Dramaturgias do Tempo

Céu branco: Colônia matadouro

PERSONAGENS

IVO
CÂNDI
GUS
TATA
ULISSE
REDIMIDO
DEMITIDO
VIVENTES

CENÁRIO

Cercas de grades/telas recortam o espaço, como um labirinto. Em um canto, uma cama. Ao fundo, a grande máquina, com uma escada lateral, uma boca superior, de entrada, e uma boca inferior, de saída (com um saco preso a ela).

ATO 1:

AMANHÃ

Escuridão. Ivo caminha com um flácido e pesado pacote nas mãos.

TATA (voz): A máquina já havia sido desligada quando, pela janela, invadiu o quarto, o cheiro do jantar vindo da casa de Cândi. Na hora, parei de comer o caqui e nauseei a ponto de não poder comer mais nenhum daqueles frutos trazidos por Gus, um dia antes. Como podia, o cheiro vir de tão longe? Se esse cheiro, que me causa enjoo, viajou tanto, não chegaria até lá, também, os cheiros imundos dos viventes? Como podem comer, assim? Sim, somos diferentes. O cheiro da criação, imunda, eu já conhecia. Naquele momento, em silêncio, talvez dormindo de cansaço, de frio. Cientes de que por mais um dia, talvez apenas mais um dia, são a parce- la dos que não foram mortos.

Ivo pousa o embrulho no chão, bate palmas e aguarda.

TATA (voz): Hoje, tudo pode ser diferente, como todos os dias.

Ivo torna a bater palmas e aguardar. Vai bater novamente, mas ouve:

CÂNDI (voz de alguém que está atrás da luz): No meio da noite, quem chega? Notícia ruim ou a morte.

Silêncio.

CÂNDI (voz): A morte pode vir sem aviso. Mas notícia ruim também não tem o costume de bater palma. Se é urgência, chega gritando, que o grito chega antes do corpo! Se é segredo, não grita e também não bate, só entra. Agora… Quem é que para, assim, no rumo da minha bala?

Ivo permanece como estava. 

CÂNDI (voz): Ivo? Ivo, é você?! 

Ivo não responde.

CÂNDI (voz): Ivo, é você! Eu tinha me esquecido! Ivo, eu tinha me esquecido que cê vinha tão cedo! Eu imaginei que… Imagina só! Chega mais! Chega mais, homem, preu não precisar calçar a bota! Êh, tá me ouvindo, não?! Chega mais, rapaz. (Espera pela resposta do outro, que permanece em silêncio.) Cê tá certo das ideia? Que confusão, não é?! É que eu tava sonolento. Tava escuro! Ei, homem! Tá bem? Tá suado… Mesmo nesse frio, cê tá suado!

Ivo pega o pacote do chão e o leva até Cândi, que permanece sem ser visto. Ao entregar, recua.

CÂNDI (voz): Eita, que me sujei só de encostar! Tem problema, não. Está feito! Que hora cê saiu de lá? Ainda era ontem, não era? Antigamente não era assim, meu caro… Não fazia tanto calor durante o dia, nem tanto frio durante a noite! E pra se transportar a carne, havia tecnologias! Agora, eu tenho que reinventar tudo do zero e sozinho! E ainda me chamam de louco, mas isso acaba hoje! Tudo ainda vai voltar pro eixo, graças a homens como eu e os meus convidados dessa noite, a família… Cê não me entende? Cê não pensa como eu?

Ivo permanece em silêncio.

CÂNDI (ouve-se mexer no embrulho. Voz): Saiu ainda ontem, não foi? Como você, não nasce outro! A carne está fresca, graças a Deus, que cuida dos justos! Aqui tá tudo? E dá justiça a quem cuida dos seus! Cês que cuidam de mim! Cês são uns anjo!

Ivo permanece.

CÂNDI: E vamo trabalhar, porque o dia vai ser longo! Mais tarde eu vou até vocês pra dar instruções pra chegada da família. Com a inauguração da máquina, começa um novo mundo! Quero apresentar você pra família, Ivo. Você e todo o corpo funcionário, meus fiéis!

Ivo não responde.

CÂNDI (voz): Eu vou levar isso lá pra dentro. Até mais tarde, Ivo. Até mais tarde!

A luz se apaga.

