Primeiras Dramaturgias
Joanna Mina
a
filhas de Obaluaê
a
minha avó materna Maria Ruth Vieira
a
escritora Ruth Ducaso
Dramaturgia escrita a partir de pesquisa em documentos históricos.
Personagens inspiradas em trajetórias reais.
Personagens:
Joanna Mina, mulher cis, negra, pansexual, africana; nascimento: 1712; lugar de origem: Costa da Mina, Benim, África; nome de etnia: Niponissem Duduá; nome de batismo cristão: Joanna Machada; nome popular: Joanna Mina; nome religioso no Candomblé: Nissem Obá, filha de Xangô; idade: 35 anos; alforriada: Termo de Cachoeira/Recôncavo da Bahia; lugar da morte: Vila de Biribiri, próximo à Vila de São João del Rei, na capitania das Minas Gerais; ano da morte: 1747; causa da morte: assassinato.
Bárbara Poderosa, mulher trans, negra crioula, sapatão, americana; nascimento: 1712; lugar de origem: Sergipe del Rei, Brasil; nome definido por ela: Bárbara Poderosa; idade: 35 anos; alforriada na capitania das Minas Gerais; lugar da morte: Vila de Biribiri, próximo à Vila de São João del Rei, na capitania das Minas Gerais; ano da morte: 1747; causa da morte: assassinato.
Anna, mulher cis, branca, lésbica, americana; nascimento: 1714; origem: Termo de Cachoeira/Recôncavo da Bahia, Brasil; filha da abastada família Marinho Falcão; idade: 55; lugar da morte: Reclusório de Mulheres Henriqueta de Bourbon, Ilha de Itaparica; ano da morte: 1769; causa da morte: nó nas tripas.
Gonçalo, homem cis, branco, hétero, americano; nascimento: 1707; origem: Termo de Cachoeira/Recôncavo da Bahia, Brasil; nome de batismo: Gonçalo Marinho Falcão; idade: 65; lugar da morte: Termo de Cachoeira/Recôncavo da Bahia; ano da morte: 1772; causa da morte: suicídio.
Voz off, papai (patriarcado).
Objetos marcadores das personagens em cena:
Joanna Mina – um largo pano de estampa vermelha disposto no ombro direito;
Bárbara Poderosa – balangandãs (uma corrente de prata com um peixe, um machado de Xangô e um cachorro);
Anna – um quadro pequeno (branco ou verde), um lápis de quadro ou giz e um tecido branco rendado, de cobrir a cabeça;
Gonçalo – uma bengala.
Desenhos de Cena:
Teatro semiarena, palco com base redonda de madeira, sobre a base quatro cadeiras posicionadas nas marcas do relógio (12/3/6/9). Na posição 12, Joanna Mina, 3 Anna, 6 Bárbara Poderosa e 9 Gonçalo. As idades das personagens em cena são as idades de morte de cada uma delas. E como elas morreram em épocas diferentes da idade que conviveram nas histórias que rememoram, isso provoca uma disforia nas narrativas contadas em cena – o que inscreve o corpo como a narrativa da voz. Cada personagem tem a posse do que conta e não necessariamente por ter vivido, posto que é uma memória, mas porque diz, porque pode ali narrar a sua história. Joanna Mina é uma peça sobre o poder de quem pode narrar. E como esse poder, numa sociedade racista, machista e LGBTfóbica é relativo, ela é uma farsa, uma peça pífia. Mas o importante não é isso. O mais importante é que Joanna Mina é um momento de emoção para iludir nossos corações.
I Ato
O palco é iluminado.
As personagens entram em cena, Joanna Mina com um pano vermelho majestosamente posto num ombro, Bárbara Poderosa com o balangandã na cintura, Anna com o quadro na mão e Gonçalo com a bengala.
Elas caminham até o palco animadas, interagem com a plateia, aplaudem, caminham como se estivessem entrando num ringue, numa festa, num desfile, num xirê, como se caminhassem numa feira-livre ou numa procissão, sentam-se em suas posições. Ouve-se a Voz off animada e sarcástica. As personagens olham o público, sorriem, se arrumando nas cadeiras, se exibindo para a plateia.
Voz off: Boa noite, senhores! E senhoras! Ou senhoras não merecem o boa noite? Será? Ah! Elas já estavam incluídas no boa noite senhores! Mimimi! Será? Essa noite construiremos sonhos! Falaremos de amor! Estão preparadas? Vamos lá? Relaxem! Aproveitem a noite! A festa é nossa! É brasileira! É brasileira! Vamos lá?
A luz no palco diminui e vê-se Joanna Mina, sem o pano,levantando-se,de pé, sorrindo, andando na base de madeira.
Joanna Mina: Que idiota (risada), esse que ouvimos é papai (risada). Papai! Que idiota (grito), papai, eu te odeio seu pau no cu, sua bosta, sua merda (gritando), sua merda (gritando alto), merda!
Silêncio.
Foco de luz em Joanna Mina, que está se arrumando, colocando o pano, respirando,recuperando a voz, séria, muito séria.
Joanna Mina: Sou Joanna Mina, Nissem Obá, filha de Xangô!
Joanna Mina começa a chorar. Foco de luz se amplia até Bárbara Poderosa, que vai ao encontro de Joanna Mina e pelo braço a encaminha de volta à sua cadeira.
Bárbara Poderosa: A cadeira de Nissem Obá, senta meu rei, descansa do tempo. (Joanna Mina fica sentada, séria, triste, foco de luz apenas em Bárbara Poderosa, com raiva, olhando para o alto). Aparece, seu merda, aparece aqui seu bosta, seu merda (silêncio). Essa voz de merda que vocês ouviram (olhando a plateia) é papai, uma desgraça (olhando para Joanna Mina), Nissem é minha mãe. Niponissem Duduá foi sequestrada menina-criança na Costa da Mina e aqui (pausa) no Brasil viveu cativa na casa dos Marinho Falcão.
Anna levanta olhando a plateia, o quadro fica ao lado de sua cadeira.
Anna: Eu sou filha dos Marinho Falcão (voz baixa, olhar cansado), essa voz que vocês ouviram manda em todas nós, é papai, mas não é dos Marinho Falcão (confusa), ou é? (foco de luz em Anna, Bárbara Poderosa segue de pé) A luz agora acendeu em mim (demoradamente olhando os braços, cabelos, se senta na beira da base de madeira, próxima a sua cadeira), a luz em mim, é sol, é? É papai? (grita) Papai!
Bárbara Poderosa se aproxima de Anna,entra no seu foco da luz e fala encarando a plateia.
Bárbara Poderosa: Essa história é um drama e quem vai lhes contar essa desgraça sou eu (Bárbara Poderosa se movimentando, indo a cada personagem e o foco de luz lhe seguindo).Nissem nasceu no Benin. Niponissem Duduá foi batizada por seus sequestradores, Joanna Machada, conquistou nome de liberta, Joanna Mina, e é minha senhora Nissem Obá (com pressa), filha de Xangô. (ligeira) Essa é Anna. (gritando) Esse é Gonçalo. Um moleque, moleque, moleque, moleque.
Foco de luz em Gonçalo, que sentado grita atordoado.
Gonçalo: Não, não, não, não, não, não, não (para).
Palco iluminado. Personagens em silêncio e ouve-se a Voz off em tons de pai condolente e atencioso.
Voz off: Filho! Filho! (agitado) Homem, pare. Homem, atenção. Posição de homem! Filho, agora! Faça posição de homem. Filho, o pessoal aí olhando, filho.
As mulheres riem. Gargalham. Joanna Mina sentada, sem o pano, em posição de realeza.
Joanna Mina: Desgraçado, cala a boca, seu vômito de merda (todas riem. Gonçalo não entende nada, foco de luz em Joanna Mina). Vivi cativa na casa dos Marinho Falcão. Fui mulher de Gonçalo (com tesão). Fui mulher. Mesmo quando ele casou com Anna. Eu e ele seguimos no quarto principal da casa. Ela em outro cômodo. Ali ele já tinha me dado a carta de alforria. (irônica) Mas um Senhor Marinho Falcão amando uma africana? Não podia. Que se casasse com a prima. A menina, Anna, chegou com 15 anos. Filha de cobra (pausa), vira escorpião a qualquer hora do dia. Gonçalo me deu a carta. Eu comecei a tramar minha saída (triste, abaixa a cabeça).
Foco de luz em Bárbara Poderosa, historiadora irônica, que está de pé e alcoviteira.
Bárbara Poderosa: Aí mamãe se apaixonou por Anna. (esperta) Ai, Anninha, delicinha. Será que Nissem não sabia da criação fantasiosa do escravismo? Da comoção que sentimos por pessoas brancas em posição de fragilidade, que não é! E da raiva que sentimos por pessoas negras em posição de exclusão? (olhando Nissem com raiva e gritando). Não sabia não, porra? (explicativa para plateia) Não, não sabia. Ela se apaixonou pela sinhazinha branca. As duas começaram a se agarrar em toda parte da casa. Até que teve aquele dia que elas estavam trepando no chão da cozinha da casa grande, e chega o corno, Gonçalo. Que grita: estão brigando? E elas duas (acusando), descaradas, começam a se xingar para fingir uma briga. Sua cara de buceta. (risada). Uma disse a outra. Mas o sistema escravista não é menino novo e o escorpião salta lá. (Bárbara Poderosa gritando e correndo e saltando na base de madeira) Sua negra, negra, negra, negra, negra, negra, negra, negra. Escrava, escrava, negra escrava. (Parada, respirando, foco de luz parado em Bárbara Poderosa,que calma recomeça) Nessa hora, o homem branco saca do bolso do vestido de Joanna Mina sua carta de alforria, separa as duas e obriga que Anna ouça a leitura de toda a carta como num pregão. O som daquelas palavras entra no ouvido da branca como alicate. Era raiva daquele homem nojento o que ela sentia (aponta Gonçalo), seu tio, que lhe obrigara ao casamento e que ainda comia sua mulher.
Foco de luz em Anna.
Anna: Joanna era minha. Só minha. Quem era ele ali pra entrar em defesa de minha mulher?
Foco de luz em Bárbara Poderosa, historiadora analítica, que fala explicativa para a plateia.
Bárbara Poderosa: E o erro? (para Anna) E o erro, desgraça? (gritando) Porra, escravismo não é amor! (explicativa para a plateia) Eu te amo, te amo, te amo, mas na hora da briga, tu é a negra escrava, (irônica)e depois, oh, meu amor, foi sem querer.
Palco iluminado. As quatro sentadas, viram-se para dentro do círculo.
Joanna Mina: Eu te amei, Gonçalo.
Gonçalo: Meu único, amor, foi tu, Joanna.
Anna: Joanna, perdão.
Joanna Mina: Eu te amei mais, Anninha. Mas eu nunca poderia aceitar aquelas tuas palavras. Tua ofensa. Tua reprodução do teu mesmo lugar. O que eu amei em vocês foi meu sonho de liberdade. O que vocês amaram em mim? Foi a diversão? A ansiedade que vem até a garganta e balança o coração? O rubor no rosto? A vida que assanha e mela nossas pernas empurrando a gente pra frente? (gritando) Mais vida, vai, mais vida, vai, mais vida. Se eu ficasse ali, eu morreria lhes dando de mamar. Mesmo gozando, eu apenas repetiria o mesmo lugar das mamães amas (falando pra Anna). Teu grito, me partiu. (para o público)Eu me movimentei me rejuntando e parti. Eu saí da casa dos Marinho Falcão. Eu era liberta. Como ele gritou para que sua mulher ouvisse. Ele precisando confirmar minha fala. Ela me ofendendo.Essa mulher que eu amava. Aquele homem com quem fiz acordo para comprar minha caminhada. Saí do Termo de Cachoeira para a Vila de Santo Antônio do Recife e lá entrei na profissão de mulher de caminho, vendedora de tecido e caminhei até aVila de São João del Rei.
