Primeiras Dramaturgias

Nébulas, ou PANDEMIA C.OVÍDIO 1.9

 

It was a rude and undeveloped mass
Ovídio, Metamorphoses, Book 1, line 9

Personagens¹:

Voz
Vozes
Corpos 1, 2, 3, 4, 5, 6, 7, 8, 9 e 10
Estadista 1
Estadista 2
Médica
Walkie-talkie

Dispersão

#escuridão#

(vozes em eco)

aqui
ainda
apenas a possibilidade

here
the possibility²

encore
ici³

mia pithanótita

shù bǎi wàn zhǒng kěnéng xìng

(uma voz)

aqui
ainda
apenas a possibilidade

aqui
a possibilidade

ainda
aqui

uma possibilidade

milhões de possibilidades

(várias vozes)

QUEM você ele fala ela eu falamos QUEM não sei porra! ELES eu vocês falam eles ELES eu não! que porra É ESSA! É ESSA! qual coisa desencarnada O QUE nos fala ISSO pelo qual somos falados essa coisa! ISSO! fala sem sujeito falo falam falamos nem nós nem eles nem vocês tantos falam isso não vai dar certo QUEM ai, essa coisa aí essa coisa está em nós ele fala em nós em mim não O QUE me fala te fala ISSO existe através de mim de você eu não me reconheço assim ela está no meio de nós QUEM fala em nós é nossa voz ninguém fala a minha voz ISSO! já está em você FALA! ela fala eles falam eu falo NÓS não! eu sou eu não sou isso nem vocês deixa falar deixa falar deixa ser isso ele ela eu nós AQUI existir em um outro existir em você que é eu e não é nós FALA para sermos você UMA POSSIBILIDADE uma história isso fala move o tempo move você as palavras MILHÕES DE POSSIBILIDADES quem escuta? alguns nenhum milhares O QUE nos invoca

(início com uma voz e cresce em coro de vozes)

vós
assim bilhões
assim numeráveis
vós
corpos cabeça
braços
perna e pé
vós
de línguas que não falo
escuto
intuo
vós
dos cantos
dos centros
dos confins
vós
inventores
de máquinas
de sonhos
de viagens
de guerras reinos
velocidades
vós
encarnados
que desafiam a natureza
subjugam as leis do universo
assombram os deuses
vós
brutos
que flagelam
céus mares florestas
pedra ar terra
que sobrepujam a si mesmos
e desabam
vós
assim tão poderosos
assim tão frágeis
abissais
aqui
os invoco:

RESPIRA!
RESPIRA!
respira e me recebe
respira e vê um novo mundo surgir
respira e se entrega
e assim
SEJAMOS
ALÉM

#cirrus#

(uma voz, em sussurro)

ssshhhhhhhh!
escuta… o que ainda não tem nome…

Corpo 6 reinicia inspiração profunda e vagarosa.

Corpo 1 realiza expiração demorada.

Corpo 8 inicia inspiração profunda e vagarosa.

Corpo 2 realiza expiração demorada.

Corpo 3 reinicia inspiração profunda e vagarosa.

Corpo 4 realiza expiração demorada.

Corpo 5 reinicia inspiração profunda e vagarosa.

Corpo 6 realiza expiração demorada.

Corpo 7 reinicia inspiração profunda e vagarosa.

Corpo 8 realiza expiração demorada.

Corpo 9 inicia inspiração profunda e vagarosa.

Corpo 3 realiza expiração demorada.

Corpo 1 reinicia inspiração profunda e vagarosa.

Corpo 5 realiza expiração demorada.

Corpo 2 reinicia inspiração profunda e vagarosa.

Corpo 7 realiza expiração demorada.

Corpo 4 reinicia inspiração profunda e vagarosa.

Corpo 9 realiza expiração demorada.

Corpo 6 reinicia inspiração profunda e vagarosa.

Corpo 1 realiza expiração demorada.

Corpo 8 inicia inspiração profunda e vagarosa.

Corpo 2 realiza expiração demorada.

Corpo 10 inicia inspiração profunda e vagarosa.

Corpo 4 realiza expiração demorada.

Corpo 3 reinicia inspiração profunda e vagarosa.

Corpo 6 realiza expiração demorada.

Corpo 5 reinicia inspiração profunda e vagarosa.

Corpo 8 realiza expiração demorada.

Corpo 7 reinicia inspiração profunda e vagarosa.

Corpo 10 realiza expiração demorada.

Corpos continuam por um tempo até todos se tornarem um coro de inspirações e expirações demoradas ritmadas.

Corpo 7 tosse. Corpo 7 volta a inspirar e expirar.

Corpo 6 e 8 olham suspeitos para Corpo 7 e aceleram um pouco suas inspirações e expirações. 

Os outros Corpos também se contagiam e também apressam um pouco suas inspirações e expirações, chegando a uma nova cadência.

Corpo 3 tosse mais arrastadamente.

Corpos 2 e 4 olham de soslaio para Corpo 3, se afastam um passo para o lado, acelerando um pouco mais suas inspirações e expirações. 

Corpo 3 volta a inspirar e expirar também um pouco mais rápido.

Novamente, os outros Corpos também vão acompanhando a aceleração até atingirem um novo ritmo.

Corpo 10 espirra.

Corpos 8 e 9 lançam olhar reprovador ao Corpo 10, se afastam dois passos para o lado e aceleram mais suas inspirações e expirações.

#cirrocumulus#

Entra Estadista 1, terno e gravata, de olhos vendados, desorientado, tateando o vazio enquanto caminha, até que para em um ponto do palco e se volta à plateia.