HOJE

Gus, sujo de lama, está limpando um pequeno vaso, uma quartinha, dentro de um balde d’água. Ao seu lado, um embornal com diversos frutos.

GUS: Primeiro: eu tavo lá no redondão. Sabe o redondão que fica lá, quase no limite? Lá. De dia, não tem perigo, não, não tem ninguém. Eu fiquei um tempão olhano pra cidade. Longe. Dor de cabeça. Eu tavo com uma dor de cabeça! É que eu tinha chorado, sabe? Pera, já conto. Nessa hora, eu já não tavo chorano. Tavo parado, olhano a cidade. Ô, quanto tempo que cê acha que ia levar preu chegar lá se eu saísse a pé, dali do redondão? Tavo pensano exatamente nisso… Tinha chovido… E tava parecendo que ia chover mais. Queria só ver… E eu ali. Ia tomar a maior chuva! Tava nem aí! Aí não choveu… Eu sei que a minha dor de cabeça vem dessa claridade… Desse céu branco fechado de nuvem que não chove. Constipadas. Fiquei lá, olhano a cidade, imaginano tudo. Um dia eu vou viver lá, Tata! Duvida não, heim!

Ele retira o vaso de dentro do balde. Examina-o. Retoma.

GUS: O meu irmão, Tata, lembra do meu irmão? Ele sempre falou que não presta a gente andano solto lá na cidade, não. Solto que nem eu tavo ali. Que lá, não se fica à toa. E aqui se fica? Que lá todo mundo tem coisa pra fazê. Não fazê, num pode. Num pode que dá coisa ruim, ele sempre falou… E aqui é diferente?! Cê lembra dele? Bicho besta! Ele nem nunca tinha ido pra cidade quando falava isso. Como que ele ia saber?!

Para de lavar.

GUS: Tata, meu irmão nunca ficou à toa, que nem eu tavo lá no redondão. Nunca vi. Pensa num trabalhador… o meu irmão! Ô, desde pequeno, o bicho não parava! Era que nem o pai. Talvez eu fosse trabalhador também, se eu não tivesse de viver escondido!

Retoma.

GUS: Eu lá no redondão, tavo nem fazeno nada. Tavo era pensano nele… O porque, cê já vai saber! Tavo era olhano a cidade. Até chorei e aí fiquei com dor de cabeça. Tinha chovido, mas já não chovia mais. Tava esse céu branco…

Termina de limpar o vaso e o deposita no chão ao lado. Começa a se limpar.

GUS: Segundo: o buraco! É o buraco! Pensa num buracão… Eu vi e , já que eu tavo ali, fui até lá, ué! Quando eu cheguei lá no meio, só havia o buraco e o céu… Parecia que ele sempre teve lá e eu tamém, atolado naquela lama que me subia as perna, tudo.

Para. Examina-se. Retoma.

GUS: Como eu cheguei lá? Cê já vai entendê, mas o que importa é o que me fez ir até lá, o que eu achei no meio daquele buraco… Tá curiosa? Heim, tá curiosa?! Achei o que tinha pra achar, ué!

Para. Olha para o vaso.

GUS: Tata… Nessa hora até choveu um chuvisquinho e eu já tavo ali perto quando vi que tinha uma coisa lá no meio. É, lá no meio daquele buraco, que não era só barro. Quer dizer… Era barro tamém… Aí eu fui lá e cavei, ué!

Ele termina de se limpar, pega o embornal e o vaso e corre em direção à cama. Tata está deitada, abatida. Ao seu lado, um cesto com broas. Gus se aproxima, cauteloso para não despertá-la, mas ela o percebe. Ele esconde o vaso atrás de si.

GUS: Se quiser, eu saio. Se quiser, eu fico aqui com você.

TATA: Não precisa, Gus. Que é isso?

GUS: Um monte de fruta!

TATA: Tô falando disso que cê escondeu aí atrás, bobo!

GUS (revelando o objeto): Presente!

Ele entrega-lhe o vaso.

GUS: Eu achei lá perto da represa. Sabe lá onde desbarrancou?

TATA: Não sei.

GUS: É que cê tava aqui, né? Quanto tempo será que cê vai ficar aqui?

TATA: Não sei.

GUS: Sabe… É que a chuva desbarrancou um buracão lá na beira…

TATA: Perto da bomba d’água?