Ouve-se a Voz off, agitada.
Voz off: Todos aí estão mortos, todos, todos, vocês não ouvem ninguém, não veem nada, (gritando) parem de ouvir, essas pessoas não existem. (falando baixo) essas pessoas querem me destruir (silêncio), parem, não me matem, elas querem me matar, (acelerado) sim, sim, sim, sim. Elas querem me matar. Parem!! Não me matem.
Bárbara Poderosa: Que perturbação!
Voz off: Parem, (deprimido) parem, parem.
Gonçalo: Papai.
Voz off: Parem! São elas! São elas!
As quatro personagens, em coro, gritam: Cala a boca!
Foco de luz em Bárbara Poderosa, que se levanta até Joanna Mina.
Bárbara Poderosa: Na capitania das Minas Gerais, minha mãe foi parar na Vila de São João del Rei, onde me conheceu. Onde plantou seu axé. Onde nos amamos mais, num foi, mamãe?
Foco de luz em Joanna Mina, que parece triste.
Voz off: O que mais aconteceu com vocês em Minas? Conta! Revela.
Joanna Mina: Pisei em Minas, já era Mulher de Caminho. Já tinha trato nas costas.
Bárbara Poderosa fala em cochicho para Joanna Mina.
Bárbara Poderosa: A desgraça gritou que estamos mortas. Tu, ouviu?
Joanna Mina fica de pé, com o pano posto.
Joanna Mina: Ouçam bem, todas vocês, nós não morremos, querem nos matar? Matem, matem, matem, matem e convivam com nossas vidas para sempre. (Aponta o seu assento para Bárbara Poderosa. Bárbara Poderosa senta. Joanna Mina apontando Bárbara Poderosa) Bárbara Poderosa, nasceu no Brasil, em Sergipe del Rei, no cativeiro. É filha legítima dos africanos Antonio Benguela e Maria Gomes do gentio da Mina, que compraram sua carta de alforria quando a menina era de 7 anos. Mas, mesmo liberta, Bárbara precisou abrir processo para comprovar que era livre. Bárbara tinha 21 anos quando pegou na mão a sua carta de alforria. Nessa hora ela também quis que ficasse registrado que a partir dali ela seria nomeada, por ela mesma, Bárbara Poderosa.
Palco iluminado. Gonçalo e Anna aplaudem. Bárbara Poderosa, historiadora exausta, fica de pé.
Bárbara Poderosa: Parem, parem, parem, seus merdas (para vários lados), merdas, merdas, merdas. O que vocês aplaudiram? O tempo que passei em cativeiro sendo liberta? Horas intermináveis de trabalho? A consumição e humilhações do processo para provar que meus pais já haviam pagado por minha liberdade? O nome que não era o meu? Sabem quantos nomes nos dão que não são nossos? (soletrando) Esses nomes inteiros não são nossos. São nomes do papai. Nomes da desgraça. Nomes dos infernos. Mas não são nossos. Renomear é nosso princípio.
Gonçalo e Anna recomeçando os aplausos.
Gonçalo eAnna: Poderosa é ela, poderosa, poderosa, diva, maravilhosa, rainha é ela, poderosa, poderosa, poderosa!
Bárbara Poderosa para Joanna Mina.
Bárbara Poderosa: Mamãe, eu não sei mais o que fazer.
Joanna Mina: É a solidariedade, minha filha, uma forma de vida muito apreciada pelos brancos.
Voz off gargalhando.
Voz off: Homem, meu filho, é tua vez, toma essa história, explica aí o que ninguém entendeu, faz um resumo. Homem, diz aí homem, levanta-te e anda, meu filho, tu é minha imagem e semelhança! (As três mulheres gargalham). Filho (voz nervosa), filho! Olha aqui, eu não aguento mais vocês. Vocês estão destruindo minha vida. Eu não tenho mais paz para dizer nada. Estão me ouvindo? Ouçam bem.
Luz no palco diminuindo progressivamente. No breu Gonçalo sussurra.
Gonçalo: Joanna, meu amor, sinto falta de tua pele, teu cheiro, tua voz no meu ouvido, aquela cantiga que cantamos juntos no rio, Na. Eu te amo, Joanna, não sei mais o que fazer quando acordo e não te vejo na cama. Nissem?
Joanna Mina: Não me chama assim.
Gonçalo: Eu te amo, Nissem. Amo o som do teu nome, Niponissem Duduá, amo tua corte Obá. Sou teu devoto. Sou teu. Quero repetir teu nome.
Joanna Mina dengosa.
Joanna Mina: Não.
Gonçalo: Niponissem.
Ouve-se um gemido de Joanna Mina.
Gonçalo: Sou teu, Obá.
Joanna Mina: Gonçalo.
Gonçalo: Sou teu. Teu devoto, teu servo, teu.
Joanna Mina: Gonçalo.
Gonçalo: Joanna, acabemos com essas distâncias, agora tu dormirá aqui nesse quarto todas as noites.
Joanna Mina: Gonçalo.
Gonçalo: Minha vida é tua, meu ouro.
Foco de luz em Joanna Mina.
Joanna Mina: Ele disse, meu ouro. Claro que sou o ouro dele! Se sou peça de valia dessa casa!
Breu.
Gonçalo: Joanna? Joanna? (gritando) Joanna! (gritando) Joanna! (chorando) Joanna, não entendo por que você não me quis. Joanna, você me deixou, Joanna? Joanna, você foi embora? (grito) Joanna!
Foco de luz em Anna, que parece triste.
Anna: Joanna foi embora depois daquela nossa briga. Foi no começo de abril. Naquela briga aquele xingamento era mentira, era brincadeira, era pra ele acreditar que brigávamos, era pra ele não perceber o amor meu e dela. Mas eu não sei disfarçar o amor. Eu não saberia o que fazer. Eu não soube o que fazer.
Foco de luz em Joanna Mina.
Joanna Mina: Você soube o que fazer sim, você fez, você se colocou no seu lugar: mulher branca, dona da casa e proprietária das peças escravizadas. Quem ficou sem saber o que fazer foi eu. E o amor que eu sentia? E todos os cuidados que te dediquei?
Foco de luz em Anna.
Anna: Joanna, você dormia com meu marido.
Foco de luz em Joanna Mina.
Joanna Mina: Ah! Marido? Ele não era o tio que te abusou?
Foco de luz em Anna, que está chorando.
Anna: Ele me abusou.
Breu.
Joanna Mina: Anna, eu quero chorar. Quero parar pra chorar e não posso.
Palco iluminado. Gonçalo aparece de pé, com a bengala, e começa a falar explicativo para a plateia.
Gonçalo: O que estamos vendo aqui são duas mulheres que se amaram e que sofrem pela condição de serem mulheres, sofrem as opressões de gênero, mas nada é simples, pois discutir gênero não é simples. Sim, senhores, não é simples.Vou lhes revelar (gestos fortes de pastor em pregação): nem todas as mulheres são iguais. Isso, exatamente o que lhes digo.Quer dizer, existe aqui a interseccionalidade, ou seja, Anna e Joanna não são iguais. Isso, exatamente, isso mesmo. Quer dizer, Joanna é mulher, sim, senhores. Joanna é mulher, mas, olha só que genial, é uma mulher negra (voz de apresentador de tv programa policial de entretenimento diário), uau! Gênio isso. Quer dizer, ela não sofre as opressões de ser mulher do mesmo jeito que Anna, uau! (beija o próprio ombro). Quer dizer, Anna é uma mulher branca e, preparem-se agora à revelação: as duas reproduzem lugares sociais da sociedade escravocrata, mas de maneiras e situações diferentes.
Ouve-se aplausos da Voz off.
Voz off: Viva! Bravo! Bravo, viva, viva! Agora sim, filhão! Isso aí! Explicou tudo, falou bonito, isso aí, nem precisou de universitárias, elas são a balbúrdia. Filho, mulheres na cozinha. Homens comendo a vizinha (risada), rimou.
Foco de luz em Bárbara Poderosa, historiadora exausta.
Bárbara Poderosa: É um nojo, misturado com lamento, eu não sei onde vamos parar.
Foco de luz em Anna.
Anna: Ele é um abusador. (Nojo e revolta) Me entregaram a esse homem, que é meu tio, eu menina. Minha mãe, Antonieta Pereira Sodré Alcunha e Silva Marinho Falcão Tal e Qual, foi violentada também. Olha o tanto de sobrenome de homem, macho encarcando a nossa geração que ela tem! Eu sou Anna só, só Anna, o Marinho Falcão me entregou ao seu irmão para garantir a posse da herança familiar. A preta Joanna já estava dentro do quarto de Gonçalo, foi o que ouvi quando fui abandonada naquela casa. No meio da merda, daquela miséria, da minha vida, eu me apaixonei. Aquela mulher, aquela buceta era minha. Eu amo Joanna Mina e seu reinado. Eu beijava cada pedacinho dela, ela inteirinha, eu chupava minha mulher. Minha mulher! (triste) Que não era minha.
Foco de luz em Joanna Mina.
Joanna Mina: A posse marca minha história. Eu fui sequestrada e vendida como peça. Eu não posso ter uma relação amorosa que eu não possa problematizar todas essas coisas.
Foco de luz em Bárbara Poderosa, analista política.
Bárbara Poderosa: Existe cura?
Foco de luz em Gonçalo, que segue explicativo.
Gonçalo: Esse assunto é mais complexo, o que é comprovado dizer pela…
Voz off: Dá-lhe filhão, é isso aí! Explica essas coisas aí, desse mimimi, a essas desgraças.
Foco de luz em Bárbara Poderosa.
Bárbara Poderosa: Oh, macho, cala a boca, psiu, xiiiiiii (soletrando), calado.
Foco de luz em Joanna Mina.
Joanna Mina: Anna, eu te amo. Mas não sou tua. Ser tua me traz a memória da posse que preciso reagir. Precisamos reagir à posse, Anna. A toda posse. Precisamos viver nossas liberdades. Meu bem, eu fui embora. Meu bem, eu precisava seguir fazendo escolhas. Meu bem, fazer escolhas é meu lugar de liberdade.
Foco de luz em Anna.
Anna: Quando tu foi embora, alguma coisa eu entendi. Tua voz e nossas conversas sobre eu ser branca e tu ser negra ficaram perturbando, perturbando minha cabeça. Joanna Mina, eu quero te agradecer. Eu aprendi com teu voo de liberdade que em lugar diferente eu também poderia voar e foi daí que abri o processo contra Gonçalo. Eu queria sair daquela casa.
Breu.
Sons de vários tiros.
Silêncio.
Silêncio.
Silêncio.
Silêncio.
Silêncio.
Silêncio.
Silêncio.
O palco é iluminado.
Todas as personagens estão sentadas em suas cadeiras e olham o público.
Silêncio.
Novos sons de tiros.
Todas as personagens estão sentadas em suas cadeiras e encaram o público.
Silêncio.
O palco segue iluminado.
Anna: Eu abri pedido de separação e me libertei do Gonçalo Marinho Falcão. E consegui a liberdade daquela casa. E fui viver na Cidade da Bahia no solar dos Brandão Pereira Marinho Falcão Tal e Coisa.
Breu.
Foco de luz em Bárbara Poderosa, que aparece levantando-se.
Bárbara Poderosa: É um nojo, misturado com lamento, eu não sei onde vamos parar. Quer dizer, de uma casa pra um palácio. (Explicativa para a plateia) Bem, até aqui, creio que vocês já conseguem ter um excelente entendimento sobre questões de raça, classe e gênero. Observem que as questões de gênero, macho e fêmea, também se flexionarão sobre as questões de orientação sexual, que é outra coisa, ou melhor, é mais uma dobra de tantas coisas, afinal, não somos simples. Mas é o que temos aqui e é indispensável que observem.