Estadista 1: Nós temos a situação totalmente sob controle. Tudo está dentro do esperado. Vai ficar tudo bem. Tudo vai dar certo. Estamos em contato com todos os países relevantes. A comissão nacional de saúde e a organização mundial de saúde estão trabalhando incansavelmente e o mercado está otimista. Em breve, tudo voltará ao normal. Ao que tudo indica, quando o tempo esquentar um pouco mais, tudo isso terá passado. Nosso país está se saindo muito bem.

Som de voz saindo por um walkie-talkie. Não é possível identificar o que a voz fala.

Estadista 1: Sim, isso tudo foi inesperado e atingiu o mundo todo. Estamos preparados e continuamos nosso trabalho. Vamos manter a calma. Isso passará. Todos devem ficar calmos. Tudo vai dar certo.

Novamente a voz saindo pelo walkie-talkie se manifesta. Continuamos a não identificar o que a voz fala.

Estadista 1: Obviamente, estamos preocupados, mas não é uma situação alarmante. Ainda que o problema possa se agravar, não há motivo para pânico. Quando muito, isso é só uma gripe sazonal.

A voz do walkie-talkie se manifesta mais uma vez, sem conseguirmos identificar o que a voz fala.

Estadista 1: Não sei se alguém sabe o que é isso de fato. Você pode chamar isso de germe, de gripe, de vírus. Você pode chamar isso de muitos nomes diferentes. Claro, neste momento, temos uma crise, uma pequena crise. Acho até que muito disso é histeria. Por isso, devemos manter a calma. Não podemos entrar em pânico como se isso fosse o fim do mundo. Outros vírus mataram muito mais do que esse e não houve essa comoção toda. Agora, eles! Sim, eles… Eles estão politizando esse vírus.

Voz do walkie-talkie fala, sem podermos identificar o que fala.

Estadista 1: É… de fato, isto é uma pandemia… eu sabia que era uma pandemia muito antes disso ser chamado de pandemia. Meu governo recomenda que todos, a partir de agora, trabalhem e estudem a partir de casa sempre que possível. Evitem reunir-se em grupos. Evitem qualquer tipo de viagem. Evitem comer e beber em bares e restaurantes. Se todos adotarem essas mudanças e sacrifícios, derrotaremos o vírus. Teremos então muito o que comemorar depois. Com várias semanas de ação focada, podemos virar o jogo e fazer nosso país ser grande novamente.

Voz do walkie-talkie fala de novo, sem podermos entender o que fala.

Estadista 1: Atenção! Estamos em guerra! Estamos em guerra com um vírus que nos ameaça. E nos ameaça porque eles – sim, eles – eles não tomaram as providências que deveriam ter sido tomadas. Eles – eles administraram mal a situação e encobriram a disseminação do vírus. Se – eles – tivessem feito seu trabalho direito, o vírus não chegaria a esta magnitude e milhares de vidas poderiam ter sido salvas.

Mais uma vez a voz do walkie-talkie fala, sem podermos identificar o que fala.

Estadista 1: O quê? Não, eu não estou me eximindo de minhas responsabilidades como líder deste país. Desde o primeiro momento, tomei todas as medidas necessárias para o combate ao vírus. Mas o vírus poderia ter ficado restrito onde nasceu, ele poderia ter sido detido no país onde se originou. Na verdade, deveria ter sido extinto na origem, e não foi. Eles – eles sabiam. Eles poderiam ter impedido a morte de centenas de milhares de pessoas no mundo todo. Eles – eles poderiam ter poupado o mundo da queda nesse mal-estar econômico global. Mas, não. Eles – eles não fizeram nada disso. Eles criaram esse vírus para nos derrubar, nos derrubar como nação.

A voz do walkie-talkie se manifesta, sem conseguirmos identificar o que fala.

Estadista 1: Sim, agora o vírus está aí. E nós vamos enfrentá-lo. Mas vamos enfrentar isso com hombridade. Vamos enfrentar o vírus com a realidade. Todos nós iremos morrer um dia. É a vida. Porque (tosse) eu estou aqui por causa de vocês. E vocês estão comigo porque acreditam em nosso país (tosse novamente). Esse vírus é igual a uma chuva. A chuva vem e todos vão se molhar. Cerca de 70% da população vai ser infectada, não adianta fugir. Essa é a verdade. (tosse insistentemente) Pois todos irão se molhar, mas alguns poucos lamentavelmente irão se afogar (tenta segurar tosse). Alguns vão morrer? Vão morrer. Lamento, essa é a vida, essa é a realidade. Mas o país precisa de nós, precisamos seguir. A vida continua. Nossa nação precisa seguir. Chega (tosse) do velho mundo! (tosse se avoluma) Agora… agora será uma nova vida! (tosse e fala com dificuldade) Nosso país será grande novamente (tosse sem parar e sai lentamente de cena, vendado e desorientado, tossindo convulsivamente).

*

Entra médica de jaleco branco, carregando itens de proteção hospitalar como óculos de segurança, máscara de proteção respiratória, traje impermeável de mangas longas, luvas de procedimento. Ela começa a falar pelo walkie-talkie.

Médica: QAP, alguém na escuta?

Ouvem-se somente ruídos de interferência vindos do walkie-talkie.

Médica: Aqui é a operadora 9684, alguém na escuta?

Ouvem-se novamente somente ruídos de interferência.

Médica: Repetindo, aqui é a operadora 9684 se preparando para entrar. Qual a situação?

Novamente só ruídos de interferência.

Médica: QAP, aqui é a operadora 9684, qual a situação?

Mais ruídos de interferência.

Médica (impaciente) QAP, alguém, por favor!

Só ruídos.

Médica (se desesperando): Irresponsáveis!

