O que aconteceu com ele?
Zé: Espuma nas mãos, espuma na boca.
Algo voa no céu.
Tula: Olha lá Zé, os carcará do sonho. Tão voando nas nuvens.
Zé: Espuma nos olhos, espuma nos pés.
Tula: Que estranho… um deles tá muito agitado.
Zé: Espuma no estômago, espuma na cabeça.
Tula: Se não fosse nuvem, juraria que tá se afogando lá em cima.
Relógio de Tula apita.
Zé: Tempo zerado, vida zerada. Espuma que mata corpo, mata sonho, mata existência. Meu pai teve o tempo do relógio zerado. Meu pai foi zerado. Meu pai acabou com um sopro, como um dente de leão. Rápido. Fugaz. Colheu espuma a vida toda e pela espuma morreu.
Tula: Cabra, tem alguma coisa errada com aquele carcará.
Zé: Espuma de dentro pra fora e de fora pra dentro.
Tula: Tá agonizando em pleno vôo.
Zé: Morreu pela espuma. Tempo zerado. Corpo acabado.
Tula: Zé, parece que ele tá caindo…
Zé: Corpo acabado, corpo em rodopio ao nada.
Tula: Ele tá caindo, Zé! Ele tá caindo! Ele vai cair aqui!
Zé estende as mãos e agarra um pássaro preto e morto. Mostra o relógio embaixo da roupa sem números. Tempo zerado. Zé espuma. O relógio de Tula apita.
Sétimo quadro
Campo branco. Zé se prepara para colher algodão.
Zé: José das Graças, mais conhecido como Zé. 30 anos. Forte. Dentes limpos. Obediente e silencioso. Bom para pasto, colheita e serviços braçais de modalidade 5. Sozinho. Criado desde criança sob tutela de seu dono, de quem herdou os bons modos e aperfeiçoamento ao trabalho. Não reclama, não chora, não grita, não morde. Sem doença. Sem mãe. Sem pai. Sem memória. Compreende os comandos de sentar e deitar. Não olha no olho. Não toca. Grande resistência a sol e chuva. Come pouco. Experiente com o ramo, carrega em seu corpo diversas marcas de servidão à pátria. Ótima aquisição, avaliado pelos melhores compradores. Ganhou o concurso de roleta russa em primeiro lugar. À venda! Sem devolução, troca ou reclamação. Acompanha relógio e corrente com pouco tempo de uso. Dinheiro à vista, com possibilidade de negociação. A quem se interessar, favor comparecer na escada do largo paissandú às 8h. Compra imediata!
Oitavo quadro
Campo branco. Zé está colhendo algodão. Tula dorme.
Zé: Tula… Tula!!
Tula: É os Barão?
Zé: É teu sono. Tá dormindo em pé.
Tula: Queria mesmo é deitar, minhas pernas tão mole
Zé: Iiih, ficou contando estrela no céu ontem a noite?
Tula: Não, eu deitei pra dormir, mas sonhei que tava acordada. No sonho eu trabalhava no campo de espuma igual como eu tô agora, nesse momento. Fiquei cansada no sonho de tanto trabalhar. Acordei e vim direto pra cá.
Zé: Peão que não dorme não consegue plantar.
Tula: Tenho a sensação de que nunca saí do campo.
Zé: Nem tu, nem eu, nem ninguém. Peão mandado só sai daqui quando morrer.
Tula: Vamo trabaiá que os algodão tá pra crescer.
Relógio de Zé apita.
Zé: Conhece o fim do campo?
Tula: Fim do campo?
Zé: Um muro bem alto…
Tula: Que muro?
Zé: Pra lá depois dos canteiro. Coisa antiga, tem pra lá de 500 anos pra trás.
Tula: Tudo isso?
Zé: Sem tirar nem pôr. Cinco séculos de fim de campo que ninguém sabe como começou.
O relógio de Zé apita. Tosse.
Tula: E o que tem do outro lado?
Zé: Isso ninguém sabe.
Tula: Agora peguei curiosidade.
Zé: Dizem que lá fora acontece outro mundo. Minha vontade é subir pra ver o que é.
O relógio de Zé apita. Tosse mais forte.
Tula: Cabra, se for outro mundo mesmo, pego minhas cria e do no pé.
Zé: Assim na fé?
Tula: Sem pensar muito, pego o pouco e vou embora.
Zé: Os Barão não gosta que ninguém chega perto, é castigo na hora.
Relógio de Zé apita. Tosse mais forte.