Gonçalo entrando no foco de luz de Bárbara Poderosa.
Gonçalo: Anotem! (Gesticulando em direção à plateia) Anotem, anotem, a fala dela é confusa, anotem. (para Bárbara Poderosa) Posso explicar? Não, não, presta atenção (para a plateia), anotem, anotem…
Bárbara Poderosa tomando o centro do foco de luz.
Bárbara Poderosa: É um nojo, misturado com lamento, eu não sei onde vamos parar.
Gonçalo entrando no foco de luz de Bárbara Poderosa.
Gonçalo: Eu só estou tentando ajudar.
Bárbara Poderosa: Macho, (soletrando) eu não preciso de sua ajuda. (Voltando ao foco de luz) Eu vou falar e você vai calar, (com intensidade) não serei interrompida, não aturo interrompimento do público dessa casa e não aturarei de um personagem que não sabe ouvir a posição de uma mulher viva, eleita para estar aqui, agora, nesse palco e falar. E eu falarei¹.
Nervoso, o papai, Voz off, interrompe a cena.
Voz off: Aí filho, isso aí que não pode, filho, isso aí, não, filhão! Filhão!? Não pode.
Joanna Mina: Cala a boca.
Nervoso, o papai, Voz off, interrompe a cena.
Voz off: Aí filho…
Anna: Cala a boca.
Foco de luz segue em Bárbara Poderosa, que segue explicando para a plateia.
Bárbara Poderosa: Bem, até aqui, creio que vocês já conseguem ter um excelente entendimento sobre questões de raça, classe e gênero. Observem que as questões de gênero, macho e fêmea, também se flexionarão sobre a questão de orientação sexual, que é outra coisa, ou melhor, é mais uma dobra de tantas coisas, afinal, não somos simples. Mas o que temos aqui, e é indispensável que observem, é um pai fudido, que nem corpo vivo entre nós tem, mas que quer garantir, por aparição vocal, um lugar de poder de um macho decadente, idiota, fraco, mas que ele sustenta com elogios rasteiros e discurso de imagem e semelhança. Machos, calem a boca! Enfiem seus discursos de merda no rabo. Escutem! Nossos corpos estão vivos. Eu estou aqui há um ato inteiro tentando contar a história de Joanna Mina.
Breu.
Gonçalo:
Nissem, te amo, não me deixa nunca.
II Ato
Breu.
Ouve-se Joanna Mina chorando.
Joanna Mina: E a criança? (Berrando) E a criança?
Foco de luz em Gonçalo, que parece apavorado.
Ruído.
Palco todo iluminado.
Ruído.
Joanna Mina chora.
Silêncio.
Bárbara Poderosa olha acusando Gonçalo.
Silêncio.
Anna segura o ventre como se sentisse uma dor.
Por segundos, o foco de luz fica inteiro na plateia da frente de Gonçalo.
Silêncio.
Breu.
Foco de luz em Joanna Mina, que aparece de pé e berrando.
Joanna Mina: Eu não consigo andar com esse feto amarrado a meus pés.
Luz baixa e amarelada em todo o palco.
Silêncio de luto de todos os personagens.
Foco de luz baixa em Joanna Mina.
Bárbara Poderosa vai até o foco de luz de Joanna Mina, a abraça e, após o abraço, lhe estende a mão.
Bárbara Poderosa: Mainha, caminha. Minha mãe, vem cá. Niponissem, anda.
Bárbara Poderosa vai caminhando bem devagarinho conduzindo Joanna Mina pela mão. Joanna Mina caminha com passinhos bem lentos e a luz no palco lhes acompanhando.
Voz off: Oooh, inútil! Olha aí elas, filhão! (Animado) Filhão! Toma a vez, filhão!
Silêncio.
Silêncio.
Em cena elas seguem o caminhar.
Silêncio.
Silêncio.
Voz off: Filhão, (foco de luz agora também em Gonçalo) ei! Quem é o meninão de papai? Vai, touro valente, levanta e mata!
Joanna Mina segue chorando.
Joanna Mina: E a criança? (Berro) E a criança? Eu não consigo andar com esse feto amarrado a meus pés.
Gonçalo, chorando, joga-se aos pés de Joanna Mina.
Gonçalo: Perdão, perdão, perdão.
Anna começa a chorar e caminhar como rezando uma ladainha. A luz no palco fica uma luz só, fraquinha e amarelada, que ilumina a todos em cena até a plateia. Anna tira do bolso um lencinho branco pequeno de renda e cobre a cabeça e segue a ladainha. Ela anda ao redor do palco choramingando.
Bárbara Poderosa segue guiando Joanna Mina, que tenta andar com Gonçalo agarrado ao seu pé.
Gonçalo, aos pés de Joanna Mina, fala baixinho.
Gonçalo: Perdão, perdão, perdão.
Bárbara Poderosa grita soltando a mão de Joanna Mina.
Foco de luz apenas em Bárbara Poderosa, girando em seu próprio eixo, fazendo movimentos da base até os ombros, pés em base no giro e ombros e cabeça guiando o giro sobre si. Cabeça em curva para o alto e gritando começa a falar.
Bárbara Poderosa: Eh! Mãe! Solta! Solta! Solta! Mãe, solta! Mãe, o que tu arrasta não é nascimento morto. É a lembrança podre daquele tempo. Tá podre! Tá podre! (Bárbara Poderosa caminha encurvada, por entre os personagens, como se tivesse parado com a coluna na posição da curva de um giro sobre si. O foco de luz vai acompanhando-a). Tá podre, larga, larga, solta, tá podre, deixa, deixa, deixa, deixa, (grito maior e alongada) deixa!
Palco iluminado.
Joanna Mina chora alto, arrastando Gonçalo.
Voz off ri descontrolado, envergonhado de ver o macho no chão.
Joanna Mina, sorrindo, balança o pé se soltando de Gonçalo, como se experimentando alguma liberdade.
Gonçalo, de deitado que estava, fica ajoelhado.
Anna para a ladainha e volta para a sua cadeira.
Joanna Mina caminha até sua cadeira, senta em movimentos de realeza, coloca o pano e começa a narrar. O foco de luz fica em Joanna Mina e Gonçalo volta à posição deitado. Todas as personagens viradas para Joanna Mina a escutam.
Joanna Mina: E foi assim, depois daquela disputa na cozinha, que eu preparei minha saída daquela propriedade. Ali, eu já tinha segurado na mão aquela menina morta. Gente que ainda não era. Gente que se viva não poderia ser. Aquela criatura cresceu algum tantim aqui em meu ventre. Era dele. Ele alegaria posse? Eu entristeci de morte. Fiquei segurando aquela minha vida que não criei maior conhecimento.
Foco de luz se expande até Gonçalo, que no chão tenta se reerguer, chorando, rindo, humilhado, querendo ser, diz, chora, grita.
Gonçalo: Vai nascer!
Voz off: Não! Não! Não! Morte à mestiça!
Gonçalo cai novamente ao chão e se contorce.
Foco de luz fica em Joanna Mina.
Joanna Mina: Nesse tempo, na propriedade, era eu só no quarto do senhor. Gonçalo pressentiu minha falência naquela tristeza e inventou toda sorte de presente. A menina não existiu mais. Foi morte. A culpa de Gonçalo foi minha carta de liberdade. Ele estendeu, em minha mão, minha carta de alforria. Eu soube da menina em sonho. Aquela alegria, aquela morte, aquela liberdade, tudo isso foi pólvora. E foi desse assombro que Anna chegou. Aquele senhor estava impressionado demais com a negra. Anna chegou porque aquele homem branco de terras não poderia assumir uma esposa Mina. Anna chegou para ilustrar a propriedade. Ela chegou e eu a amei. (Olhando para Anna) Eu te amei e acreditei em uma vida nossa juntas.
Gargalhada de Bárbara Poderosa e da Voz off.
Gonçalo se retorcendo no chão engongado.
Joanna Mina: Eu pensei mesmo em futuro. (Silêncio). Eu amava, Anna, tanto. E ela me dizia que sim. (Para Anna acusando) Tu já tinha em planejamento o pedido de separação de Gonçalo. E não nossa fuga. Não foi minha saída que fez tua vida impossível.
Foco de luz em Bárbara Poderosa que fala para a plateia.
Bárbara Poderosa: A vida dela, como Sinhá da casa grande era difícil? Avaliem! Então, a senhora decide ir reinar no palacete da cidade da Bahia.
Gargalhada da Voz off.
Foco de luz amarelo em todo o palco.
Joanna Mina: Arrumei minha saída da fazenda com a ajuda de Carmelita e Antero. Carmelita era liberta, vendia tecido e, vez ou outra, aparecia a trabalho no Termo de Cachoeira. Antero era seu contratante. O negócio do tecido era dele. Ele viajava para a compra do pano na Vila de Santo Antônio do Recife e distribuía as peças pra venda. Eu expliquei a situação à Carmelita e disse que queria ter um negócio de venda. Eu tinha ajuntado da roça de inhame e quiabo e de presentes de Gonçalo, algum valor de sustentar tempo. Aquilo tudo era futuro eu sabia. Tudo ajustado. Esperei a primeira segunda-feira de Abril e parti.
Gonçalo no chão se espreme em posição fetal e começa a chorar.
Anna fazendo expressão de dor começa a falar.
Anna: Para, eu não aguento mais. Eu não quero mais recordar aquela manhã. Depois que Gonçalo flagrou nosso amor na cozinha, nunca mais nos tocamos. Eu sinto falta do teu cheiro. Tua pele fresca depois do banho. Tuas palestras. Eu secando teu corpo. (para a plateia, com voz excitada) Vocês já lamberam uma mulher? Chupar oferecendo prazer? (explicativa) Ir com a língua, assim, abrindo estrada? Arrumando a liberdade no arrepio? Na torção da perna? (para Joanna Mina) Eu ainda te amo.
Joanna Mina e Anna trocam olhares apaixonados. Ambas começam a caminhar em direção ao centro do palco.Gonçalo prevê uma cena de encontro amoroso e acabrunhado se larga do meio do palco, daquela posição fetal, para sua cadeira.
Joanna Mina e Anna seguem trocando olhares, se amando, caminhando para um quase beijo.
Bárbara Poderosa como uma apresentadora de tevê, de programa policial em manchete de suspense, se posiciona entre Joanna Mina e Anna e faz gesto com as mãos. As luzes do palco se apagam ficando apenas um foco de luz sobre ela.
Bárbara Poderosa: Elas não se beijaram mais. (andando entre as personagens, falando para a plateia) Esse caso de amor terminou naquela discórdia na cozinha. Uma apontou para a outra e disse: negra, escrava. A outra chorou. Viu ali seu mundo devastado. Esse bosta (apontando para Gonçalo), achando que seu fedor assustava, mandou a mulher oficial, a sobrinha, a branca, calar a boca. A boca dela guarda o mapa da mulher que ela amou. E as duas agora são só saudade. Diferentes dores de amor. O amor não é só um enredo de coração bater e língua fazer sonho. Joanna Mina entendeu tudo isso naquele dia que seu amor lhe gritou: negra. Joanna Mina arrumou seu caminho e partiu. Saiu viva! Mesmo que carregando consigo aquela perda. (Bárbara Poderosa segue a narrativa como uma contadora de história oral) Gonçalo e Anna ficaram estragados para amar.
No amanhecer do dia da saída de Joanna Mina, a casa demorou a se remexer para que os brancos não despertassem. A casa sonhava. Joanna Mina não foi em fuga. Ela era liberta. Ela partiu. Na noite anterior, Carmelita havia dormido na fazenda. Naquela manhã, de primeira segunda de abril, as duas partiram juntas. Pegaram estrada e seguiram viagem. Na Cidade da Bahia, encontrariam Antero. Dali, Joanna Mina começaria a ser uma mulher de caminho.