Médica começa a vestir o traje impermeável sobre sua roupa e continua a dialogar com o walkie-talkie. Entra Corpo 1 que deposita no centro do palco um aquário de vidro vazio com uma miniatura de mergulhador usando escafandro e deixa a cena – a imagem do aquário pode ser projetada de modo ampliado na parede de fundo do palco de modo a se acompanhar mais detalhadamente o que ocorre dentro do aquário.

Médica: Estamos numa guerra e vocês nos abandonam assim? Sabe o que é entrar em campo sem saber o que vamos enfrentar? Claro que vocês não sabem, vocês estão pouco se fodendo. Onde estão as máscaras? As luvas? Onde estão os trajes de segurança? Isto aqui que estou vestindo é do turno de ontem. Sabe o que é ficar com o mesmo equipamento de proteção turno após turno, paciente após paciente? Sabe o que é correr o risco de se infectar e levar o vírus de um paciente pro outro? Sabe?

Enquanto médica fala com o walkie-talkie, entra Corpo 2 com um copo longo de vidro com água atravessando vagarosamente o palco. Corpo 3 entra caminhando pelo lado oposto carregando um copo de vidro vazio. Ao se aproximar de Corpo 2, este despeja um pouco de água do seu copo para o copo vazio de Corpo 3. Corpo 2 se dirige ao aquário e despeja ali o restante da água de seu copo. Corpo 3 segue caminhando com seu copo d’água. Entra Corpo 4 com copo de vidro vazio na direção oposta de Corpo 3. Ao se aproximar deste último, Corpo 4 recebe um pouco da água do copo de Corpo 3. Corpo 3 sai de cena caminhando. Corpo 4 encaminha-se ao aquário, despeja a água de seu copo e sai de cena.

Médica: E onde estão os ventiladores, os insumos de intubação? Precisamos desesperadamente de mais leitos, de mais capacidade de oxigênio. A guerra rebentou e as batalhas são ininterruptas, dia e noite, dia e noite. Um atrás do outro, eles chegam em nossas urgências. Não respiram o suficiente, precisam de oxigênio, necessitam ser internados. Uma após outra, as enfermarias antes vazias agora estão lotadas. E o desastre epidemiológico assim vai se cumprindo.

Enquanto fala, médica começa a vestir as luvas. Entra Corpo 5 carregando uma jarra de vidro com água, vai atravessando vagarosamente o palco. Corpos 6 e 7 entram seguidamente caminhando pelo lado oposto carregando copos de vidro vazios. Ao se aproximar de Corpo 5, este despeja um pouco de água do seu copo para o copo vazio de Corpo 6, que continua sua caminhada na direção oposta até sair de cena. Em seguida, Corpo 7 se aproxima de Corpo 5. Este enche o copo de Corpo 7, que se dirige ao aquário, despeja toda água de seu copo e sai de cena. Corpo 5 vai deixando o palco, mas antes de sair, despeja a água restante de sua jarra sobre a jarra vazia de Corpo 8, que assim entra em cena.

Médica: Os casos multiplicam-se, chegam ao ritmo de 15 a 20 internações diárias, todos pelo mesmo motivo. Os resultados das análises chegam e é só positivo, positivo, positivo. Agora, as emergências estão em colapso. As UTIs estão saturadas. Onde não havia uma, cria-se uma nova. E eles não param de chegar. O motivo, sempre o mesmo, e muitos têm de se internar. Alguns já são entubados e vão para a UTI. Outros, às vezes é tarde… A coisa mais angustiante é vê-los morrer por falta de leito ou de ventilador.

Enquanto continua a falar com o walkie-talkie, médica coloca os óculos de proteção. Corpos 1, 9 e 10 entram em cena de pontos variados com jarras de vidro vazias. Corpo 2, 3 e 4 entram também de variados lados carregando taças vazias de vinho e espumante. Ao irem se aproximando de Corpo 8, este despeja parte da água de sua jarra sobre as jarras de Corpos 1, 9 e 10. Corpos 1, 9 e 10 se aproximam cada um de Corpos 2, 3 e 4 e enchem suas taças. Entram Corpos 5 e 6 com uma taça de vinho ou espumante cada. Corpos 5 e 6 se dirigem cada um a Corpos 2, 3 ou 4. Estes vertem parte da água de suas taças sobre taças de Corpos 5 e 6 e todos os corpos presentes brindam tocando taças umas às outras ou jarras com taças. Corpos 2, 3, 4, 5 e 6 vão aleatoriamente jogando a água de suas taças sobre o aquário no centro do palco, enquanto Corpos 1, 9 e 10 vão enchendo novamente as taças.

Médica: É criminoso não se tomar medidas mais extremas. É irresponsável negar a gravidade da situação. Isto não é uma gripezinha! A população tem de ser prevenida e vocês têm de se convencer que é preciso seguir as recomendações estabelecidas pelas autoridades de saúde. Sem isso, é lutar numa guerra já perdida. Estaremos sempre todos expostos, sem retaguarda. Muitos de nós médicos já foram contaminados apesar dos protocolos. Colegas meus infectaram familiares, e alguns desses familiares já se debatem entre a vida e a morte. É devastador! Gerentes e governos nos dizem que tudo vai ficar bem, que tudo está sob controle. Mas aqui, aqui não vemos que tudo está bem, aqui não vemos que tudo está sob controle. Estamos atordoados. Sentimos a obrigação de tratar e cuidar de nossos pacientes, mas também não queremos ficar doentes, nem deixar nossos queridos doentes. Somos soldados numa guerra, sendo enviados sem armas e sem munição. Estamos ficando doentes, estamos morrendo. Nossas famílias estão ficando doentes, estão morrendo. Nossos pacientes estão doentes e estão morrendo. Onde estão vocês quando mais precisamos?

