Primeiras Dramaturgias

Sacarose

“Muitos criticam o Brasil imperial
por ter difundido uma espécie de bovarismo nacional,
grotesco e sensaborão,
esquecem-se de que o mal não diminuiu com o tempo;
o que diminuiu,
talvez,
foi apenas nossa sensibilidade a seus efeitos.”
Sérgio Buarque de Holanda, Raízes do Brasil 

Prólogo

Entra em cena vestindo um smoking on black.
Por cima deste, um casaco sobretudo que remete à alta patente de algum exército europeu do final do século XVIII.
Não tem calçados.
Com uma das mãos, arrasta um saco de estopa grande e pesado.
Na outra, traz um pedaço de caule de cana-de-açúcar envolto em um pão francês.
Está comendo a planta.

Começa a falar mas não soa.

Fala.

Fala.

Não soa.

Cólera: flagelo emergente da tentativa de soar.

Fala.

Não soa.

Todo o corpo é acionado.

Não resulta.

Destrói com os dentes o caule da planta.
O bagaço e o pão são cuspidos no chão.

Não soa.

Gestos intensificam-se no decorrer da repetição.
Executa partitura aumentando velocidade gradativamente.

Respira.

Ar.
Ar.
Ar.

Não soa.

Vai até o saco de estopa.
Verte o conteúdo no palco.
Cana-de-açúcar!
Come em velocidade crescente.
Regurgita.

Ar.

Ar.

Som!

Consoantes,
vogais,
um gramelô ininteligível.

pe-que-nas

la
bas.

Grita.

Agudo
forte
potente
cheio.

Grita.
Corre pelo palco, pula, arrisca-se em acrobacias, movimenta-se a partir da partitura apresentada previamente.
Balbucia palavras em francês em meio ao gramelô.
De joelhos no chão olha pra cima:

Grita.

O riso cresce.
Repete a partitura enquanto balbucia as mesmas palavras
em meio ao mesmo gramelô.
Perde-se em seu fluxo respiratório.

Ar.

Ar.

Fala!

I
Ceci n’est pas une pipe

Títulos projetados em cena.

Sob a luz

Voz imponente:

O discurso é realizado em francês enquanto a legenda recorta seu corpo.

“Soldats de ma vieille garde,

Je vous dis ‘adieu!

Vous étiez mes compagnons
sur le chemin de l’honneur
et de la gloire.
Vous n’avez jamais cessé
d’être des modèles de
courage
et de fidélité.

Je dois partir!
Mais vous,
continuez à servir la patrie.
Votre bonheur,
votre progression,
ma seule pensée,
doit rester l’objet de vos désirs.

Que ces mots germent dans vos cœurs.

Au revoir!”

“Soldados da minha velha guarda,

Eu vos digo adeus!

Vocês foram meus companheiros
no caminho da honra
e da glória.
Nunca deixaram
de ser modelos de
coragem
e fidelidade.

Eu devo partir!
Mas vocês,
continuem a servir à PÁTRIA.
Sua felicidade,
seu PROGRESSO,
meu único pensamento,
devem permanecer objetos de vossos desejos.

Que essas palavras germinem em vossos corações.

Adeus!”

Retira-se do foco de luz que se mantém aceso. 

Senhoras e senhores, este é Napoleão Bonaparte!

Pausa.

Este é Napoleão Bonaparte, senhoras e senhores,
renunciando ao trono oriundo da revolução
que vinculou à ideia:
PROGRESSO 
o lema:
Liberté, Égalité et Fraternité

Pausa.

Perdão!
Eu me equivoquei. 
Este não é Napoleão Bonaparte.
Não!
Senhoras e senhores, esta é a renúncia de Napoleão 
Não
É a ruína da revolução que

Entoa um trecho do refrão de “La Marseillaise”.

A queda da Bastille
L’illuminisme
Human Rights 
Não!

Outros trechos do hino de “La Marseillaise” emergem recortando sua fala. 

Livres e iguais perante a lei; 
Aquela revolução que  

Canta mais uma vez o refrão de “La Marseillaise” 

Sequestrou o rei,  
levou-o para praça pública,
cortou-lhe a cabeça! 

Faz gesto de guilhotina com o braço repetindo-o até a exaustão. Grita: 

Liberté, Égalité et Fraternité!

Pausa.