A casa coou o café como quem acorda de noite de amor. Parecia que naquela manhã os passarinhos em lugar de cantar, cochichavam desejos, assobiavam menos, para mais poderem beijar. O cochicho toava liberdade. Gonçalo despertou pelo canto de um azulão cego, que vivia sozinho numa gaiola, no avarandado da janela do quarto do senhor.
O azulão cantou. E diferente do canto amargurado de toda manhã. Nesse dia, o azulão cantou com uma nota de alegria. Gonçalo despertou, abriu o olho e o corpo na cama morto-mortinho, ficou parado. Gonçalo vinha morrendo vivo. Desde aquela briga Joanna Mina não dormia mais no seu quarto.
O despertar do dia sem ela era abismo. Mas na amargura daquela manhã, o canto alegre daquele passarinho triste tocou seu coração e lhe assoprou esperança. (voz de apresentadora de tv em manchete de suspense policial) Alguma coisa estaria acontecendo? (voz de contadora de história oral) Era sua vida aquele anoitecer constante sem ela em sua cama que agora despertaria? (Bárbara Poderosa narra expondo o contado em seus gestos e expressões) Gonçalo fechou o olho, deixou o corpo na cama a apreciar aquele azulão lamentoso em notas de felicidade e naquele olho de sonho esticou o braço buscando Joanna Mina pela cama. Sua mão não achou Joanna Mina, mas seu corpo estava embalado pela canção da alegria. Era sim! Pensou. Era isso! Aquela cantiga era um sinal de esperança. Era uma nota de felicidade.
O azulão acordou o senhor, não para que ele despertasse, mas para que ele morresse mais. (voz contadora de história oral que revela uma moral) O cego é aquele que primeiro enxerga o nó da dramaturgia, a peripécia da história.
E o dia foi seguindo. Gonçalo, morto-vivo, ouviu todo aquele acalanto e levantou como quem ouvira alardeio de vida. Ali, ele ainda não realizava da saída de Joanna Mina, mas o abismo pressentia. Enganado pelo azulão cego, pensava que a excitação do abismo fosse a ansiedade do encontro amoroso.
Naquele dia, ele teria sorte com Joanna Mina. Ela voltaria a seus braços e dormiria novamente em sua cama. Seu despertar seria conjugado. Por fim, era isso, sim, que aquele pássaro lhe revelava.
Foco de luz baixa em Anna, que começa a cantar baixinho.
Anna: “Tudo em vorta é só beleza, céu de abril e a mata em frô².”
Foco de luz em Bárbara Poderosa que, como contadora de história oral, recomeça.
Bárbara Poderosa: Com esperança, Gonçalo sentou na cama. Tocou o sino. A mucama chegou com a bacia de água quente, o copo de água morna e a toalha de rosto limpa. Ele banhou o rosto como era seu costume. Gargarejou água morna como era seu costume. Secou rosto e mãos em toalha limpa como era seu costume – cuidados que o branco passou a ter depois que se descobriu apaixonado pela Niponissem Duduá. Ele queria que ela o encontrasse sempre banhado e fresco.
Foco de luz baixa em Anna, que canta baixinho.
Anna: “Tudo em vorta é só beleza, céu de abril e a mata em frô”.
Foco de luz em Gonçalo, que começa a falar recordando.
Gonçalo: Toda manhã aquele azulão me fazia chorar, mas, naquele despertar de abril, ele me fez sorrir. Houve uma nota mais suave de frescura naquele amargor. E igual foi aquela água. Parecia um doce. No gargarejo, eu entalei quase esquecendo que aquela cerimônia era de limpeza. Eu acho que quis experimentar aquele açúcar que se ajuntava na minha boca. E a toalha estava arejada e macia. Minha boca já pressentia o beijo. Eu me limpava, me trocava. E saía do quarto, arrumado pra ela, Nissem! Meu juízo suspirava. Eu entendia que aquele canto mais alardeado do azulão foi pra me dizer que aquele tempo de dor haveria de se acabar.
Foco de luz baixa em Anna, que segue a cantiga.
Anna: “Tudo em vorta é só beleza, céu de abril e a mata em frô, mas assum preto, cego dos óio, não vendo a luz, ai, canta de dor”.
Foco de luz em Bárbara Poderosa, a contadora de história.
Bárbara Poderosa: Gonçalo saiu do quarto como se dançasse. O dia cheirava, ele chegou no salão do comedor pedindo que abrissem as janelas, que deixassem a luz correr, que as sombras das salas fossem ao subterrâneo de cada móvel. Naquela manhã, os escravizados da casa sambavam de alegria. Era uma liberta que partia. Que ganhava rua. Que saía. A felicidade era conjunta. O café estava mais quente, mais forte, mais pegado no gosto. O biscoito de goma derretia na língua como se um beijo quisesse parentar. Outra língua. Duas línguas se amando. Gonçalo era servido sozinho naquela mesa larga coberta com toalha rendada branca (a luz em Bárbara Poderosa vai progressivamente diminuindo). Nissem! Seu juízo suspirava.
Foco de luz baixa em Anna, a cantora.
Anna: “Mas assum preto, cego dos óio, não vendo a luz, ai, canta de dor”.
Foco de luz baixinha em Gonçalo, o choroso.
Gonçalo: Eu chamei: Joanna! E ouvi uma bandeja cair na cozinha. Joanna? Interroguei. Oh, Joanna, vem cá. Clamei. Comecei a ouvir um cântico absurdo de passarinhos. Ninguém me respondia nada, mas parecia que todos os passarinhos do mundo cantavam.
Anna, a cantora, entrando no foco de luz de Gonçalo e colocando a mão no seu ombro.
Anna: “Tarvez por ignorânça, ó mardade das pió, furaro os óio do assum preto, pra ele assim, ai, cantar mió”.
Gonçalo começa a cantar junto com Anna. Luz progressivamente diminuindo.
Anna e Gonçalo: “Assum preto o meu cantar, é tão triste quanto o teu, também robaró o meu amor, ai, que era a luz, ai, dos óio meu”.
Ouve-se risada nervosa da Voz off.
Foco de luz inteiro em Bárbara Poderosa, historiadora irônica e jocosa, que aparece aplaudindo.
Bárbara Poderosa: Oh! Os senhores ficaram tristinhos. A mulher liberta partiu e levou junto seus coraçõezinhos.
Silêncio.
Silêncio.
Silêncio.
Breu.
Ouve-se o som de um tiro de caça que acerta um passarinho.
E ouve-se o som da queda do corpo do animalzinho ao chão.
Silêncio.
Luz progressivamente aumentando em Joanna Mina.
Bárbara Poderosa, a contadora de história, entrando no foco de luz de Joanna Mina.
Bárbara Poderosa: Joanna Mina partiu. Foi viver livre! Foi ser feliz? (Bárbara Poderosa abraçando Joanna Mina). Parece que nessa história qualquer afirmativa é difícil de alcançar.
Silêncio.
Luz progressivamente diminuindo no abraço.
Breu.
III Ato
Breu.
Luz progressivamente acendendo.
Personagens se organizando em suas cadeiras.
Luz baixa no palco e na plateia.
Personagens arrumados em suas cadeiras. Viram-se para dentro da roda e se olham se acolhendo. Nessa cena, pode ficar evidente para a plateia que os atores estão descansando por instantes suas emoções para recomeçarem novo ato.
E é no olhar um do outro em cena que recolhem amparo.
Joanna Mina: Era madrugada quando deixamos a fazenda. Sentamos no barco eu, Carmelita e Tião, que fazia esse serviço de atravessar gente de Cachoeira até a beira do continente pela Baía de Todos os Santos. No caminho, mais gente foi entrando e as águas cresciam. Estar nas águas me amedrontava, eu lembrava daquela dor antiga que eu não sabia exatamente onde estava a ferida. Eu sentia no meu corpo um nojo tão grande, um medo, um desprezo imenso por mim mesma. E meu pressentimento era que aquilo fosse memória da travessia que havia me arrastado das Mina. Esse nojo, ao tempo que me assombrava, tocava, no meu corpo, como uma trombeta de seguir em frente, de nada temer, por muito temer. (silêncio) Era o assombro daquele tempo de transporte para a escravidão.
Joanna Mina e Bárbara Poderosa choram.
Bárbara Poderosa caminha até sua mãe Obá.
Foco de luz nas duas.
Elas se abraçam e choram.Desse abraço escorrem até o chão ao pé da cadeira de Joanna Mina. As duas sentam no chão. Bárbara Poderosa fica ao lado de Joanna Mina segurando sua mão.
Joanna Mina: Eu não sei precisar essa lembrança. Eu não sei onde ela está. Eu não sei. Mas meu corpo sente essa dor tão fina, esse nojo de mim mesma que não compreendo. Que peço ao tempo que pare essa tormenta. Que o mar me ajude a esquecer. Não quero me odiar assim. Não quero sentir por mim esse nojo que sinto. Não sei, minha irmã, (olhando para Bárbara Poderosa) não sei lembrar com precisão, mas não posso apagar esse sentimento do meu corpo.
Bárbara Poderosa abraça Joanna Mina.
Bárbara Poderosa: Vem, chora, mamãe, pode chorar.
As duas mulheres choram juntas. Amparam suas dores.
Foco de luz vai se expandido para todo o palco.
Vê-se que Gonçalo e Anna também choram.
E ouve-se a Voz off.
Voz off: Mi mi mi.
Anna escreve uma palavra no quadro,fica de pé no meio do palco, coloca o lenço na cabeça, levanta o quadro para plateia expondo a palavra: silêncio.
Voz off: Mimimi.
Anna de cabeça baixa segue sustentando o quadro.
As mulheres em cena choram.
Voz off: Mimimi.
Gonçalo (secando as lágrimas, chama a Voz off em tom apelativo e de reprovação, como o pedindo que parasse): Papai.
Voz off (responde divertido, em fala de festa infantil): Filhão! Posição de homem! Cadê? Quem é o machão de papai?!
Gonçalo (responde chorando): Papai!
Voz off (responde rápido, ansioso): Filhão! Filhão, o pessoal todo aí, Filhão. Bora, tigrão!
Breu.
Silêncio.
Foco de luz em Joanna Mina, que aparece de pé, com o pano, ereta no centro do palco. Luz baixa se expandindo por todo o palco. Gonçalo, Anna e Bárbara Poderosa voltam às suas cadeiras e encaram o público.
Joanna Mina: Era quarta-feira quando pisei na Cidade da Bahia. Descemos no mercado da cidade baixa e seguimos pela ladeira, cruzamos uma praça, passamos pela lateral de uma igreja larga, no fundo mais uma praça, seguimos. Me perdi. E estávamos no terreno de proteção de Naña Nissem de Obaluaiê, na proximidade da Irmandade das Pretas de Nossa Senhora de Santana da Boa Morte. Uma tontura balançou minha cabeça e caí. Foi certa a minha chegada àquele lugar. Foi acerto do meu santo.
Eu despertei deitada nas palhas, minha trouxa pousada ao meu lado e estirei meu braço e abri para apontar meu axé. O que minha avó, que morreu ao meu lado na travessia, havia deixado aos meus cuidados, na concha do meu ouvir.
Ela morrendo, eu ao seu lado. Seu corpo esfriou. Ela viva-viva em mim. E ficamos assim ao longo da travessia. Eu segui ouvindo a minha voz-ela, baixinho, segredando nossos mistérios, eu e ela. Todos os tons do futuro ela me assoprava, os caminhos de liberdade, que ali, naquela hora, da Cidade da Bahia, eu trilhava.
No navio eu parada.
Não queria me mexer para não delatar sua morte.
O corpo frio foi arrastado.
Minha avó era o que eu segurava em mim.