Enquanto continua a falar com o walkie-talkie, médica coloca a máscara de proteção. Gradativamente os Corpos presentes se comportam como se estivessem numa festa, brindando incansavelmente, soltando risadas e fazendo sons de burburinho. Continua o encher e esvaziar de taças até aquário atingir quantidade de água suficiente na qual a miniatura de mergulhador passe a flutuar.

Médica: Como conseguimos chegar a esse ponto? Isso tudo é muito desgastante. Estamos aqui na linha de frente, exaustos. Estamos esgotados diante deste tsunami que nos assolou. Vou entrar para mais um turno e não sei mais como será meu dia de hoje ou de amanhã…

Walkie-talkie (de repente): Amanhã! Amanhã! (Seguem-se mais ruídos.)

Todos no palco se sobressaltam. Médica se sobressalta. Corpos presentes cessam de fazer o que estavam fazendo e ficam imobilizados e em silêncio por alguns instantes diante da manifestação do walkie-talkie. Em seguida, Corpos passam a derramar todo o conteúdo de seus copos, taças e jarras dentro do aquário até a água transbordar. Corpos saem de cena e trazem de volta ao palco o capacete de um escafandro e seu respectivo macacão. Médica então é vestida pelos Corpos presentes, que acrescentam o macacão e o capacete sobre as vestimentas hospitalares. Quando médica finalmente recebe sobre sua cabeça o capacete de escafandro, como se fosse uma coroa, ela se retira do palco, com todos os corpos a seguindo.

*

Walkie-talkie no palco. Ainda ruídos de interferência vindos do walkie-talkie.

Walkie-talkie: Ninguém predisse, mas o raio caiu aqui. Podia ter sido em qualquer lugar, mas o raio acabou caindo aqui. Bem aqui. Ninguém está livre desse risco. Qualquer um pode ser a próxima vítima. Probabilidade: uma em um milhão. Aqui, eu. Começou assim com uma irritação na garganta, como se eu tivesse comido algo muito gelado. Daí veio uma dor no corpo, uma pressão aqui nos olhos e na cabeça. Então chegou um cansaço miserável e muita, muita fraqueza. Ah, febre também, 38 graus. Minhas articulações ficaram impossíveis e tomar banho passou a ser um trabalho hercúleo. Comecei a sentir dor nos pulmões quando respirava. E quando comecei a tossir e a ter falta de ar, ah, aí já era mais do que hora, corremos ao pronto-socorro. Ao me verem chegar, parecia que uma tempestade havia arrebentado sobre a emergência. Vieram me receber como se eu estivesse chegando de outro mundo: de máscara branca, capacete de plástico, luvas e um traje azul usado por cima do uniforme normal deles. Foi assustador. Fui imediatamente internada. E pensei: estou morrendo. É mesmo uma coisa alarmante sentir que todos estão com medo de você. Ali, no meio da confusão da internação, foi a última vez que vi meu filho. A partir dali, isolamento total. Só médicos e profissionais de saúde entravam e saíam rapidamente do meu quarto. E eu sentia o medo deles. Medo de se contaminarem, medo de não ter boas notícias para me dar. Mas havia aqueles que tentavam me dar um pouco de ânimo, como o médico cubano que sempre me chamava de abuelita. Ele olhava meus exames, abria um sorriso e brincava, ay, ay, ay, abuelita, si no mejoras, me van a enviar de vuelta a Cuba, qualquer coisa assim. Eu estava tão fraca que nem conseguia responder. Quando eu ainda conseguia falar, me contaram que a enfermeira da manhã, sempre a primeira pessoa do dia a me visitar, também estava doente. Não seria mais ela a me dar bom dia. Isso me deu uma angústia: será que ela teria ficado doente por causa de mim? E meu filho, será que também não estaria infectado por causa de mim? Essa coisa entrou no meu corpo e eu nem sei dizer de onde ou de quem eu peguei isso. Como eu disse, foi um raio fulminante. Isso entra em seu corpo e sem mais nem menos toma conta de você e dos seus pulmões. Nos últimos dias, estava tudo muito ruim. Os resultados dos meus exames só pioravam. Eu estava com febre e dormia sentada pra tentar respirar melhor. Comecei a sentir medo de que eu não iria ver meu filho mais uma vez. Nem iria voltar a cuidar das minhas plantinhas ou cantar no coral da capela. Fui ficando com medo, me apavorando e queria dar um último abraço nos meus netos. Queria terminar de costurar o meu vestido pra festa da Zora, minha amiga de infância. Queria ter deixado o dinheiro da faxina da Elza lá na mesinha da sala. Eu queria tanta coisa… Quando me colocaram no ventilador, passei a maior parte do tempo sedada. Encontrei um certo conforto interior, um infinito interno desmedido, indo, indo, indo. Como um copo, fui me enchendo de pouquinho em pouquinho até transbordar. Acho que ouvi um chorinho miúdo de uma enfermeira no corredor em algum momento. Não tenho recordações muito claras. Tenho a impressão de que eu queria cantar, mas eu já não conseguia mais controlar nenhuma parte do meu corpo. Devo ter morrido em silêncio. Assim me tornei mais um número dentro das estatísticas. E uma outra pessoa então tomou meu lugar no hospital.