Zé: Mas se organizar direito não tem erro, os Barão não vão nem saber.
Tula: Agora é você que parece tá cansado.
Zé: Cabra de cabeça virada igual tu tá pra nascer!
Tula: Zé, o que tá acontecendo?
Zé: Pois então tá arranjado, um dia nóis sobe e vê no que dá.
Tula: Zé! Para com isso!
Zé: Se aqui nóis planta nuvem…
Zé empurra e mergulha Tula pra dentro da plantação de algodão.
Nono quadro
Campo branco. Tula mergulhada na espuma.
Tula: Trancada e perdida no labirinto, com saídas para desesperos e entradas para solidão. Tempo que atravessa corpo e alma em um só lugar. Rios de nuvens que afogam qualquer corpo preto em boia de felicidade. Toca dos últimos a saber, sob proteção da divindade suprema em tatuar a história nas pernas, braços e estômago. Será que eu sei mesmo andar eu só copio os passos que me dão? Será que eu sei mesmo falar ou só coreógrafo as palavras que me ensinam? Onde é que estou dormindo? Por onde anda minha alma? Ficção escondida, realidade inventada. Tempo espiralar que escancara minha derrota e a derrota dos que me sucederam. O ontem que repete no hoje e que promete vir amanhã. Soldados de chumbo. Mas nêga quer olhar, nêga quer curiar. Saber o que a vida oferece, o que prometeram a ela. Sabe obedecer, mas também sabe cobrar. Forra que pensa, que sabe, que conhece assinatura. O buraco de soltura há de abrir mais uma vez. Espuma que nasce na alma, no pensamento, na companhia. Espuma que pesa, que esmaga, que mata. Toneladas de invisível do mais visível ser. Ponto de controle. Mira alta. Escondem o futuro, esquecem o passado, cozinham o presente. A gente sente um bocado de coisa dentro do campo, mas não tem tempo de viver. Só sente e vai embora. Espuma que multiplica peão, que apita relógio, que zera tempo. Tempo fadado ao desgaste, ao uso, ao desmanchar. E amanhã vai ter outro, e outro, e outro… não há tempo há perder. Mas tem que correr! Rasgar horizonte. Saída tem que encontrar. Enquanto tiver tempo de perna, haverá tempo de andar.
Décimo quadro
Campo branco. Tula e Zé ao lado do muro
Zé: Quero ver a coragem. Pula!
Tula: Você olha!
Zé: Pula!
Tula: Olha os vigia pra nóis não morrer.
Zé: Vai, pula!
Tula: Você vai vigiar?
Zé: Pula!
Tula: Promete que vai ficar aqui e olhar?
Zé: Pula!
Tula: Tô vendo onde coloco o pé e as mão…
Zé: Pula agora!
Tula: Cê tá me bombeando o coração. Preciso pensar.
Zé: Pula!
Tula: Para de apressamento!
Zé: Quero ver pular. Pula!
Tula: Desse jeito eu não vou conseguir.
Zé: Pula!
Tula: Para, peste
Zé: Pula vai!
Tula: Já disse pra parar!
Zé: Pula! Pula! Pula!
Som de tiros. Os dois se abaixam na plantação.
Tula: Que foi isso, Zé?
Zé: Espingarda, a maior delas.
Tula: Ouviram nossos passos?
Zé: Ouviram nossos pensamentos.
Tula: E os Barão vigia cabeça?
Zé: Vigia trabalho, vigia corpo, vigia alma.
Tula: Tem mais de ano que tamo nesse sobe e desce.
Zé: Faro de Barão nunca esquece.
Tula: E o que a gente faz agora?
Zé: Não tem pra onde ir, é ficar e esperar.
Tula: E se a noite cair?
Zé: É melhor o escuro do dia do que da vida.
Tula: A gente tava quase…
Zé: Chegar a quase não é chegar. Já viu relógio dar quase minuto?
Tula: Tempo nem é gente.
Zé: Aqui é. Tem sangue, tem veia, têm trás, tem frente…
Tula: Vamo seguir o combinado, não podemos desanimar agora.
Zé: Tem Barão andando pelo campo.
Tula: Tu tem eu, eu tenho você. De medo nóis num pode morrer. Nóis tem que cortar mato, quebrar corrente, abrir senzala.
Zé: As espingardas não dá ponto sem nó e nem tiro sem bala.
Tula: Você fala de um jeito acostumado, como se já tivesse vivido isso aqui. Como se fosse rotina…
Zé: Bem mais do que tu imagina.