Minha avó são as histórias de nosso santo que posso segredar.
Estava na Cidade da Bahia, deitada numa palha, segurando nosso santo. “O lugar derradeiro dessa viagem é terra adentro”, me disse a Naña Nissem de Obaluaiê. Eu sabia que minha estrada era caminhar. Carmelita me trouxe água fresca. Fiquei sete meses no chão. Ouvindo e aprendendo sobre todo o negócio. Ilustrei minha vida para o meu santo e nasci mulher de caminho para negociar tecidos.
O dia clareou e foi minha primeira saída. Eu sentia um batimento diferente no peito.
Era eu.
Era outra.
Era o santo.
É a voz-ela.
Era assombro.
Era sinal do passado.
Era rua da Cidade da Bahia.
No cruzamento do largo de Santana da Boa Morte.
Foi Anna que vi passar.
Anna: Nesse dia de tua saída nos encontramos cruzando a mesma praça.
Bárbara Poderosa, a historiadora sarcástica.
Bárbara Poderosa: Anna havia conseguido o direito da separação do senhor seu tio Gonçalo Marinho Falcão Tal e Coisa. E, naquela manhã, arrodeada de escravizados, cruzava a praça do Largo de Santana da Boa Morte. A mudança seguia para a orla da Barra, para o palacete de verão, o Solar dos Falcão Marinho. Elas não se viram. O amor quando acaba é isso, esse constrangimento em narrar.
Anna sentada, levanta o quadro com a palavra: silêncio.
Voz off (gritando): Uma mulher perdida, uma pecadora que se arrasta com outra mulher. Teu marido que não te quis mais, sua vagabunda feia. Mulher feia não serve³ para ficar casada. Ele agora vai ter outra melhor. Filhão! Ei, homem, levanta-te e anda. Sai daí, sai. Vai procurar uma história de homem. Isso é teatro para mulherzinha.
Gonçalo cai da cadeira com o corpo inteiro para a parte de dentro do palco, parando em posição fetal.
Anna abaixa o quadro.
Joanna Mina de mãos dadas com Bárbara Poderosa começam a andar rápido em círculos no palco, saltando o corpo de Gonçalo, passando por Anna. Descem do círculo do palco e seguem andando rápido falando e se aproximam da plateia. Não param de andar e falar. Falam juntas, o mesmo texto, de mãos dadas e andando.
Joanna Mina e Bárbara Poderosa: Cruzamos o largo eu e Carmelita. Não vi Anna. Não chorei por Gonçalo. O feto que amarrava meus pés não está mais aqui. Eu ando. Eu ando. Eu ando. Eu me deitei com minha avó e acordamos mortas. Mas todo hoje desperto viva. Eu ando, eu ando. Carmelita me ensinou todas as lições da vendagem. Me apresentou o mapa de passagem na Cidade da Bahia e dos caminhos até Sergipe del Rei e depois a Vila de Santo Antônio do Recife. Eu ando, eu ando. Eu sou uma mulher de caminho.
O corpo delas fazem um movimento para frente e para trás. Como numa umbigada,um passo com umbigo pra frente, dois passos com umbigo pra trás. Fazem esse movimento sem fala. Fazem três vezes e seguem.
Anna acompanha as duas com o olhar e movimentos na cadeira.
Voz off: Levanta desgraça.
Joanna Mina e Bárbara Poderosa nos movimentos da umbigada.
Joanna Mina e Bárbara Poderosa: Mistério, mistério, mistério, mistério…
Breu.
Sons de tiros.
Silêncio.
Silêncio.
Palco iluminado.
Atrizes buscando suas cadeiras.
Gonçalo de pé no meio do palco com um braço para cima, começa a falar para a plateia.
Gonçalo:
Eu não atirei. Olhem aqui minhas mãos vazias. (Breu. Foco de luz em Gonçalo, que cai de joelhos, levando as mãos aos olhos e falando para a plateia). Protejam seus olhos. Protejam seus olhos! (palco iluminado luz baixa). Não olhem para minhas mãos (com as mãos segurando o rosto e ficando de pé). Não foi eu, não. Protejam seus olhos. Foi sem querer. Eu não tive culpa. Quem não pode errar?
Breu.
Silêncio.
Palco iluminado.
Gonçalo aparece rindo e movimentando-se no centro do palco, como um apresentador de tevê, a câmera são os olhos da plateia, ele fala para a plateia como se estivesse sendo filmado.
Gonçalo:
Tudo isso aqui é um teatro do deprimido, que no caso sou eu. (gargalhando alto, seguro, valente) Eu atirei sim. Claro que atirei. Afinal quem é o homem daqui, dessa história? Quem é o homem aqui nessa história? Não sou eu? Gonçalo de largo sobrenome colonial?! (dançando funk). Vai, vai, Gonçalo! Vai, vai, Gonçalo! Vai, vai, Gonçalo! (atrizes gargalham. E ator rindo, segue a dança). Vai, vai, Gonçalo! Vai, Gonçalo. Vai, Gonçalo!
Voz Off (gritando): Viado! (atrizes param de rir.Gonçalo segue fazendo os movimentos de funk, cantando e cansando e parando). Viado!
Gonçalo (grita para o alto): Cala a boca, seu pai de merda, que nesse teatro aqui nem corpo vivo você tem! Seu fodido. Seu bosta! Desaparece, desgraça! (Breu. Luz baixa aumentando gradualmente até ficar apenas um foco de luz forte no centro do palco em Gonçalo de pé, que agora fala dirigindo-se à plateia). Quem aqui protege vocês? Eu! Eu!
Bárbara Poderosa (entrando no foco de luz de Gonçalo): A narradora dessa história aqui sou eu! Com licença.
Gonçalo: Não! Não vou sair não.
Bárbara Poderosa (empurrando a saída de Gonçalo do foco de luz): Vai sair sim.
Gonçalo: Eu preciso contar a vocês que essas macumbeiras não vão lhes contar nada de suas macumbas, elas estão enganando vocês. Macumbeiro nenhum revela mistério, mas eu tenho revelações a fazer.
Bárbara Poderosa começa a rir.
Bárbara Poderosa: Diz aí, machão, o que é que você quer revelar!
Gonçalo (emburrado):
Não me chama assim.
Bárbara Poderosa (repete, alongando a palavra): Machão!
Gonçalo (medroso): Para.
Bárbara Poderosa (divertida): Machão.
Gonçalo fica sozinho no foco da luz.
Atrizes gargalham.
Gonçalo: Papai!
Bárbara Poderosa empurra Gonçalo e toma o foco de luz.
Bárbara Poderosa: Joanna Mina ficou sete meses na Cidade da Bahia cuidando do seu santo e planejando os movimentos do futuro.Nesse tempo de recolhimento, reencontrou suas ancestrais, entendeu seu tempo de morte-vida, renasceu, largou lá aquele feto entendendo as providências da distensão do tempo, de tudo isso e aquilo que não sabemos, não podemos falar, porque não sabemos.A fala é lugar de corpo de presença.
Foco de luz em Joanna Mina.
Joanna Mina: E não podemos falar sem a exatidão do agora, que já se desmancha em acontecimento de passado, e já é chuva, e já é água arrastada. E água arrasta, mas não some, semeia. E assim é a palavra, uma vez dita, não desaparece, mas ecoa e, por isso, nossa religião é cuidar das palavras, cada palavra, cada coisa aqui que digo é tempo. É tempo. É tempo.
Foco de luz em Bárbara Poderosa, que começa a cantar.
Bárbara Poderosa: Ofá na mão me protegeu
Ela em mim, essa sou eu
Contas, condão que me envolveu,
Que me envolveu
E o mal do mundo estremeceu
Guerreira negra
Que Olorum, que Olorum,
Que Olorum nos deu
(falando) Sete meses, Anna…
Sons de tiros.
Breu.
Silêncio.
Foco de luz baixa aparece iluminando o corpo de Bárbara Poderosa, que está caído no chão. Foco de luz se ampliando do corpo dela para todo o palco e Gonçalo aparece chorando.
Gonçalo: Papai! (para a plateia) Não foi eu!
Breu.
Silêncio.
Silêncio.
Silêncio.
IV Ato
Palco iluminado, luz baixa.
Anna caminha com o quadro na mão, com a cabeça coberta, passo a passo como em uma procissão e vai cantando:“Glória a ti neste dia de glória. Glória a ti neste dia de glória. Glória a ti neste dia de glória⁴”. Dando a volta no palco caminha até Gonçalo, para em suas costas, escreve no quadro e levanta a palavra: machão.
As quatro personagens começam a gargalhar.
A iluminação volta para um foco de luz no meio do palco.
Bárbara Poderosa se encaminha para o foco, como uma slam ao caminhar e se posicionar, para recitar um poema.
Bárbara Poderosa: Quem mandou matar toda mulher que fala: me respeitem? (pausa) Eu vos digo!
As mortes são tantas, eu vos digo, as prisões são tantas.
Eu vos digo, isso aqui é mesmo um teatro!
E eu queria lhes cantar uma canção de amor se houvesse tempo.
Mas cadê?
Cadê quem mandou matar toda mulher que fala: me respeitem? (Bárbara Poderosa começa a falar como uma apresentadora de documentário) O tempo é de vida e a africana Joanna Mina. (foco de luz em Joanna Mina que fica de pé com o pano posto)
Agora mulher liberta na Vila de Santo Antônio do Recife, caminha pela capitania de Pernambuco para registrar seu testamento. O documento de posses da liberta Joana Mina foi documentado por Jota Chaves Ferrão Aculpe. Joanna Mina deixou ali pormenorizado tudo que lhe pertencia e o que desejava que fosse feito com seus bens após sua morte. E dali partiu para a capitania das Minas Gerais, sua última viagem.
Joanna Mina: Naquele dia de minha saída, na Cidade da Bahia, sete meses depois de meu tempo de morte-vida e ainda antes de caminhar para a capitania de Pernambuco, vi que aquela mudança que atravessava o Largo de Santana da Boa Morte era dela, de Anna, meu amor.
Mais um foco de luz, agora em Anna.
Anna: Ah! Para! Já sabemos que não estamos contando aqui histórias de amor. Podemos nos libertar dessa rançosa marcação de narrativa amorosa.
Todo o palco é iluminado e as quatro personagens de mãos dadas começam a dançar e cantar em roda:
Nós quatro já nascemos pobres, porém, sempre nos iludimos, senhor, senhora ou senhorio, pobres, nunca amarás⁵!
Sentam-se os quatro, cada qual em sua cadeira.
Gonçalo: Uma peça escrita para o fracasso, quatro histórias de amor que não se sustentam em quatro patas nem até o quarto ato. Não se fazem mais dramaturgias como antigamente. Pobre agora, quem está?
Bárbara Poderosa: Quem lhes iludiu que isso aqui fosse uma peça de amor?
Gonçalo: Oh! E não era? Gonçalo que amava Joanna, que amava Anna, que amava a Joanna que ela queria guardada só para si, Joanna que escapou para Minas, que lá encontrou Bárbara, que amou Joanna, que me deixou⁶.
Joanna Mina (comenta, divertida): Gonçalo, tu é machão mesmo.
Todas dão risada.
Bárbara Poderosa: Mamãe, conta de teus dias na Vila de Santo Antônio do Recife.
Anna: Mas eu preciso dizer que sofri tanto.
Bárbara Poderosa: No palacete!? Sentada à beira-mar, na brisa fresca, nas águas quentinhas do mar da Bahia. Sofreu?
Anna: A conversa é com Joanna.
Gonçalo:
Aí não, minha senhora, desde sempre estamos todos falando para todos aqui.
Bárbara Poderosa: Todos! Todos para todos só se for mesmo tu sozinho. Porque nós, machão, estamos falando para todas.
Voz off: Mimimi.
Todas em cena (incluído o boy): Cala a boca, meu pai!