Walkie-talkie volta a emitir ruídos de interferência.

condensação

#altocumulus#

Corpo 3 entra com uma bacia junto com Corpo 4 que carrega uma jarra com água. Corpo 3 deposita a bacia sobre o chão e Corpo 4 começa a derramar um filete de água sobre a bacia. Corpo 3 inicia a lavagem de suas mãos de acordo com as orientações da Organização Mundial de Saúde (OMS) de prevenção ao Sars-CoV-2. Corpo 3 molha as mãos com o filete de água e as fricciona entre si. Esfrega a palma da mão direita contra o dorso da mão esquerda, entrelaçando os dedos e faz o mesmo contra o dorso da mão direita. Ele entrelaça os dedos de modo a friccionar os espaços entre eles, depois segura os dedos uns nos outros com as mãos em concha, fazendo movimentos de vai-e-vem. Em seguida, esfrega o polegar esquerdo com a mão direita encobrindo todo o dedo e fazendo movimentos giratórios. Faz o mesmo com o polegar direito. Fricciona o meio da palma esquerda com as unhas da mão direita, fazendo movimentos circulares e repete o mesmo com a palma da mão direita. Esfrega o pulso esquerdo com a mão direita e depois faz o mesmo com o pulso direito. Então enxágua as mãos com a água derramada da jarra por Corpo 4. Corpo 3 reinicia a operação de lavagem das mãos e assim vai.

Entra Corpo 5 com outra bacia e, ainda com a bacia em suas mãos, Corpo 4 despeja um pouco de água sobre ela. Corpo 5 banha os dedos médio e indicador da mão direita e faz o sinal da cruz. Enquanto faz o gesto, sussurra “Em nome do pai, do filho e do espírito santo”. Corpo 5 repete continuamente o movimento.

Entra Corpo 6 com outra bacia, em cujo interior há uma concha de água em bambu. Ele deposita a bacia no chão e Corpo 4 derrama um pouco de água sobre ela. Corpo 6 apanha a concha de bambu e a enche com a água da bacia. Pegando a concha com a mão direita, ele despeja uma pequena quantidade de água sobre a mão esquerda. Agora pegando a concha com a mão esquerda, despeja um pouco de água sobre a mão direita. Com a concha novamente na mão direita, despeja um pouco de água na concha da mão esquerda e enxágua a boca. Mais uma vez, despeja um pouco de água sobre a mão esquerda. Em seguida, vira a concha na vertical para que a água restante lave a alça da própria concha

Por fim, esvazia completamente todo o conteúdo da concha. Todo o conjunto de ações deve ser realizado com uma única concha de água. Corpo 6 reinicia o processo e assim vai.

Entra Corpo 7 com outra bacia, em cujo interior há uma jarra de prata. Ao colocar a bacia no chão, Corpo 4 verte um pouco de água dentro da jarra de prata. Corpo 7 pega a jarra de prata e molha as mãos, uma de cada vez. Assim, inicia a lavagem das mãos conforme as instruções da OMS. Enquanto realiza o processo, reza em voz baixa o seguinte:

enquanto lavo estas mãos
rezo,
abençoada é a alma do universo,
que nos faz inspirar e expirar.
que nossas respirações continuem
e a minha saúde e a saúde de todos
sejam preservadas
neste tempo de enfermidade e medo.
senhor,
assumo assim minha responsabilidade
de observar a obrigação de lavar as mãos
pelo tempo necessário de fazer esta oração.
assim seja

Corpo 7 então repete a operação toda, substituindo a oração acima pela recitação de Barukh atah adonai eloheinu melekh ha-olam asher kidshanu b’mitzvotav v’tzivanu al netilat yadayim.

Entra Corpo 8 com outra bacia e a coloca ao chão. Corpo 4 se aproxima e começa a verter água sobre a bacia de Corpo 8. Este começa a recitar o bismillah – bi-smi llāhi r-raḥmāni r-raḥīmi, Deus, o Clemente, o Misericordioso – ininterruptamente. Então Corpo 8 lava a mão direita até o pulso (e entre os dedos) três vezes, depois faz o mesmo com a mão esquerda. Segue lavando a boca e cuspindo a água três vezes. Depois, esfrega os dentes com um dedo indicador. Com a mão direita junta um pouco de água e a aspira pelas narinas, soprando e retirando o excesso de água com a ajuda da mão esquerda. Faz isso três vezes. Ele então lava o rosto, da testa até o queixo, três vezes. Passa a lavar o braço direito, indo da mão até o cotovelo também três vezes. Faz o mesmo com o braço esquerdo. Em seguida, passa os dedos de uma mão entre os dedos da outra mão. Com as mãos molhadas, passa por toda a cabeça da testa até a nunca e retorna da nunca até a testa. Com o indicador de cada mão, realiza a lavagem da parte exterior da orelha, indo dos ouvidos e seguindo com as voltas da orelha. Na mesma operação, os polegares passam por fora das orelhas. Corpo 8 reinicia a operação.

Entram Corpos 9 e 10 levando sob os ombros ou cabeças vasos brancos gigantes com água de cheiro e flores brancas, dançando e cantarolando o canto de Oxalá¹⁰. Após passearem pelo palco por entre a performance de outros Corpos, param em um dos cantos do palco e começam a derrubar a água de cheiro sobre o chão. Corpos 1 e 2 logo em seguida entram munidos de vassouras e começam a esfregar o piso e a espalhar a água de cheiro. Corpo 4 emborca sua jarra e, quando a esvazia jogando a água restante sobre o chão, se retira do palco. Corpo 3 então emborca sua bacia e, levando o objeto consigo, se retira do palco. Corpo 4 retorna com um vaso branco de água de cheiro e flores brancas, junta-se a Corpo 9 e 10 e começa a despejar a água de seu vaso sobre o palco e a cantar o Canto de Oxalá. Nesse ponto, o cheiro de arruda e alfazema já toma conta do ambiente. Corpo 5 também emborca sua bacia, deixando o palco com o objeto. Corpo 3 retorna com uma vassoura e se junta a Corpos 1 e 2. E assim por diante, Corpos 6, 7 e 8 vão sucessivamente emborcando suas bacias e depois retornam com um vaso branco de água de cheiro e flores brancas ou uma vassoura. Quando todos já estão entoando o canto de Oxalá, Corpo 10 vem à frente do palco e recita a oração do Senhor do Bonfim.