Tula: Às vezes eu acho que você esconde alguma coisa.
Zé: Todas as coisas que poderia fazer se eu tivesse sopro.
Tula: Sopro? Que sopro?
Zé: Sopro de vida.
Tula: Do que você tá falando?
Zé: Eu poderia mudar o rumo dos ponteiro, o andar dos passos, a miragem dos zóio.
Tula: Tu tá com a cabeça agarrada no medo.
Zé: Já viu alma fora do corpo?
Tula: Já vi corpo longe da alma.
Zé: Ai se eu tivesse uns minutos a mais…
Tula: E o que adianta ganhar uns trocado de minuto…
Zé: E perder um montante de hora? Eu já sei!
Tula: Então cabra, bora cortar o vento.
Zé: Mas aqui não dá… tempo! Acabou, zerou, terminou.
Tula: O que?
Zé: Eles não deixam. Terminou, zerou, acabou.
Tula: Acabou o que, Zé?
Zé: A cabeça, o sonho, a chance! Já dizia meu pai: não sai em dia de contrato.
Tula: Do que tu tá falando?
Zé: Meu pai dizia que quando os Barão não conseguia fechar negócio, descarregavam a raiva dando tiro em qualquer peão que visse pela frente. Quando não matava dentro, matava fora. Meu pai vivia deitado, mergulhado no campo, esperando os Barão ir embora. Dizia que aprendeu com as histórias que meu bisavô contava na época dos nego sem forra. Fugir das fazendas, deitar no mato e fingir que era bicho. Os capitão caçava os nêgo a noite toda, rodava o campo com uma corda na mão, pronto pra laçar pescoço. Os nego ficava lá… aqui… lá… aqui… embaixo esperando os capitão ir embora.
Tula: Igual nóis, agora…
Zé: Não por muito tempo. Você tem razão, vamo pular!
Tula: Os Barão deve tá por aí ainda.
Zé: O muro também, aqui em cima.
Tula: E tem jeito, cabra?
Zé: Pra tudo dá-se um jeito, menos pra morte.
Tula: Tomara que nóis encontre a sorte.
Zé: Vamo combinar direito, pras ideia não sair do trilho. Vamo contar até três, levantar e pular o muro.
Tula: Nóis tem que conseguir, senão nóis zera o futuro.
Zé: 1..
Décimo primeiro quadro
Campo branco. Tula se prepara pra colher algodão.
Tula: Tânia Maria, mais conhecida como Tula. 25 anos. Moça prendada de modalidade 7. Conhece os serviços de casa e os serviços do campo. Criada sob tutela de seu dono desde criança. Cozinha bem, come pouco. Não reclama, não dorme, não grita. Se aperfeiçoou aos cuidados do patrão. Resistência a sol, chuva e descarregos. Sangra uma vez por mês, mas nada que atrapalhe seu serviço. Cuida das crianças como se fossem filhos seus. Dentes limpos, curvas formosas e cabelos presos. Sem família. Sem saudade. Sem choro. Sem memória. Treinada a dizer “sim” sempre que necessário. Sabe lavar, passar, costurar, cozinhar e bordar. Avaliada pelas melhores casas da região. Investimento a longo prazo. Pagamento em dinheiro, sem devolução ou reclamação. Possível negociação. A quem se interessar, comparecer no largo da memória no nascer do sol.
Décimo segundo quadro
Tula colhe algodão sozinha, colocando a espuma numa cesta agarrada ao seu corpo e assobiando uma música qualquer. Aos poucos, vai rindo da própria música que está cantando. Colhe o algodão com mais precisão. Ri mais alto. Olha para baixo como que vê algo. Ri mais alto. Tira um pássaro preto e morto da plantação de algodão e segura em suas mãos, rindo. Quando chega no ápice do riso, chora olhando para o pássaro. Grita!
Décimo terceiro quadro
Campo branco. Tula e Zé deitados ao lado do muro
Zé: 2..
Tula: 3!
Zé: Vai, sobe, rápido!
Tula: E se os Barão chegar?
Zé: Erro não há de dar, tu vai pular!
Tula: E o que eu faço lá?
Zé: Tu vai saber. Passo desconhecido é como roupa que não conhece corpo, aos poucos vai se ajeitando, achando lugar nas curvas.
Tula: E como você vai subir, quem vai te ajudar?
Zé: Pula!
Tula: Olha os vigia pra nóis não morrer.
Zé: Pula!
Tula: Você vai vigiar?
Zé: Pula!