Joanna Mina (explicativa, para a plateia):
Não considero ele meu papai, foi só assim, um jeito de dizer. Marcar proximidade com o poder, sabe?
Bárbara Poderosa: Poder? Que poder, mamãe? O corpo dessa pantumia nem aqui entre nós está.
Joanna Mina: Bárbara, minha filha, você também disse…
Anna: Meu pai.
Risadas de Anna e Gonçalo.
Gonçalo: Você também disse, ai, meu pai, meu paizinho, porque me abandonastes.
Breu.
Foco de luz bem fraco em Anna.
Anna: A água do mar da Bahia é quentinha, a espuma da onda é consistente, faz aquele bico de renda branca assim inteirinho na areia, areia quente. Eu me sentava na varanda do solar e pensava nela, em nossos beijos, quentinhos. O cheiro daquela mulher minha que nunca vou esquecer. Era minha ela, o cheiro dela, aqueles beijos eram meus, nosso amor. Eu tinha tanto a lhe dedicar. Eu aqui trancada nessa casa. Fora de toda vida social. Nem penso mais no sofrimento daquele casamento amargurado que fui obrigada a viver com meu tio. Eu aqui só penso nela. Em toda aquela teoria sobre a vida que ela falava sem parar. Joanna, eu te amo de um jeito assim de admiração completa mesmo.
Bárbara Poderosa começa a falar e todo o palco é iluminado.
Bárbara Poderosa: Anna, se tu ficou afastada da vida social não foi por guardar luto da saída de Joanna, mas sim porque foi uma mulher que solicitou separação legal mesmo antes do divórcio vigorar como lei possível para mulheres. Digo mulheres brancas. Leis para mulheres brancas.
Gonçalo: Ah! Não, não, não. As leis são uma só.
Atrizes em coro: Machão!
Bárbara Poderosa (para Joanna Mina): Mamãe, conta de tua vida na capitania de Pernambuco.
Anna começa a falar e a iluminação fica apenas nela, um foco de luz baixa.
Anna: E a noite? Ah! À noite, as águas do mar da Bahia são ainda mais quentinhas. Dias de lua, eu esperava aquele horário do cair da tarde e me achegava ao mar. Sentia aquele calorim tocando a pontinha dos meus dedinhos. Ali, eu abaixava uma das mãos em concha e trazia aquela água para perto do meu rosto, boca, pescoço, fechava os olhos e sentia aquela maresia de te tocar, Joanna. Da aproximação de nossos sonhos e…
Bárbara Poderosa começa a falar, irônica, e todo o palco é iluminado.
Bárbara Poderosa: Venha cá, princesa, não foi a senhora, que no começo desse quarto ato disse“chega de marcações amorosas nessa narrativa”?!
Gonçalo (rindo, fofoca): E mais, Anna, a Bahia toda soube que, depois de nossa separação, você teve um largo caso com a mulher de Frederico Feijão Ponta de Rizána. E que ele te protegia na Cidade da Bahia para abafar o escândalo de saber que uma mulher pegava a mulher dele e porque era um vassalo e não queria perder aquela espanhola que tu e ele comiam.
Bárbara Poderosa (rindo, responde ao macho): Mas aí eu não acho justa essa exposição, não. Ela pode se embolar com quem ela quiser e que queira ela. Machão, cala a boca. O que estou falando aqui é sobre essa narrativa. (Bárbara Poderosa fica de pé e fala em direção à plateia) Traz esse foco de luz aqui pra mim. (foco de luz apenas em Bárbara Poderosa que se aproxima de Joanna Mina, coloca a mão em seu ombro e lhe diz) Mamãe, conta de tua vida na capitania de Pernambuco.
Anna levanta, se jogando sobre o foco de luz, e fazendo gestos para que esta (a iluminação) a acompanhe até o centro do palco.
Anna: Não, não, não. Eu não quero saber nada da vida de Joanna em nenhum outro lugar que não nos meus braços.
Palco todo iluminado.
Anna caminha até sua cadeira, pega o quadro e escreve: te amarei eternamente.
A iluminação foca no quadro e vai diminuindo.
Breu.
Silêncio.
Silêncio.
Silêncio.
Foco de luz em Bárbara Poderosa, que começa a falar para plateia e atores.
Bárbara Poderosa: A peça poderia terminar agora. Anna iria ao encontro de Joanna as duas se abraçariam e sairiam de cena de mãos dadas e nós as aplaudiríamos. Mas isso aqui não é mesmo um teatro e essa aqui é mesmo uma história de amor.
Amor pelos caminhos de vida de Joanna Mina. E os caminhos de vida de mulheres não são iguais. Mulheres podem ser tão diferentes. Joanna Mina é uma mulher de caminho, vendedora de tecido que fez vida na Vila de Santo Antônio do Recife.
Ninguém julgava que naquela profissão reinasse uma mulher. Falar dos lugares de classe de uma mulher branca e uma mulher negra no século XVIII não é simples. Como não é simples agora.
Gonçalo: Anna lá ama ninguém. Ela apenas está com ciúmes de ouvir que Joanna Mina seguiu com uma vida depois dela e está aqui entre nós atrapalhando a história.
Bárbara Poderosa: Gonçalo, e a novidade? Isso já sabemos, ela mesma já admitiu. (Bárbara Poderosa fica de pé e caminha até Joanna Mina) Mamãe, esse ato precisa terminar, conta logo sobre tua vida na capitania de Pernambuco.
Anna senta no chão e começa a desenhar no quadro.
Joanna Mina: Meus caminhos de rua são mistérios do tempo. São mapas que só posso traçar enredo no cochicho. Quando eu cochicho, quem me ouve é o tempo. E é ele o poder que decide quando e quem irá saber desses traços de mistério.
Gonçalo: Tá vendo aí! O que eu falei?! Macumbeira não revela nada. (Para a plateia) Se reconfortem em seus assentos. (Joanna Mina e Bárbara Poderosa trocam olhares e sorrisos. Gonçalo, para Bárbara Poderosa) Diz aí que não é verdade?
Bárbara Poderosa: Porra (olhando para Gonçalo), mamãe, segue teu caso.
Anna: Lembra do meu pedido, viu dengo (falando para Joanna Mina), corta aí a parte que chegando na capitania das Minas Gerais, tu se apaixonou por outra mulher.
Bárbara Poderosa levanta-se de vez, passando pela cadeira das três personagens e, ficando de pé no meio do palco, faz um sinal para a iluminação, como que chamando a luz no palco só pra si.
Bárbara Poderosa: Acabou! Chega! Fim do quarto ato. Pronto! Não é nada isso aqui mesmo. Teatro? Amor? Isso é uma patacoada. E (para a plateia) protejam seus olhos. Apaga!
Breu. Ouve-se Joanna Mina.
Joanna Mina: Acenda essa luz aí.
Palco iluminado.
Bárbara Poderosa: Ah não, mamãe.
Voz off: Acaba! Acaba! Elas não concordam em nada. Estão sempre uma contra a outra.
As quatro personagens em cena: Cala a boca!
Breu.
V Ato
Acende um largo foco de luz em Joanna Mina, que está com o pano posto.
Joanna Mina: Ser mulher de caminho é saber guardar sina, sorte e alarme de valentia. Eu vivi na Vila de Santo Antônio do Recife e foi lá que tive aquele sonho. Eu viajaria para a capitania das Minas Gerais a negócio, mas não só. Era encontro com a minha região Mina, com meu primeiro nome que foi me dado por minha avó, mulher de santo, cabeça de Obaluaiê, velha de entendimento e guardiã de séculos. Ir à capitania das Minas Gerais era encontro ancestral com a Costa da Mina me chamando para assentar o meu passo no dela.
Eu viajaria à Vila de São João del Rei, penetraria aquelas terras, passaria por entre a pedreira vermelha, avistaria o rio iluminado, cristalizado por água nascente. Pararia na parte mais alta das ladeiras e de lá avistaria no regaço, o caminho para a Vila de Biribiri. Era a capitania das Minas Gerais, era a Costa da Mina, era nossa prata, minha e de minha avó, que se tocariam naquele chão. Eu, mulher de caminho, já tinha notícia que naquele pedaço de Minas havia sido construída aquela fábrica de tecido onde trabalhavam as órfãs.
Era na Vila de Biribiri, capitania das Minas Gerais, que ficava a Fábrica e a vida de tantas mulheres. O sonho me dizia que era na beira das correntes daquele rio que riscavam aquele vale que eu deveria ir e me encontrar com a saudade. E ali eu deixaria ela, eu, nós duas e nossa gente. Despertei do sonho cinco horas da manhã de uma segunda-feira e após duas horas de apreparos e confirmações, abri caminho na capitania de Pernambuco e ditei meu registro de bens.
Aprumei meu testamento na Vila de Santo Antônio do Recife, porque já havia recebido a adivinhação do meu futuro caminhar para Minas. Eu já era uma alargada mulher de caminho. Deixei minhas conquistas para a Irmandade das Pretas de Nossa Senhora de Santana da Boa Morte, aos cuidados de mãe Naña Nissem de Obaluaiê, da Cidade da Bahia, irmãs de barco que me acolheram por sete meses e caminhei para Gerais.
Eu ainda não conhecia Bárbara. A Caminho da Fábrica de Tecidos, pernoitei na rancharia de Sabá. Pisei na região de São João del Rei e já sabia do lugar.
A iluminação se estende à Bárbara Poderosa.
Bárbara Poderosa: Xangô já tinha me avisado dela. Ela tá pra chegar. Lá vem ela. É ela. É a mulher de Obá! Ela é de Mina. Eu posso entender de santo. Aquela mulher de pano vermelho chegou e eu sabia que ela era a Obá. O inesperado foi o amor.
Foco de luz em todo o palco.
Gonçalo: Ah! Agora o que temos, era mesmo o que faltava. Ela também ama minha mulher.
Todas as personagens dão risada.
Anna: Machão, era essa parte da história que eu tentava evitar.
Joanna Mina: Gonçalo, eu não sou tua mulher. Sou liberta!
Anna: Homem, acorda! Até eu sou divorciada.
Bárbara Poderosa: Gonçalo, por favor. Elas são tuas o quê?
Gonçalo: Mulheres?
Voz off: Hein? O que, filhão! Mimimi, isso aí é tudo mimimi.
Personagens em coro: Cala a boca, enviado dos infernos.
Bárbara Poderosa fica de pé e traz Joanna Mina e Anna para o meio do palco.
Bárbara Poderosa: Mulheres. Nós somos mulheres! Elas não são tuas mulheres. São mulheres! Somos mulheres, pessoas, humanas, livres.
A luz no palco diminui, as três mulheres ficam de pé, perfiladas, uma ao lado da outra. Gonçalo começa a andar no palco, com a bengala, e falando como um professor em classe.
Gonçalo: No mundo, existe uma lei: mulher para ser reconhecida como ser humano precisa ser analisada, avaliada, passar por alguns testes e, após revisões laboratoriais, nós, homens de fé, lhes damos o selo: mulher-humana.
Ouve-se a Voz-off, eufórico, aplaudindo.
Voz off: AeeeH!!!! É isso aeeh, filhão!! Nasceu agora, né porrah! Já estava aqui entediado com essa peça de mulherzinha. Agora sim tivemos uma fala de macho.
As três mulheres, ainda na mesma posição, olham Gonçalo com desprezo. Bárbara Poderosa começa a se movimentar no palco.
Bárbara Poderosa: Avistei Joanna Mina e entendi os sonhos que vinha tendo naquele ajuntamento de dias. E quando…
Gonçalo: Ei! Parou! Como assim?
Bárbara Poderosa: … E quando nos aproximamos eu…
Gonçalo: Parou, parou, parou agora! Eu estava falando de um assunto sério. A desumaniza…
As três mulheres em coro: Cala a boca!