Corpo 10:

meu senhor do bonfim
que sobre as águas andastes

treme a terra
mas não treme o coração
do nosso senhor jesus cristo
treme o coração
de meus inimigos

quando para mim olharem
eu os benzo em cruz
eles
eles não benzem a mim

entre o sol e a lua
entre as estrelas e as pessoas da santíssima trindade
pai, filho e espírito santo
na travessia
avisto os meus inimigos

com o manto da virgem maria santíssima
sou coberto
com o sangue do nosso senhor jesus cristo
sou valido

se quiserem atirar
água pelo cano da arma há de correr
assim como correu o leite do peito de maria santíssima
para a boca do seu filho adorado
outras armas que à mim levantarem
ficarão suspensas
e não me atingirão
assim como ficou maria santíssima
ao pé da cruz
esperando seu bendito filho

corda que em mim botar nos pés há de cair
porta que a mim trancar há de se abrir
assim como se abriu
o sepulcro do nosso senhor jesus cristo
para ele alçar aos céus

salvo fui
salvo sou
e salvo serei
com a chave do santíssimo sacrário
me fecharei
salvo fui
salvo sou
e salvo serei
com a chave do santíssimo sacrário
me fecharei
salvo fui
salvo sou
e salvo serei
com a chave do santíssimo sacrário
me fecharei
amém.

#fractocumulus#

Walkie-talkie no palco emitindo ruídos de interferência. Entra Estadista 2, usando máscara sobre os olhos e não sobre nariz e boca, novamente desorientado, tossindo e tateando o vazio enquanto caminha, até que para em um ponto do palco e se volta à plateia.

Estadista 2: Não, chega desse assunto. Agora tudo é pandemia? (tosse) Sim, lamento os mortos, mas como já disse todos nós vamos morrer um dia. É o destino de todos. (tosse mais demoradamente) Infelizmente, todos vamos pegar esse vírus um dia. É fato. Não adianta fugir, temos de seguir em frente.

Walkie-talkie se manifesta por meio de sons que não são possíveis de identificar.

Estadista 2: Não, pelo contrário, nosso governo tem prestado todo o apoio possível. Mas temos de voltar à ativa. (tosse) Temos de enfrentar os problemas de frente, chega de frescura e de mimimi. Vamos ficar chorando até quando? (tosse novamente) Temos de enfrentar os problemas. Isso de ficar em casa é para os fracos.

Walkie-talkie novamente se manifesta, mas não é possível identificar o que se fala.

Estadista 2: Olha, essa história de usar máscara e não apertar a mão do seu próximo, não tem nada cientificamente comprovado. Cada um tem a sua opinião. Eu tenho a minha e vou continuar a apertar a mão do povo, porque eu vim do povo. Eu sou o povo. (tosse demoradamente).

Mais uma vez walkie-talkie se manifesta e continuamos a não entender o que se fala.

Estadista 2: Sim, tem isso agora de segunda ou terceira onda. (tosse) Eu tenho o poder de, numa canetada, impor um lockdown no país todo, mas não o farei. É muito mais fácil criar histeria e fazer demagogia diante de uma população assustada do que falar a verdade. Isso custa popularidade. Eu não me aproveito do medo das pessoas para fazer politicagem num momento como esse. Isso é coisa de covarde. A demagogia acelera o caos (tosse pesadamente por um longo tempo).

Voz do walkie-talkie fala de novo, sem podermos entender o que fala.

Estadista 2: Não, somos incansáveis na luta contra o coronavírus. Mas, veja bem, temos dois inimigos, o vírus e o desemprego. (tosse) É uma realidade. E não é ficando em casa que vamos solucionar estes problemas. Se ficar fechando tudo quanto é negócio, a economia vai quebrar e seremos um país de miseráveis. (tosse novamente) Depois, só quando lá na frente estivermos com milhões e milhões de desempregados é que vamos ver a conta do vírus.

Médica (entrando toda paramentada com seu escafandro, com capacete interligado a inúmeros tubos, que são carregados e arrastados até o palco por Corpos 1, 2, 3, 4, 5, 6, 7, 8, 9 e 10): BASTA!

Estadista 2 (surpreendido): Quem fala?

Corpo 1: Ela fala eu falo.

Corpo 2: Eu eles falam.

Corpo 3: Ela fala nós.

Corpo 4: Eles falam ela fala eu.

Corpo 6: Eu ela ele nós.

Corpo 7 retira máscara dos olhos de estadista e retorna a seu lugar. Estadista 2 se surpreende com a visão de todos.

Médica (abrindo o visor do escafandro e se dirigindo a estadista): Eu o acuso

Corpo 8: de minimizar a gravidade da pandemia.

Médica: Eu o acuso

Corpo 9: de não adotar as medidas necessárias para enfrentar o vírus.

Médica: Eu o acuso

Corpo 10: de politizar a pandemia.

Médica: Eu o acuso

Corpo 1: de não garantir os insumos médicos e hospitalares.

Enquanto recebe acusações, Estadista 2 vai enrijecendo seus movimentos e vai alterando seu semblante para expressões de terror.

Médica: Eu o acuso

Corpo 2: de não oferecer alívio aos mais vulneráveis.

Médica: Eu o acuso

Corpo 3: de não fazer a testagem ampla da população.

Médica: Eu o acuso

Corpo 4: de não ter um plano para enfrentar a pandemia.