Observa o resultado de sua ação como se estivesse diante da cabeça de um monarca caída no chão. 

Reis!
Detentores seculares de um poder absoluto.
Diante deles, quem seria Napoleão? 
Um usurpador?
Uma fraude? 
Um caso raro de aventureiro que chega sozinho ao cargo mais alto de um Estado?
Um self-made man”? 
Um empreendedor de sucesso?
Não!
Não só isso, senhoras e senhores!
A ascensão do pequeno oficial do exército a grande imperador dos franceses foi gatilho para um fenômeno que marcaria definitivamente a história deste ocidente. 
Um fenômeno coletivo de delírios paranóicos conhecido por alguns como: bovarismo.

Artesãs do comércio local, 
padeiros, 
confeiteiras, 
açougueiros, 
bicheiros,  
microempreendedores individuais, 
escritoras, 
burgueses em ascensão, 
generais da ativa!  
Tout! 
Tout le monde! 
Sob efeito contagiante 
de poderosa ilusão que nos faz crer sermos aquilo que não somos!
Vivia-se, naquele momento:
surto de identificações psicóticas com a figura megalomaníaca do imperador! 
Tout le monde! 
Crentes em ser o próprio Napoleão! 
Não havia dúvidas
nos pensamentos tampouco nas ações.
Hesitar era um verbo expatriado.
Em contraponto
Falavam com vozes imponentes; 
Reproduziam discursos imperialistas, 
Travavam lutas e duelos a troco de nada, 
Colocando em risco aquilo que de fato era real. 
Tout le monde muito doido! 
Malucão, mesmo!
Doidão! 
Tré-lé-lé das ideias! 
CRAZY AS HELL!

Alguém aqui, por algum desvio do acaso, já se sentiu assim? 
Alucinando? 
Com os pés longe do chão? 
Fora daquilo que chamam por aí de real? 
Às vezes é difícil identificar,
Cada louco traz em si o seu mundo e aquilo que fomos antes da loucura é muito distante do que viremos a ser depois. 
Uma mudança que não sentimos quando começa e quase nunca acaba. 

Mas talvez vocês estejam percebendo.
Alguém aqui já se dedicou intensamente a pensamentos obsessivos, 
sobre os quais torna-se impossível duvidar? 
Ou então se pegou afeito à alguma paranoia? 
À alguma “noiazinha”? 
Ninguém? 
Por favor, um pouco mais de generosidade! 
Quem aqui já se sentiu imerso em fantasia íntima?
Entorpecido por devaneios próprios de alma desapossada de presente?
Vamos lá! 
Não é possível que eu seja o único. 
Alguém? 
Dou-lhe uma 
Dou-lhe duas 
Dou-lhe…. 

Canta “Maluco Beleza” de Raul Seixas.

II
Nada de eufemismo entre os malucos

Dizem por aí que as grandes reviravoltas da história produzem suas próprias versões delirantes nas sociedades em que ocorrem. 
Como se a loucura nossa de cada dia,
nossos  delírios ordinários,
fossem um sintoma da eloquente loucura do mundo.
Dizem também que nestas terras periféricas do capitalismo, 
Fora plantada a pujante veia de adulteração do sentido do real. 
De modo que os aqui nascidos, 
trazem gosto e predisposição à crença de serem aquilo que não são. 
Produzindo autoimagem deturpada,
reflexo do desproporcional contraste entre
grandiosas aspirações e 
frustrante realidade
Alimenta-se, assim, poderosa ilusão 
que até hoje nos assalta, 
nos corrompe 
nos deforma.

Vocês conseguem enxergar? 
Conseguem?
Sim ou não, só é possível uma resposta!
Está bem diante de vossos olhos!
É terra!
Terra! 
Terra à vista, senhoras e senhores! 
a pouquíssimas milhas daqui. 
República Federativa dos Delírios Tropicais, 
TOUS SONT LES BIENVENUS
ao Brasil de Todos os Loucos!
Ou podemos tentar: Brasil de todas as farsas! 
Esta é a terra em que tudo dá!
Dá pra ser o que quiser! 
Aqui, senhoras e senhores, dá até pra ser o que não se é! 
Dá pra ser Português nascido no Amazonas,
Holandês nascido no Recife,
Inglês nascido no Goiás,
Francês nascido no Leblon,
Norte-americano nascido no Ipiranga.  
Ah! O Ipiranga! 