Joanna Mina: Já é notório que mandar um homem calar a boca não adianta de nada.
Voz off: Olha aí como elas são raivosas. Comunistas!Comunistas! Vão destruir nossa nação.
Bárbara Poderosa, historiadora irônica, para a plateia.
Bárbara Poderosa: Também estou passada, sério, não imaginei que teríamos que lidar com esse tipo de discurso aqui.
Joanna Mina: Discurso! Que discurso?
Anna: Isso nem argumentação tem pra ser um discurso.
Bárbara Poderosa: Certo! Eu falei que isso aqui não era uma peça depois que alguém disse que era. Enfim…
As três mulheres se entreolham e gritam juntas:
Socorro, não aguentamos mais tanta violência!
Voz off: Opa! Pera aí, esse pedido de socorro é pra mim? Filhão!?
Palco todo iluminado.
As três se sentam de vez em suas cadeiras.
Bárbara Poderosa, historiadora exausta, virada para o público.
Bárbara Poderosa: Vai crescendo assim um desânimo por dentro sabe, uma vontade de parar tudo mesmo e não fazer mais nada. Eu fico pensando assim…
Gonçalo: Olha, por que não podemos conversar? Vamos conversar. Esse sentimento, esse abatimento diante a situações de opressão é muito comum. Segundo…
Bárbara Poderosa: O meu cu!!!!!! Segundo o meu cuuuu o quê, bicha?
Anna: Aí! Ele ia citar mais um homem aí.
Voz off: Raivosas só entendem na porrada, filhão. Querem conversar não, querem paaaau. Cacete! (gargalhada) Entendeu aí o jogo que fiz, misturando as palavras aí, né não, filhão?
Gonçalo: Não gosto! Mas quase preciso concordar com papai. Retirando a parte que papai é vulgar, mas que se justifica, pela condição dele de homem que, coitado, nunca teve acesso a essas questões e que por isso merece nossa compreensão. Ele apenas está em ação de expurgar esse homem primitivo que vive nele. Vocês sabem que não sou como ele, mas assim vocês não me ajudam. Se vocês querem mudar uma coisa devem me ensinar como devo fazer essa coisa. É assim que funciona. Entende!?
As três falam de uma vez:
Mais! Mais e mais ajuda é só o que você quer!
Gonçalo: Mas era sobre isso que eu falava. Sobre como as mulheres na sociedade…
Bárbara Poderosa: Podemos nós mesmas falarmos por nós? Era isso, animal, que você iria dizer?
Voz off: Olha aí…
As três em coro, para o alto:
Cala a boca, desgraça!
Joanna Mina: Gonçalo, sua bosta, Bárbara já estava falando, você poderia apenas ter ouvido.
Anna: Calando a boca, seu abusador, mas isso seria demais né para você, seu merda.
Gonçalo começa a chorar.
Voz off: Filhão! Ei! Que isso, filhão. O pessoal aí.
Foco de luz em Gonçalo chorando e outro foco de luz nas três que juntas e abraçadas começam a cantar:
“um homem também chora”
hum-hum, hum-hum
“precisa de ternura⁷”
hum-hum, hum-hum
A luz se amplia.
E as três sentam em suas cadeiras dando risada. E falam em coro:
Chora, machão.
Gonçalo: Vocês estão rindo de mim?
Anna: Ah! Para.
Joanna Mina: Gonçalo, foi uma brincadeira.
Risada das três.
Gonçalo: Vocês estão rindo de mim?
Bárbara Poderosa: Ah! Gonçalo, menos. Já deu, já. Olha quantos desvios precisamos fazer do texto só para você ter fala e palco. Tá bom, né? Vamos seguir? Afinal isso aqui é mesmo um teatro!
Bárbara Poderosa fica de pé e gira feliz pelo centro do palco.
Bárbara Poderosa: Eu sempre quis brilhar! E amar! E ser atriz! E ser feliz! E andar na rua sendo admirada e respeitada! E aplaudida!
Voz off: Depois reclama quando leva paulada.
Bárbara Poderosa: É triste. Não era fácil sustentar aquela rancharia.
Joanna Mina: Bárbara já tinha larga estrada até ali. Havia se largado de Sergipe del Rei para aquela região da capitania das Minas Gerais. Ali se arrumou. Muitos são os trajetos de um corpo. Um corpo bárbaro, um corpo de próprios caminhos de poder. Eu avistei Bárbara Poderosa quando me cheguei àquela rancharia Sabá e senti logo um alargado carinho.
Eu parei no longe ainda e fiquei sem querer dar mais nenhum passo. Queria que toda a folia parasse ali. Cheguei a região daVila de São João del Rei num dia de festa na rua. “Alá a rancharia Sabá”, me apontaram. Eu vi. Aquela mulher de chegança acendeu meu coração sangrento. Eu nunca pensei, com um pensamentozinho só que fosse, que um querer bem dela pudesse me desejar.
Ah! Bárbara minha, se eu tivesse podido acreditar ali que tu também nutriria algum afago de sonho por mim, eu teria te alinhado os dias. (Anna começa a chorar forte. Levanta, coloca o pano na cabeça e desanda a andar em romaria pelo palco e plateia. É choro. É lamento. É murmúrio. É solidão. Joanna Mina olha para Anna com carinho. Faz algum movimento no corpo como se desejasse chegar até aquela que foi seu amor).
Um amor passado é um amor pra sempre? Eu morri sozinha.
Gonçalo começa a chorar. Bárbara Poderosa tem os olhos rasos d’água. Nenhuma destas personagens tem mais mundo sem a existência de Joanna Mina. É a Costa da Mina que as conecta. Elas estão em cena. Desoladas. A morte é certa. A morte de tempo de encontro entre elas já aconteceu. A morte do amor delas já aconteceu. Joanna Mina se levanta e leva sua cadeira até o meio do palco. Chama Bárbara Poderosa com um gesto de mão e esta também vai para o centro do palco com sua cadeira. Joanna Mina pega a cadeira de Anna, que está desembestada a chorar e lamuriar e a coloca também no centro do palco. As três cadeiras são arrumadas uma de costas para outra. Joanna Mina e Bárbara Poderosa se sentam. Gonçalo choroso se levanta e pede para sentar junto a elas e se senta. Anna fica vagando. Joanna Mina se levanta.
Anninha, vem, vamos brincar.
Anna corre até Joanna Mina, que segura na sua mão e faz sinal para que as quatro deem-se as mãos e em círculo todas as personagens começam a correr em roda, com as cadeiras ao meio. São quatro girando. São três cadeiras ao meio. A brincadeira é sentar e ver quem fica sem lugar. Anna fica sem lugar e chora. O jogo recomeça. Gonçalo fica sem lugar e pega sua cadeira, que estava fora do jogo, e a coloca no jogo, e se senta como se assim não pudesse ser julgado como perdedor.
Bárbara Poderosa: Assim a brincadeira não vale.
Voz off: Por isso que não é uma brincadeira. (silêncio) Finalmente, hein, Senhor Gonçalo. Estava aqui até agora esperando por esse momento.
Breu.
Silêncio.
Silêncio.
Ouve-se o som de um tiro de caça que acerta um passarinho.
E ouve-se o som da queda do corpo do animalzinho ao chão.
Silêncio.
Foco de luz em Joanna Mina.
Joanna Mina: A dor é tanta. Eu avistava de longe, aquela alumiação. Aquela mulher encantada. Mas ah, a dor! Ai, a dor.
Breu.
Silêncio.
VI Ato
Palco iluminado. Atores reorganizando a cena. Colocando as cadeiras nas marcações anteriores.
Gonçalo: Joanna, meu dengo, quero voltar para o ato anterior para dizer que o que tu estava fazendo foi arrumando história para justificar porque não chegou junto logo, mesmo, dessa Bárbara. Tu estava era com medo dela não te querer.
Joanna Mina: Eu já sei que disseram que isso aqui é um teatro, que não é um teatro, e que talvez alguém até use isso para justificar algumas de tuas ações.Mas eu fico é pensando assim, com tanta coisa que aconteceu e que fingimos não ter ouvido, talvez na ilusão, que nem sei se é ilusão, de doer menos, disso tudo, é isso que tu vem recordar?
Anna: A discórdia. (silêncio) Minha gente, um homem que é abusador vocês vão esperar mais o quê? Isso não vale nada não. (rindo) E aquele momento que cantamos aquela música do homem que também chora pra ele. (gargalha) Eu nem sei mais, desde que momento eu dei essa fala (repetindo imitando como se fosse uma personagem que não ela mesma que tivesse dito) “meu titio, ele, meu marido, me abusou”. Chateação também ficar repetindo assim essas moléstias o tempo todo. Inteirim, interim, mas é toda hora mesmo que a gente precisa dizer: “mas isso”, “mas sou mulher”, “mas aquilo”, “mas quero falar”. Affff, cansada. Olha, é assim, Joanna, eu te amo, tu sabe, tô aqui por tu, mas affff cansada. Vamos aprumando logo um fim nisso aqui. Vamos? Bárbara ficou até entalada. (risada) Pensando que Joanna não chegou em tu, né, bb? (Para Gonçalo) Esse homem é um desgraçado. Minha gente, já deu disso aqui. Vamos embora voltar para o melhor de qualquer lembrança nossa e parar de correr pra frente.
Bárbara Poderosa: Eu queria dizer que essa tá querendo desistir porque é branca e porque o que não lhe faltam são recordações de trégua para ela regressar, mas nem quero. Estou exausta. Mas meu lugar possível é sempre à frente.
Anna: É. Tenho mesmo. Vou voltar é pra o dia que esse homem se deitou por cima de mim.
Joanna Mina: Anna, ela não estava querendo dizer que isso não aconteceu não, mulher. Ou que você também não tenha tido sofrimentos. Ela estava querendo fazer uma leitura mais ampla.
Anna: Ah, sei lá! Tô cansada.
Voz off: Papo de mulherzinha. Oh! Viado, o que tu deveria destacar do quinto ato foi que tu teve uma atitude de homem, seu macho!
Gonçalo: Meu pai, o senhor me envergonha, metade dos meus problemas é o senhor.
Bárbara Poderosa: Mata teu pai, menino.
Anna: Mata! Mata! Mata, mata, mata. Mata!
Joanna Mina: Mata teu pai!
As três mulheres em coro. Repetem em som ritmado:
Mata teu pai, mata teu pai, mata teu pai.
As três mulheres gargalham juntas.
Anna: Que divertido. Quase descansei.
As quatro personagens gargalham juntas.
Voz off: Está rindo de quê, Gonçalo? Já viu homem dar risada?! Fecha a boca! Quer que eu coloque meu pau na tua boca? É isso que tu quer, viado?
Breu.
Sons de tiros.
Ouve-se um chiado como se alguém, ouvindo rádio, trocasse de estação.
Não se distingue música, voz, fala, apenas o chiado.
Ouve-se o som de um tiro de caça que acerta um passarinho.
E ouve-se o som da queda do corpo do animalzinho ao chão.
VII Ato
Palco iluminado.
Joanna Mina: O tempo é misterioso mesmo e toda macumbeira guarda mistério. Eu sentia que meu tempo chegava aos prantos. Fui pra Minas sabendo disso. Sabendo do fim. Desci na Vila. Andei por aquelas casas como se não estivesse no tempo do presente. Como se as pessoas que eu encontrava, não fossem as pessoas que eu encontrava. Minha avó tinha feridas, feridas grandes, feridas oceânicas.
Ali naquele chão eu não sei quais do seu reinado podem ter pisado e morrido. Mas que isso havia acontecido eu podia sentir. Da rancharia eu caminhei. Tempo, noite, dia, mistério. Água corrente, frio tão imenso. Mas o sol de toda manhã e aquele aconchego de banho de dendê.