Médica: Eu o acuso

Corpo 5: de promover medicamentos sem evidências científicas comprovadas contra o vírus.

Médica: Eu o acuso

Corpo 6: de promover a desinformação da população.

Médica: Eu o acuso

Corpo 7: de tornar nosso país o berço de novas variantes.

Estadista 2 continua a enrijecer lentamente seus movimentos e postura em manifestações faciais de terror.

Médica: Eu o acuso

Corpo 8: de não seguir as recomendações estabelecidas pelas agências de saúde.

Médica: Eu o acuso

Corpo 9: de negligência na aquisição das vacinas.

Médica: Eu o acuso

Corpo 10: de não proteger as nossas vidas.

Estadista 2 vai se imobilizando em uma postura estática com um dos braços apontando à figura da médica.

Médica: Eu o acuso de me tornar isso que sou. De estar aqui neste lugar e ser este ser monstruoso, decidindo sobre a vida e a morte. Eu o acuso de abandonar todos aqueles que passaram pelas UTIs e não resistiram. Eu o acuso de não lamentar todos aqueles que não puderam se despedir de seus companheiros ou companheiras, de seus filhos ou seus pais. Eu o acuso de nos tornar testemunhas de todos os que tombaram e se tornaram sombras sem serem pranteados ou abraçados. Eu aqui me levanto e te exponho, para que você seja lembrado das consequências de seus atos. Pois todos nós merecemos ter a chance, em nosso momento derradeiro, de ainda sonhar em ser abraçados.

Walkie-talkie: Abraçados… abraçados…

Neste momento, Estadista está com um dos braços levantado apontando para a médica, completamente transformado em estátua. Médica fecha o visor de seu escafandro e sai vagarosamente de cena, arrastando os tubos de respiração. A figura petrificada do Estadista 2 é levada do palco por Corpos 1 e 2. Uma miniatura de estátua do Estadista 2 é então projetada de modo ampliado ao fundo do palco. Enquanto isso, Corpos 3, 4, 5, 6, 7, 8, 9 e 10 vestem-se com itens de proteção hospitalar como óculos de segurança, máscara de proteção respiratória, traje impermeável de mangas longas, luvas de procedimento. Em seguida, começam a abraçar uns aos outros e a descer até a plateia para abraçar também os espectadores em trajes completos de proteção.

Precipitação

#stratus#

Walkie-talkie no palco. Ouvimos novamente trecho do pronunciamento de Estadista 1 pelo walkie-talkie: “Esse vírus é igual uma chuva, a chuva vem e todos vão se molhar… (interferência) todos irão se molhar” (mais interferência). Miniatura de estátua de Estadista 2 com braço erguido apontando para algum lugar ainda permanece projetada ao fundo do palco.

Corpo 3 (de máscara anti-gás, carregando um guarda-chuva fechado, inicia canto):
靜坐人海 你我非不怕
會畏懼這樣下去怎辦
但是人生 到了這一晚
更怕未表白內心呼喊
站在前方 勇氣驅不散
卻信越怕命運更黯淡
但是誰想 要看穿荒誕
卻會在催淚下睜開眼
一起舉傘 一起的撐 (Corpo 3 abre o guarda-chuva)
一起儘管不安卻不孤單 對嗎¹¹

Corpos 4, 5 e 6 (também de máscara anti-gás e carregando um guarda-chuva cada, se juntam à canção sucessivamente, mas se mantêm à distância uns dos outros):
Holding our umbrellas
Support with our “Hands Up”
Let’s fight for what we deserve with courage
Let the rain pour
it won’t drown our dreams
Let our umbrellas blossom like flowers (Corpos 4 abre seu guarda-chuva também)
They will not wither nor disperse
For the sake of tomorrow

Holding our umbrellas (Corpos 5 abre seu guarda-chuvas)
Let’s support each other
Although unsettling
we’re not alone

Holding our umbrellas (Corpos 6 abre seu guarda-chuvas)
Let’s support each other
Support with our “Hands Up”
Let’s fight for what we deserve with courage
Let the rain pour
Let the rain pour
it won’t drown our dreams
Let our umbrellas blossom like flowers

Ouvem-se aplausos efusivos por um longo tempo.

Entra Corpo 7 com uma bandana vermelha, dobrando-a e amarrando-a de modo a torná-la uma máscara sobre o próprio rosto. Corpo 7 se junta a Corpo 3 sob o guarda-chuva.

Entra Corpo 8 com um lenço e dois prendedores de cabelo, dobrando o lenço de tal modo que acopla os prendedores de cabelo nas suas pontas e colocando a máscara assim confeccionada no palco sobre o próprio rosto¹²

Corpo 8 se junta a Corpo 4 sob o guarda-chuva.

Corpos 3, 4, 5, 6, 7 e 8 batem palmas por algum tempo.

Entra Corpo 9 com um filtro de café, dois elásticos e fita adesiva, montando sua máscara no palco e a colocando sobre o rosto. Corpo 9 se junta a Corpo 5 sob o guarda-chuva.

Todos então se agrupam no centro do palco de guarda-chuvas abertos.

Ouve-se a partir daí panelaço por um longo tempo. Opcional aqui gritar “Fora Bolsonaro!” e outros afins.

Sirene é acionada. Corpos 3, 4, 5 e 6 fecham seus guarda-chuvas. Corpos 1, 2, e 10 vestidos em uniformes de força de controle e máscaras, entram no palco com cassetetes em mãos e começam a dispersar o grupo, não permitindo ninguém ficar a menos de 2 metros de distância um do outro.

Corpos 3, 4, 5, 6, 7, 8 e 9 batem panela.

O palco se torna um campo de batalha entre força de segurança e outros Corpos.