Risos

Dá pra ser emancipado mantendo-se colônia!
Liberal e escravocrata com o mesmo CNPJ!
Aqui, senhoras e senhores, genocídio dá pra ser conquista, 
ditadura dá pra ser revolução,
até mesmo dá pra ver escravidão entrar na legislação!
Liberté, Égalité et Fraternité
Isso é coisa dos franceses!
Human Rights? 
Oh, baby! 
Not supposed tupi.
E se repararem bem,
As faces transtornadas, 
O ar lunático, 
A cólera,
A angústia provinda do mistério,
Revelam gente  mergulhada em sonho íntimo sem fim; 
Sequela 
não sei de que 
inexplicável fuga do espírito
daquilo que se supõe real 
para viver das aparências das coisas. 
Ou 
de outras aparências das mesmas.

III
Construção fantasiosa de realidade

Bovarismo ou,
percepção corrompida da realidade
na qual o sujeito cultiva a ilusão 
de ser aquilo que não é,
marca o tempo em que se afirmaram: 
o capitalismo como modo de produção;
a cultura burguesa como modo de dominação. 

Delírios bovaristas
também podem ser considerados:
TENTATIVAS de dar conta do REAL, 
regidas por uma lógica própria,
que escapam à produção de sentido convencional.

Eu me lembro uma madrugada
o pai chega em casa com sua Pampa Ford 90 motor a álcool e grita meu nome:
– Menino! 
Eu pulo da cama, tropeço em meus irmãos e corro pro quintal. 
Lá estava orgulhoso, 
ainda com roupa de roça,
óculos aviador suportando altos graus de astigmatismo,
e o sorriso atrás do bigode “chevron” à la imperador francês.

Ele me pega no colo com as mãos ainda sujas de terra
e me coloca na traseira da Pampa.
Um jardim de caixas de papelão abarrotadas de livros. 
Histórias e personagens que ocupariam os espaços entre o sono e os sonhos.

Naquelas vagas horas noturnas
Eu me encontrava com o barulho de almas fecundas em fantasias.
Emprestava meu coração pra pulsar seus desejos
Meus pulmões pra aprisionar suas frustrações 
Meu estômago pra queimar suas fúrias. 

Algumas ficaram no caminho,
Outras insistem em fazer de mim estadia.
Uma jovem pequena-burguesa que projeta em amantes a realização de sua plenitude. 
Um professor herdeiro de batatas e filosofia usurpada, 
crente no sucesso em capitalizar seus sonhos e quereres. 
Um major patriota cujo Brasil por qual lutou a vida, nunca viu.  

Habitam meu imaginário por seus delírios defendidos, 
ilusões legitimadas, 
e pelo desfecho trágico 
quando se deparam de volta com a realidade
e não dão conta de segurar os frágeis fios da existência.

Eu costumava dizer ao pai que,
Dentre os devaneios mais improváveis,
Minha obsessão repousa na imagem  
do encontro entre esses corpos delirantes. 
Esses corpos bovaristas.
Todos presentes em um mesmo consultório, 
Diagnosticados com o mesmo quadro clínico: 
“Construção fantasiosa de realidade”.

Ele então tirava os óculos, 
Limpava-os em sua em sua camisa 
pra sempre suja de terra,
e costumava responder que:
esta
é patologia altamente contagiosa,  
de fácil adaptação 
a corpos atingidos pelo trauma do esquecimento;
Corpos 
Morada de memórias corrompidas; 
História assaltada;
Identidade deformada.
Corpos quebrados,
fragmentados,
desmembrados
em mosaico
de peças alheias
e avessas à própria natureza.
Corpos 
que foram e 
continuam a ser
desterrados 
em sua suposta terra.

Projeta-se:

O Ministério da Saúde adverte:
o não tratamento precoce dos sintomas 
pode levar ao padecimento do real
e à corrupção do indivíduo.

IV
Sacarose
ou
Violar Memórias

No palco:
cana-de-açúcar.
Pega alguns pedaços da planta,
coloca na boca,
rasga com os dentes,
deixa escorrer o líquido.

Repete o procedimento.

Escolhe um.
Mostra ao público. 
Leva até o proscênio.  

Do bolso interno do casaco,
retira um pedaço de papel amassado. 