No risco da premonição da manhã eu e Bárbara partimos. Ela foi comigo, fomos juntas. Madrugada, frio, beira rio. Nós de branco, cabeça coberta, cesto, presentes, o cheiro, o assento, Obá! Caminhando. Caminhando. Obá. A recordação daquela pedreira vermelha. A ciência da pedreira. O sonho. Obá. A repetição de nossas histórias. O sonho Obá. Seguíamos em fila.
Nós e mais quantas? Fila fina, comprida, riscando a estrada de preto, branco e verde. Vindas de onde? Era África? Era Sergipe del Rei? Eram as de São Paulo? Filhas de Moxia Carijo? As índias? Quem eram aquelas tantas? Era a água do Recôncavo da Bahia que alinhava nossos corpos ali naquela estrada de pedra? É mistério. Era caminho. Eram as de caminho. Foram mulheres de caminho.
Fomos indo, fomos indo, no alvorecer. Fomos multidão delas. Ali minha avó e tantas. Ali naquela terra plantei voz de enredo que brotarão alastrando terras. E sobre nós, sobre nossos corpos, tiro.
O tiro é antigo, o tiro é arrepio da queimadura. O tiro do homem colonizador. Toda essa história, em qualquer referência de tempo, é tiro. Quem é que dispara a bala que mata? É um homem? Quem mandou matar? Foi um homem? É um homem quem atira? Silêncio. (Para a plateia) Sim eu que digo silêncio. (Anna escreve a palavra “silêncio” e, ao lado de Joanna Mina, levanta a placa. Anna, em silêncio, fica segurando a placa que diz “silêncio”) Silêncio. Eu falo silêncio. Silêncio.
Bárbara Poderosa levanta, fica ao lado de Joanna Mina e as duas falam juntas:
Silêncio.
As três mulheres se posicionam uma ao lado da outra e falam juntas:
Silêncio.
Gonçalo: Vocês ouviram o que papai falou? (ouve-se o chiado de mudança de estação de rádio) Eu fico com muita vergonha. Eu não sei como falar disso. Vocês ouviram o que papai falou? Eu não sei como lidar com esse assunto. (olhando para o alto) Papai, não me abandona. (ouve-se o chiado de mudança de estação de rádio)
As três seguem de pé e enroscam o braço uma na outra, como num fazer frente numa passeata.
Joanna Mina: O primeiro tiro acertou Bárbara Poderosa,eu me virei e vi o vermelho no branco. Eu caí. Os tiros.
Bárbara Poderosa: O sangue. O assento já estava. Obá. Eu estou segura.
Bárbara Poderosa canta.
Bárbara Poderosa: Ofá na mão me protegeu
Ela em mim, essa sou eu
Contas, condão que me envolveu,
Que me envolveu
E o mal do mundo estremeceu
Guerreira negra
Que Olorum, que Olorum,
Que Olorum nos deu⁸
Joanna Mina: A proteção não é a garantia desse tempo corrente. O tempo nosso é outra curva. Corre em espiral. Nossa história já pode ser recordada. É tempo! O assento foi o ato do eco da voz de minha avó. Sua fala. Seu corpo inteiro ferido, aquele cuidado tão imenso. Aquele carinho com o olhar. Aquela proteção tão imensa.
O guardar das feridas à sombra. O proteger com palha aquela idade maior. Aquela compreensão das ondas. As conchas. As conchas que cresciam e lhe sussurravam a vida. Água fresca. Banha, banha, planta história. Deixar renascer teu saber ouvir. Reaprende a saber ouvir. Deixa ouvir. Não se assusta com o embaraçar das vozes da opressão. Segura. É a voz plantada que já começa a enramar.
E elas florirão sobre tuas feridas.
Bárbara Poderosa canta.
Bárbara Poderosa: Ofá na mão me protegeu
Ela em mim, essa sou eu
Contas, condão que me envolveu,
Que me envolveu
E o mal do mundo estremeceu
Guerreira negra
Que Olorum, que Olorum,
Que Olorum nos deu⁹
A luz vai diminuindo e ficando um foco apenas em Joanna Mina.
Joanna Mina: Ficou ali o correr da água nascente. Nosso sangue crescendo terras. Enchendo. Éramos novinhas nessa história que só branco pode envelhecer. Éramos novinhas. Estou hoje aqui por ela, que sou eu mesma. E minha, nossa história, mesmo se sangrada, escorre nascente, caminha longe. Somos histórias de pretas que chegaram longe, onde se pensaram que não iríamos chegar e, ainda onde nem pensaram que não poderíamos chegar, chegamos.
Somos fala agora.
Silêncio para nos ouvir.
VIII Ato
A luz abre em todo o palco. As mulheres se encaminham para suas cadeiras. Gonçalo parece desolado.
Gonçalo: Vocês também pararam de ouvir papai? (chorando) Eu matei papai. Eu matei papai! A culpa foi de vocês. (de pé) Assassinas! Assassinas! Matamos papai! Papai? Papai? Fala comigo, papai.
Anna: Gonçalo, você não entendeu que estamos de luto, não?
Gonçalo: Então vocês já sabiam da morte de papai e não me avisaram nada. (chorando) Papai! Me perdoa, papai. Eu não queria ter brigado com o senhor.
Anna: Gonçalo, Joanna Mina e Bárbara Poderosa acabaram de ser assassinadas. Teu pai deve estar foragido. Dando um tempo para reaparecer. Cala a boca que estamos ouvindo o que elas contam do mundo.
Gonçalo: Você é louca! (confuso com o dedo em riste, de pé) Olha elas aí. Quem não está aqui é papai.
Bárbara Poderosa: Imbecil! Ele nunca esteve.
Gonçalo: Olha aí, Bárbara acabou de falar, como ela pode estar morta. Papai! Papai! Papai o senhor estava certo, papai, isso aqui é mesmo um teatro de mulherzinha. Papai!
Anna: Gonçalo (risada), tá feio. Eu estou até sem saber como te dizer.
Joanna Mina: Tá bom, Gonçalo, para (risada), tá ridículo. Para.
Gonçalo: Joanna, meu amor, Anna quer que eu acredite que você e essa Bárbara estão mortas. (para Anna) Maluca! Doida, que mulher, doida!
Anna: Gonçalo, isso aqui é história. Olha o tempo aí em tua cara. Procura em tua cara, que teu pai deve até tá por aí.
Gonçalo: Maluca! Doida, que mulher, doida!
Joanna Mina: Gonçalo, já falamos sobre isso de acusar as afirmações argumentativas de uma mulher de loucura.
Gonçalo: Na, eu estou dizendo que meu pai não está aqui! Ele pode estar morto. Você não está me entendendo, não?!
Joanna Mina: Meu bem, seu pai…
Bárbara Poderosa: Diz logo.
Anna: Ah, sério, nos poupe de presenciar esse diálogo de vocês dois como se fossem um casal. Horas que digo que isso aqui já deveria ter acabado.
Anna pega o quadro e fica escrevendo repetidas vezes a palavra fim.
Gonçalo: Na, entenda, Anna está com ciúmes que você me escolheu.
As três mulheres dão risada.
Joanna Mina: Gonçalo, eu não te escolhi, eu fui sequestrada, escravizada e vendida. Você me comprou para que eu trabalhasse como escrava nas suas terras.
Gonçalo: Eu te amo, ingrata. Te coloquei na minha cama. Te dei na mão tua carta de liberdade. Tu acha mesmo que eu mereço ouvir desagrado teu? Eu estou te falando que papai pode ter morrido. E você fugindo do assunto?!
Bárbara Poderosa: Tá demais pra mim. Eu não tenho inteligência mais nenhuma pra passar por isso. Eu não mereço!
Gonçalo: Joanna, quem é essa? Sério, olha aqui pra mim, Joanna, (chorando) eu matei papai? A culpa não é minha não, não né? Joanna, eu matei papai.
Joanna Mina: Gonçalo, papai não existe.
Gonçalo se apoia na bengala e vai ao chão de joelhos.
Gonçalo: Perdão, perdão, papai, ela não sabe o que diz.
Anna e Bárbara Poderosa se levantam agoniadas e ficam próximas a Joanna Mina.
Anna: Tá bom, tá bom, vou lá. (caminha até Gonçalo) Oh, titio abusador, é o seguinte, isso aqui é um teatro. Levanta daí, senta na cadeira, senta. (para ninguém) Tragam uma água aqui para ele. (rindo para a plateia) Ninguém venha aqui não, que estou encenando.
Joanna Mina, Bárbara Poderosa e Anna dão risada.
Joanna Mina: Anna, é serio, fala sério.
Anna: Tá, tá, tá bom, agora vou falar. Oh, titio, é o seguinte, teu papai não existe. Cadê ele? Ninguém aqui viu ele. O olho dele é de qual cor? O nariz é torto? A boca tem a marca do AVC? Ninguém sabe. Ninguém!
Gonçalo levanta a cabeça e olha para Anna como tentando entender.
Anna: Não me olha, não, seu verme abusador, quando eu estiver falando com você fique com a cabeça baixa. Você, seu bosta, é quem existe e eu posso descrever cada pedaço dessa tua cara de merda que se deitava sobre mim. Olha aqui, é o seguinte, isso aqui é sério. Papai, papai, papai. O pai deve ser o assassino. As pessoas aqui foram assassinadas. Levanta a cabeça aí olha pra mim. Olha agora que estou mandando. Está vendo minha idade? Foi nesse corpo aqui que você se deitou? Olha, seu verme. Não! Não foi! O meu papai agora sou eu, seu animal! Ai, mas papai sumiu. Acorda, Gonçalo. Teu pai agora já deve ser tu mesmo. E você não o ouve? Não o vê? Talvez porque não tenhamos um espelho aqui. (para ninguém) Tragam um espelho aqui para ele. (rindo para a plateia) Brincadeira. Viu o tempo não? Não notou que o que fizemos foi narrar o passado. Tudo foi lembrança, Gonçalo. Chora porque Joanna e Bárbara nem puderam envelhecer. Chora por isso, seu animal! É possível que não tenhamos tempo nessa história de contar dos nossos fins porque não interessa, estúpido!
Bárbara Poderosa: Exatamente. É possível mesmo. O tempo é curto e já nos alongamos demais. Quisessem mais, nos deixassem mais tempo vivas. Agora não vamos ficar aqui esperando você e esse chorão narrarem mais de trinta anos de vida. Falamos do tempo que em algum momento nos cruzamos e pronto. Acabou.
Gonçalo: Mulher doida. (chorando) Papai.
As três mulheres ficam conversando. E ouve-se delas:
“é uma crise. Sim, uma crise. Sim, ele está vivendo uma crise”.
Breu.
Foco de luz em Bárbara Poderosa.
Bárbara Poderosa: Agora que já fizemos essa distensão psicanalítica para o boy branco ter cena, vamos seguir?
IX Ato
O palco é todo iluminado. Atrizes e ator aparecem se reorganizando em suas respectivas cadeiras.
Joanna Mina: Eu estou vivendo uma dificuldade para concluir. Anna, tu tá delícia, viu.
Bárbara Poderosa: Mas, terminando isso aqui, nós que vamos seguir juntas, viu, Na, não esquece.
Joanna Mina: Sim, claro que sim, meu amor.
Gonçalo: Vocês são maravilhosas.
Bárbara Poderosa: Pronto, que ele já quer uma suruba.
Anna: Minha gente, eu queria ter contado de como foi minha vida no solar. Tudo que eu vivi. Essas coisas assim, sabe…
Joanna Mina: Fica para próxima que essa história é minha.
Joanna Mina fica de pé, coloca o pano sobre o ombro, caminha até o centro do palco. A iluminação geral diminui e acende sobre ela um foco de luz. Ela sorri e acena como majestade. As atrizes e o ator, em corte a Joanna Mina, a aplaudem.