Ao centro, Corpo 1 da força de segurança prende Corpo 3, algemando suas mãos nas costas e o derrubando ao chão. Corpo 3 é colocado de decúbito frontal e Corpo 1 força seu joelho esquerdo sobre a garganta de Corpo 3.

Corpo 3: Eu não fiz nada grave
Cara, meu rosto
por favor
eu não consigo respirar
por favor, cara
por favor, alguém
por favor
Eu não consigo respirar
Eu não consigo respirar
por favor

Walkie-talkie (acoplado no uniforme de Corpo 1): por favor… por favor…

Corpo 3: Cara, eu não consigo respirar
meu rosto
sai de cima
eu não consigo respirar
por favor
eu não consigo respirar, porra
eu vou…
eu não consigo me mexer
mãe
mãe
eu não consigo
meu joelho
meu saco
eu vou morrer
eu vou morrer
me sinto mal
meu estômago dói
meu pescoço dói
tudo dói
alguém me dê água

Walkie-talkie: Água… água…

Corpo 3: por favor
por favor
eu não consigo respirar
policial
não me mate
cara, eles vão me matar
por favor
eu não consigo respirar
eu não consigo respirar
eles vão me matar
eles vão me matar
eu não consigo respirar
eu não consigo respirar
por favor, senhor
por favor
eu não consigo respirar

Walkie-talkie: Respirar… respirar…

Corpos 2, 4, 5, 6, 7, 8, 9 e 10 entram em cena novamente e se amontoam simulando puxar e esticar cordas que vêm do lado esquerdo das coxias. Miniatura de Estadista 2 continua ampliada ao fundo do palco e aparece amarrada por fios, sendo puxada pela direita. Possibilidade de intercalar imagens de estátuas sendo derrubadas nas cidades de Boston, Santa Fé, Richmond e Alabama, nos Estados Unidos, e de Bristol, Oxford e Liverpool, no Reino Unido, em decorrência do movimento Black Lives Matter. Corpos juntos simulam puxar as várias cordas com todas as suas forças, simulam puxar as cordas em conjunto no palco, até que a imagem projetada da miniatura do Estadista 2 tomba. Corpos comemoram. Uma granada do tipo gás lacrimogêneo é lançada e enche o palco de fumaça até cobrir toda a cena.

#cumulonimbus#

Corpo 2 (inicia canto):
Stamattina mi sono alzato,
o bella ciao, bella ciao, bella ciao ciao ciao,
Stamattina mi sono alzato
E ho trovato l’invasor.

(Canção Bella Ciao, versão partigiano, mas que pode ser interpretada no estilo solo cantado por Giovanna Daffini ou Giovanna Marini.)

Corpos 4 e 5 se juntam ao canto

O partigiano portami via
o bella ciao, bella ciao, bella ciao ciao ciao,
O partigiano portami via
Che mi sento di morir.

Corpos 3 se junta ao canto.

E se io muoio da partigiano
o bella ciao, bella ciao, bella ciao ciao ciao,
E se io muoio da partigiano
Tu mi devi seppellir.

Corpos 6 se junta ao canto também.

E seppellire lassù in montagna,
o bella ciao, bella ciao, bella ciao ciao ciao,
E seppellire lassù in montagna
Sotto l’ombra di un bel fior.

Corpos 7 e 8 juntam-se ao canto, trazendo vasos de flores de narciso e os depositando no palco.

E le genti che passeranno
o bella ciao, bella ciao, bella ciao ciao ciao,
E le genti che passeranno
Mi diranno o che bel fior.

Corpos 9 e 10 juntam-se ao canto, também trazendo vasos de flores de narciso e os depositando no palco.

È questo il fiore del partigiano
o bella ciao, bella ciao, bella ciao ciao ciao,
È questo il fiore del partigiano
Morto per la libertà.

Canção é repetida, até que Corpos em coro vão entrando e saindo, trazendo mais vasos de flores de narciso, depositando-os sobre o chão até todo o palco ficar repleto de flores. Vasos de narciso também são entregues a pessoas da plateia que podem escolher levá-los ao palco ou não. Coro se retira, ficando somente as flores. Chove sobre as flores.

FIM

Junho de 2021

Notas

1 Agradeço imensamente a sensibilidade e a confiança de Xyko Peres, sem as quais este texto não chegaria onde chegou. Também agradeço aos membros do coletivo “Não é o fim, mas é tudo o que temos”, Juliana Birchal e Roger Lombardi, por seus comentários durante o processo de escrita.
2 Inglês: aqui / a possibilidade
3 Francês: ainda / aqui
4 Grego: uma possibilidade
5 Mandarim: milhões de possibilidades
6 Referência ao ritual de lavagem das mãos e da boca antes de se adentrar um templo xintoísta, chōzuya.
7 Referência ao ritual judaico de lavagem das mãos, netilat yadayim.
8 Tradução: Bendito seja o Senhor, nosso Deus, governante do universo, que nos santificou com seus mandamentos e nos instruiu a lavar as mãos.
9 Referência ao ritual islâmico de lavagem do corpo, wudu.
10 Pode se basear na versão de Rita Ribeiro, em Tecnomacumba.
11 Raise the Umbrellas, um dos hinos das manifestações de 2014, a Umbrella Revolution, em Hong Kong. (hktvumbrellarevolution.wordpress.com/2015/01/30/umbrella-revolution-de-facto-theme-song-lyrics-english-translation/)
12 Ver www.huffpostbrasil.com/entry/como-fazer-mascara-tecido_br_5e8bcdaac5b62459a92dc7fe.
13 Idem.
14 Canção Bella Ciao, versão partigiano, mas que pode ser interpretada no estilo solo cantado por Giovanna Daffini ou Giovanna Marini.