Três vozes:
conferência internacional realizada em francês;
legendas interrompidas; 
memórias invasoras de narrativa.  

O papel é cola-roteiro-script-controle-ordem-história. 
Volta a olhá-lo sempre que precisa retomar a conferência. 
A partir do que lê: 
Legendas projetadas por cima de seu corpo.

Saccharum barberi

Nom scientifique de la plante qui repose devant vos yeux.

Pendant près de trois siècles,
depuis l’invasion de l’Amérique,
elle était chargée de fournir
le produit agricole le plus important
pour le commerce européen:

L’ Or blanc.

Les fermes de canne à sucre réparties sur les terres brésiliennes.

Terre où tout pousse!
Le Brésil, premier producteur de sucre au monde!

Pardon!

J’ai fait une erreur.
BRÉSIL, le plus grand marché aux esclaves du monde!

Saccharum barberi

Nome científico da planta que encontra-se diante de vossos olhos.

________ três séculos,
a partir da invasão _______,
______________________
___ produto agrícola mais importante
para o comércio europeu:

OURO BRANCO.

Alastram-se canaviais pelas __________.

Terra em que tudo dá!
Brasil, maior produtor de açúcar do mundo!

______!

_____.
BRASIL, maior mercado de escravizados do mundo!

Pausa.

Algumas memórias ficam.
Por mais que eu não queira, 
por mais que eu tente.
Elas impregnam os poros e ficam.
Eu me lembro do cheiro das noites de queima.
O cheiro da palha da cana 
queimando no canavial a menos de quilômetro daqui. 
Espalham-se pelas veias, 
entram pelas vísceras,
ocupam o estômago, 
pulmão,
coração. 

Eu me lembro do ronco enferrujado do busão
que ostenta na fronte o destino:
RURAL.

No decorrer da conferência, as legendas  perdem ainda mais conteúdo.

Légions d’esclaves
Une main-d’œuvre vaste et “libre” que le roi du sucre exigeait:
Carburant humain à brûler.

Le Brésil, premier producteur de sucre au monde!

Ils détruisent les forêts,
érodent la terre,
Ils naturalisent l’ordre dans la violence, l’oppression, la torture.

La société brésilienne chanceuse est née. Héritière prospère
de la main qui tient
le fouet
pour garantir
sa progression.

Legiões de escravizados
__________________________
______________:
Combustível humano para queimar.

Brasil, maior produtor de açúcar
do mundo!

Destroem _____,
desgastam _____,
naturalizam a ordem _______ violência, opressão ________ tortura.

Nasce afortunada sociedade brasileira.
Próspera herdeira da
mão que segura o
chicote
para garantir seu
PROGRESSO.

Pausa.

Eu não me lembro do progresso.
Eu me lembro da ordem.
Do esgotamento. 
Dos cortes nos braços, 
no rosto, 
nas pernas. 
Dos corpos fundidos com bagaço de cana moída.
Brasil, maior produtor de açúcar do mundo!
E eu nem me lembro do progresso. 
Por mais que eu queira. 
Por mais que eu tente.
Não há delírio que me tire,
Não há ilusão que me afaste,
Eu me lembro da cana,
Da monocultura, 
Do feudalismo moderno, 
Da servidão contemporânea,
Do ouro branco.
Da aguardente,
Do açúcar,
Da cana.

A fantasia do progresso não me acontece.

Inserção de áudio de entrevista realizada em janeiro de 2021, com tios e tias do autor, ex-cortadores de cana-de-açúcar. 

Vozes de mulheres velhas: 

“(…) Depois da cana eu guento qualquer coisa (…); (…) Não é por que eu sou fraca, não! Eu não sou fraca, mas a cana não é pra gente! Nem pra mula é aquele serviço (…); (…) Machucava mas tinha que continuar cortando, amarrava um pano pra estancá o sangue e segue fazendo o serviço (…); (…) Dia de sol, dia de chuva, tinha que trabalhá (…); (….) A comida estragava, não guentava o calor (…); (…) Aí a gente comia cana, colocava dentro do pão francês e comia (…); (…) cinco ruas por dia (…); A usina queria que a gente cortasse sete, mas nóis não güentava nem cortar as cinco (…); (…) Eles não davam equipamento de proteção (…); (…)Trabalhava de domingo a domingo (…)”

Som de sanfona.