GUS: Bomba d’água?

TATA: Havia uma bomba d’água no começo da Colônia. No começo do rêgo que desvia o rio.

GUS: Bomba d’água?! É só um resto de construção antiga!

TATA: É que já faz muito tempo. Minha avó, a professora, ensinou pra gente, tudo da Colônia.

GUS: Se eu tivesse ido à escola, eu ia saber!

TATA: Mas isso não era matéria. Isso era das coisas que ela ensinava porque dizia que era preciso saber do lugar que a gente vive e isso, Seo Cân- di não coloca nos manuais.

GUS: Pois nada do que eu sei veio de manual e isso é uma coisa boa, não é? Mas de que adianta o que eu sei, se ninguém sabe que eu existo?

TATA: Eu sei! Seu pai sabe! Seu irmão também sabe! Quando eu ficar boa, vou dar aula, como minha avó, a professora! Vou ensinar todo o corpo funcionário a ler e a escrever e nós podemos continuar nos encontrando aqui, mas aí vai ser pra te dar ensino…

GUS: Quem sabe que eu existo, me esconde.

TATA: Pra te proteger! Eu também tô escondida, de certa forma…

GUS: Pra se tratar!

TATA: Seo Cândi diz que não faz mal que não se aprenda a ler enquanto não há quem ensine. Ele diz que tava precisando mesmo de uma grande leva braçal no corpo funcionário e que isso não seria possível se soubessem ler e escrever.

GUS: Aquela árvore grandona tá lá, caída.

TATA: Porque não tinha outras árvores em volta! A nova represa já era um erro, mais esse tempo… A terra cede!

GUS: Tata, é um buraco maior que a sua casa! Não é fundo, mas tá perigoso… E tá cresceno…

TATA: Então pra que é que cê foi lá?

GUS: Pra vê, ué. E se eu não fosse, não ia ter como te contar.

TATA: Gus, é perigoso…. Mas é muito bonito, o seu vasinho… Deve ser de um período anterior ao dia que sucedeu…

GUS: É… eu tavo limpano ele. Limpano e pensano… Imagina quantos anos que não deve ter?! Imagina o trabalho que dá pra perder um vaso desse!

TATA: Tá interim!

GUS: Tá interim, só tava xuju.

TATA (ri): Tava o quê?

GUS: Xujo… Xuj… Ai, eu não sei falar!

Riem.

GUS: Que cê tava fazeno antes deu chegar? Já sei, tava leno!

TATA: Não…

GUS: Escreveno!

TATA: Eu não tenho sabido o que escrever…

GUS: Inventa!

TATA: Ai, cê diz cada coisa!

GUS: Então que que cê tava fazeno?

TATA: Acho que dormindo. Depois do remédio, meu corpo fica tão pesado… Aí eu não sei se tô acordada ou se já tô dormindo. Então presto atenção no que que tá acontecendo, até que dê pra saber… Sem ler, como vou escrever, Gus? Seo Cândi levou os livros que eu ainda tinha aqui. Eu agora só tenho as histórias que você me trás e as que eu lembro que a avó contava… (aponta para a janela)

GUS: Escreve pra mim. Olha… Da janela, dá pra ver a colônia toda!

TATA: Um pedacinho, só, mas dá… 

GUS: O que você vai fazer com ele? 

TATA: Ele quem?!

GUS: O vaso.

TATA: Ah, não sei.

GUS: Dá pra plantar alguma coisa!

TATA: Eu não acho que esse vaso seja de plantar.

GUS: Se não é de plantar, é de quê?

TATA: De olhar, ué!

GUS: Ai, cê diz cada coisa!

Gus vai até a janela.

GUS: É bonito ver daqui. Pensano bem, eu acho que nem carece de ver o que não dá pra ver daqui. Assim cê fica melhor logo, Tata…

Percebe que Tata dormiu e a observa. Confidencia:

GUS: Tata… Eu achei meu irmão! Ele tá escondido lá na mata. Tata, eu… (para e pensa) E como é que cê vai saber que não era um sonho, eu aqui? 

Ele se aninha ao lado da cama e a observa dormir.
Ivo procura por Gus, impacientemente, mas tenta ser discreto ao chamar pelo filho.