Tula: Promete que vai ficar aqui e olhar?
Zé: Pula!
Tula: Tô vendo onde coloco o pé e as mão
Zé: Pula agora!
Tula: Tá quase…
Zé: Pula.
Tula: Quase lá…
Zé: Pula!
Tula: Pronto! Dá aqui sua mão.
Tula e Zé sobem no muro e se sentam de costas para o outro lado
Tula: E agora, Zé?
Zé: Agora é caminhar, tocar caminho.
Tula: Tô com medo de olhar.
Zé: Pra quem já viu de tudo, qualquer horizonte é paisagem.
Tula: Tenho medo de pular e não render
Zé: Se ficar é capaz de morrer.
Tula: Mas o que eu faço do outro lado, Minha Nossa Senhora dos Muro Subido?
Zé: Tu vai saber, cabra? Tu vai saber.
Tula: Zé, eu nunca sonhei em sair. Nem sabia que tinha como ir. Sempre achei que aqui fosse o meu lugar, colhendo espuma, desbravando o campo, fazendo tarefas em casa de Barão. Vida sofrida, mas já acostumada.
Zé: Você nasceu com olhos, mas desenharam o seu olhar. Você nasce com pés, mas desviaram os seus passos. Você nasceu com amor, mas te forçaram ao sofrimento.
Tula: Eu sou como tu, Zé. Tu é como eu. Se me fizeram esse tanto de coisa, você deve saber também.
Zé: Memória é pra quem tem. Corpo desgastado, carcaça em pensamento que aparece em vertigem de peão cansado.
Tula / Zé: Mas se a cabeça tiver parado no tempo? E se essa invenção de dias for doença de anos? Já vi peão amaluqueado das ideia que foi sacrificado pelos Barão. Num quero morrer no muro, num quero ser azarão.
Zé: Se tu morrer, eu morro também.
Tula: Será que eu sou tua invenção?
Tula / Zé: Será que tu é a minha redenção?
Zé: Saída pra solidão. Afinal a terra reflete o céu como ele é…
Tula (rindo): E não tem cabeça de mude de fé.
Zé: Você me criou dos pés à cabeça, cabra! Cada gesto, cada olhar, cada detalhe de um peão que poderia existir de verdade.
Tula: Queria tanto que você existisse, a vida seria mais fácil aqui dentro. Um peão pra confiar, pra conversar, pra gargalhar.
Zé: E tu fez tudo isso, cabra! Eu sempre estive aqui, porque você também estava. Tu me criava no começo do dia. Tu me criava no trabalho da tarde. Tu me criava no descanso da noite. Eu sou a sua memória mais recente, o seu fio de ancestralidade de presente. Desejo de passado mas que pode virar futuro. Na falta de lembrança, tu criou a sua. Poço de pensamento guardado há anos e desenhado no campo.
Tula (sarcástica): Eu nunca que deixei os Barão ver você! E nem que soubessem sobre você!
Zé: Tu me escondeu direitinho. Só aparecia quando tu queria.
Tula: Tu me ajudou a colher algodão de beira a beira.
Zé: Ou foi tu mesmo que fez a safra inteira.
Tula: Eu precisava de alguém pra olhar, pra não enlouquecer
Zé: Pra carregar andar, pro dia esquecer.
Tula / Zé: Tem dia que tudo o que peão quer, é viver. Respirar sem preocupação e angústia no peito. Sem angústia que não tem jeito. Sem relógio de ponteiro torto que apita a morte. Tem dia que peão precisa de sorte! Pra desviar da faca, da bala, da caça. Pra fugir da espuma, entrar na bruma, correr pra tempo novo, vida nova. Eu sou forra! Eu sou forra! E pra todo corpo preto de sangue derramado que tinge espuma branca, existe outro que levanta e expurga veneno de capataz. Seja no ontem devagar ou no amanhã fugaz. Por toda a eternidade e alma roubada. Até que não tenha nenhum peão preso em campo de colheita, quarto de fundo, trincheira de guerra. E aponta lança quem medo tem. Se não houver paz pra todo mundo, não haverá pra ninguém.
Tula: Tu me lembra ontem.
Zé: E tu me lembra hoje.
Tula: Não vou te ver amanhã, como sempre.
Zé: Nunca esqueça dos seus passos. Tempo é um instante ressurgente. Teu povo tá dentro de você e você tá dentro de muita gente.
Tula se levanta e vira para o outro lado. Observa o horizonte, sozinha.
Chuva. Breu.