Voz de homem velho: 

“(…) de manhã cedo levanta já prepara o seu facão
Fica pronto o boia-fria pra tomar a condução
Quando chega no trabalho
Sofrimento é de montão
Pega o eito e corta a cana 
Que é essa é a sua profissão

Corta cana 
Corta cana
Corta cana, meu irmão.
Você é o responsável do progresso da nação.

O dia todo cansado 
Não tem hora pra parar
Não tem tempo para nada 
Nem sequer para almoçar
Quando chega bem de tarde
Vai pra casa descansar
Pensa no dia seguinte
O dia a dia começar

Corta cana 
Corta cana
Corta cana, meu irmão.
Você é o responsável do progresso da nação.

Som de sanfona. 

Risada.

Voz de homem velho: 

“(…) Essa música eu não toco ó (…) 
(…) eu tinha 14 anos, tava indo pro canavial com o pai (…) 
(…) Alí eu fiz (…)” 

Voz de homem jovem: “(…) Essa é uma das canções mais lindas que eu já ouvi, tio (…)”

Voz de mulher velha:  “(…) Boia-fria, Menino! É assim que chamavam a gente (…)”

Pausa

BO-IA-FRIA.

Repete a expressão algumas vezes. Experimentando diferentes embocaduras até chegar à forma nítida e precisa de enunciar.

J’étais curieux de savoir
comment le Google définit le boia-fria.
C’est comme ça:

“Les boias fria sont les ouvriers
qui migrent d’une région agricole à une autre, suivant le cycle productif
des différentes cultures.
Ils sont des agriculteurs
dans plusieurs champs,
mais
n’ont pas
leur propre
terre.”

______________
__________ Google define boia-fria.
_____________:

“boias-frias _____ trabalhadores
______________
________________________
________________________
_________________________
____ agricultores em diversas lavouras,
___
não
possuem
terra.”

Lê,
para si,
mais uma vez o papel.

Coloca-o na boca.
Mastiga até salivar.
Escorre pra fora líquido:
saliva,
papel,
roteiro,
script,
controle,
ordem,
história.

Engole.

Lambe os dedos,
digere.

Pausa.

Pra mim boia-fria são toda a minha
mãe-pai-tia-tios-avós
ascendência infinita;
abençoada em servir imensa roda de moer trabalhadores,
em prol do progresso.

Eu me lembro das manhãs prematuras,
do som do facão,
do café coado na madrugada,
da boia no fogo,
garrafão d’água,
enxada,
roupas:
mordaças que tapam os corpos deixando-os
anônimos.

Algumas memórias ficam.
E o passado ressoa no presente
com tamanha força e violência que
só é suportável por alguns instantes.

E como se não bastasse,
este mesmo passado,
que já foi presente,
teima de novo em sê-lo.
E não só em ser presente
mas também em reencarnar
em promessa futuro.

Datas projetadas em cena.

1532

Alastram-se as raízes da planta pelas terras onde tudo dá;
Monopólio da produção mundial de açúcar.
Renda gerada: duas vezes maior que a do ouro.
Cinco vezes maior do que a de qualquer outro produto agrícola.
Abundantes reservas de braços;
Combustível humano queimado nos canaviais.

1984

Ditadura militar.
Primeira greve de cortadores de cana do Brasil,
Guariba-SP.
“A usina queria que a gente cortasse sete rua
nóis não guentava cortar nem cinco”
“Não é por que eu sou fraca, não!
Eu não sou fraca!
mas serviço de cana não é pra gente!
Nem pra mula é!”
Eu me lembro
daquela revolução que
Tout le monde!
Cinco mil boias-frias.
Cidade tomada.
Estradas bloqueadas.
Levante.
Polícia.

Grita:

“PÁ!”

“Um!”

“Dois!”

“Três!”

Pausa.

Eu me lembro dos
corpos de açúcar caídos no chão.
Do sangue melado no asfalto
manchando a memória,
que nem a fuligem da palha queimada
quando cai na pele e fica!
“Amarra um pano pra estancá e segue”
a polícia,
o massacre,
o medo.
Aquela revolução que

Tenta reproduzir o gesto da guilhotina repetidas vezes mas não consegue.

2016

A irmã se forma na faculdade.

Deixa o casaco sobretudo na cadeira vazia.

Eu vestia exatamente este Louis Vuitton,
comprado no Bom Retiro.
A turma é homenageada com a
melhor pesquisa sobre a Saccharum barberi.
Recebem o nome de “SACAROSE”.
Pedem para eu fotografar;
A mãe, cuja infância perdeu cortando cana na colônia;
Perdão!
na usina;
E a juventude servindo a casa grande dos donos da mesma colônia.

Pausa

Usina!
Até rebentarem as crias e dentre as crias,
ela:
Engenheira agrônoma.
Futura funcionária da mesma usina,
propriedade da mesma família,
do mesmo feudo,
cuidando da mesma espécie,
mas agora no escritório.
Abraçam-se.

– Digam X.

Faz a mimese de quem tira fotografia.

Mãe e filha fundidas num quadro oculto
de primas-primos-tias-tios-avós,
Legião infinita de trabalhadores,
ainda sem terra,
ainda serventes do mesmo açúcar,
do ouro branco,
do latifúndio que eterniza a escassez na terra em que tudo dá.
Privados da memória do que fomos e
Incapazes de julgar o que viremos a ser.

V
O homem que não era Napoleão

Volta a vestir o casaco sobretudo.
Executa as ações o mais rápido que consegue.
Busca sete cadeiras de ferro dobráveis.
São cadeiras vermelhas, enferrujadas, riscadas,
algumas com resquícios de adesivos de cerveja.
Organiza-as em um semicírculo.
Traz outros seis sacos de estopa grandes e pesados.
Coloca-os em cima das cadeiras deixando uma delas vazia.

Retira-se.

Volta com mesa de ferro
também dobrável, vermelha, enferrujada e com resquício de adesivos de cerveja.
Coloca-a no centro do semicírculo.
Aproxima as cadeiras da mesa.
Vira-se para o público,
tenta falar
mas não soa.

Movimenta-se.
Tensiona-se.
Executa partitura apresentada no prólogo.

Um déjà vu.
Não! Não é um déjà vu.
Está um pouco mais violento.
Gesticula seus músculos de forma um pouco mais agressiva.
Entre gritos, palavras, gramelô e francês,
em busca da fala que insiste em lhe escapar,
desintegra-se.
Em meio à partitura
Afrouxa gravata.
Abre camisa.
Aperta contra seu casaco sobretudo
até rasgá-lo.

Cólera: grita, mas não soa.

Deixa cair no palco peças de sua farda.
Algumas medalhas.
Ombreiras.
Grita mas não soa.
Outros pedaços de pano.
Grita mas não soa!
Uma das mangas abre-se por inteira.
Respira.

Ar.

Ar.

Som!

Pega dentro de um dos sacos duas garrafas da cachaça 51.
Sobe em cima da mesa dobrável vermelha.
Com uma garrafa em cada mão,
verte o líquido sobre a cabeça.

Álcool escorre por todo o corpo.

Grita!

Afasta-se da mesa.

Vocês conseguem enxergar?
Conseguem?
Sim ou não, senhoras e senhores?
Só é possível uma resposta!
Me ajudem aqui por favor!
Vocês conseguem enxergar o número no rótulo da garrafa?
Boa!
E qual número é?
Qual?
Merci beaucoup, vous êtes très incroyable
Très, très, très, incroyable!
Agora, por favor, quantas garrafas eu tenho comigo?
Magnifique!
E conseguem multiplicar a quantidade de garrafas pelo número do rótulo?
E se subtraírem a quantidade de garrafas
do resultado da multiplicação entre o número do rótulo e a quantidade de garrafas?
Quanto?
Um pouco mais alto, s’il vous plaît!
CEM!
Cem, meus senhores e minhas senhoras!

Volta para perto da mesa.
Coloca-se atrás da cadeira vazia enquanto repete em êxtase o número 100.
A partir de agora contracena com o público e,
em alguns lapsos de momentos,
com os sacos;
como se,
em alguma instância,
representassem as personagens evocadas nas cenas anteriores,
convidadas para um último encontro:
testemunhas de um último delírio.

Pega em um dos bolsos que restaram em seu casaco um canivete francês.
Abre.
Levanta uma das garrafas de cachaça,
bate nela com o canivete como se fosse uma taça de champagne.

Mãe-pai-tias-tios-avós-irmã,
meus senhores, minhas senhoras!
Tout le monde!
Je tiens à vous remercier infiniment pour votre présence! Ici! Aujourd’hui!
Merci Beaucoup!
Gostaria de aproveitar o encontro
para propor um brinde!
Afinal de contas,
hoje completam-se cem dias!
Cent jours em que me seguro aqui,
na real!

Aceitando ela
como ela se apresenta,
sem delírios,
sem alucinações,
sem fugas imagéticas,
sem metáforas,
sem acordar em sonhos fantasiosos de mim mesmo.

Cem dias em que a realidade se faz capaz de detonar qualquer fábula.
Cem dias em que a imaginação
segue humilhada pelos troféus da conquista,
das reservas de petróleo, de ferro, da carne, do café, da cana,
do açúcar.

Cem dias que resisto lutar contra as memórias soterradas em minhas vísceras
que se digladiam com empenho por emancipar-se
da hostil abstração que nos faz crer aqui;
nestas terras especializadas em perder e servir,
ser possível existir,
abençoados por deus,
em reino de maravilhas.
Cem dias na real!

Um brinde!

Bebe o álcool que restou na garrafa de 51.
Vai até às personagens convidadas.
Rasga alguns dos sacos.
Despeja o conteúdo por todo o palco.
Entre hastes e folhas de cana,
um pacote de açúcar mascavo,
açúcar cristal,
refinado.
Uma rapadura.
Um pote de melaço.
Outra garrafa de cachaça 51.
Um facão.

LE BRÉSIL, premier producteur de sucre au monde!
Perdão,
O maior mercado de escravizados do mundo!
Onde as palavras mágicas
Liberdade, Igualdade e Fraternidade
sofreram a interpretação que parece
ajustar-se melhor
aos padrões da colônia anacrônica que,
na demência de seus velhos hábitos escravistas e patriarcais,
sonha em ser república liberal.
Enigma indecifrável de nossa natureza,
que nos intimida e
a qualquer momento nos invade,
nos toma,
nos esmaga,
nos sepulta numa desesperadora compreensão
inversa
e absurda
de nós mesmos.

No palco:
cana.
Busca os açúcares,
a rapadura,
o melado,
a cachaça.
Conforme encontra,
come.

Cem dias, senhoras e senhores!
sem alucinações;
sem delírios;
sem fantasias;
Cem dias na real!

Come:
Refinado,
Cristal,
Mascavo.
Volta para as testemunhas.
Rasga aquelas que restaram.
Despeja o conteúdo todo no palco:
Cana-de-açúcar.

Em velocidade crescente:
Come.
Melado,
Rapadura,
Mascavo.
Suja o rosto,
a roupa.

Algumas memórias impregnam a pele e ficam.
Eu me lembro do barulho do fogo estalando na palha,
da fuligem caindo do céu,
Do catarro grudado no peito,
Do açúcar.

Come a cana do chão

Por mais que eu não queira,
Por mais que eu tente,
Não há delírio que me tire.
Não há ilusão que me afaste.
Não há fantasia que me assegure fuga.

Está imundo.
Em todo corpo
resquícios dos alimentos e da planta.
Tira a camisa,
amarra-a sobre a cabeça simulando proteção utilizada pelos antigos cortadores de cana.
Veste o casaco sobretudo em trapos.
Pega o facão.
Pretende um duelo de esgrima.

Eu me lembro da volta pra casa
do canavial
Dos braços, dos ombros, cansados,
Das costas ranhadas,
Dos pulmões estourados,
Do fedor da comida estragada.
Da cana.

Brasil:
O maior produtor de açúcar do mundo
E eu nem me lembro do progresso!
Eu me lembro da ordem!

Segue o duelo até a exaustão
Repetindo as duas últimas frases
Pega a garrafa de 51.
Sobe na mesa e bebe.
Rosto coberto,
casaco mutilado,
fedendo a cachaça,
sem calçados
Ergue o facão com uma das mãos,
Bebe o restante de álcool da garrafa
Deixa escorrer o excesso de líquido no corpo.
Mantém o facão alto.

Luz baixa.

Epílogo

Desce da mesa,
Solta o facão,
a garrafa de cachaça.

Está exausto,
mas pulsa.

Despe-se:
Casaco,
Calças,
Camisa que tapa o rosto.

No corpo:
resquícios de cana e açúcares.
O cheiro inflamável
de aguardente.
Aproxima-se da plateia,
Observa.

Blackout.

Texto