IVO: Gus!
“Eu nasci em sesmaria nova
Eu nasci na velha sesmaria
Quem quiser, que cante outra trova
Outra trova eu não cantaria”
Gus! Gus! Gus!

Chega Redimido, sujo de sangue.

REDIMIDO: Seo Ivo?

Ivo o encara.

REDIMIDO: Houve mais uma baixa entre magarefes da ala suja.

IVO: Quem? 

REDIMIDO: Lituano. 

IVO: Quem?

REDIMIDO: Era chamado Lituano e o porquê, ninguém sabe. O que era diferente. Diferente em tudo…

IVO: O que não falava…

REDIMIDO: Não que os outros não sejam quase mudos…

IVO: Mas esse não falava, nem forçado.

REDIMIDO: Esse.

IVO: Então não sabem pra onde ele foi. Ele operava na ala suja?

REDIMIDO: Isso, sim. 

IVO: E quantos ficaram? 

REDIMIDO: Só eu.

Silêncio

IVO: Que desça um.

REDIMIDO: O senhor prometeu aos outros que não voltariam pra lá. Que a recompensa de não terem os pés afundados no sangue com tripa, era subirem pros cortes, pra ala limpa.

IVO: Nos cortes é preferível mulher. Chame o último número homem do corte pra que desça à ala suja com você.

REDIMIDO: Não há mais homem no corte.

IVO: Mas a ala suja…

REDIMIDO: E Lituano era mulher, senhor. Nós chamava assim, porque não sei. Como ela não falava, como ela era só mãos, só pernas pra sus- tentar, só olhos respingados de sangue, era corpo funcionário, como nós, quer dizer… Como eu.

IVO: Deixe acumular os miúdos.

REDIMIDO: Eu vou afundar em tripa!

IVO: Você vai deixar tudo em caixas grandes. Você não vai reclamar, porque Seo Cândi já fez muito em te aceitar de volta.

Silêncio.

IVO: Guarde tudo o que é sujo, só até a inauguração. Amanhã isso vira comida.

Redimido o encara, sem entender.

IVO: É essa, a função da máquina. Nada mais vai pro rio… Cê vai entender.

Redimido sai. Ivo, novamente só, volta a procurar Gus.

IVO: Gus! Onde é que você se meteu?

Sai.
Gus caminha na mata. Seu embornal está cheio de frutas. Ulisse aparece, vem correndo, perseguido por vozes e passos que não vemos. Para ao perceber o irmão, que não o vê, a princípio. Estabelece-se um pequeno jogo onde Gus tenta identificar a possível presença do outro e Ulisse se esconde.

GUS: Quem tá aí?

Ulisse não responde.

GUS: Tá pensano que eu sou besta? Quem é? Não tô fazeno nada! Fique sabeno que eu venho lá da cidade! Não era minha intenção chegar perto da Colônia! Já tô indo embora…

Ouve-se os perseguidores de Ulisse se aproximarem. Ele se mostra a Gus.

GUS: Ulisse?

Ulisse faz sinal para que o irmão se cale, vai para cima de Gus e o empurra para o chão. Eles rolam e terminam próximos, com os rostos no chão. Silêncio. Sussurram:

GUS: Ulisse, é o cê memo?

ULISSE: Sou eu, irmãozinho.

GUS: Ô, Ulice, que tá aconteceno?

ULISSE: Tão atrás de mim, irmão…

GUS: Isso eu vi, idiota! Quero saber por quê!

Ulisse não responde.

GUS: Por que cê não voltou mais? O pai ficou preocupado! Eu tamém… Ô, isso não se faz, não! Esperamo tanto e o cê, nada. O pai já quase que foi lá na cidade, a pé, atrás do cê. Imagina, Ulisse, a pé! Só que aí eu falo pra ele que memo que conseguisse, lá na cidade não se pode ficar zanza- no à toa, não. E que iam achar que ele saiu fugido, devedor. E que memo que ele falasse tô procurano o filho, olha tô chorano, procurano o filho, iam falar cê tá procurano o filho? Tá chorano, procurano o filho?!

Ulisse permanece calado, com o rosto no chão.

GUS: Cê que tinha me falado, lembra? Cê que tinha me falado que era assim. Falei prele que se ficasse andano por lá sem tá a trabaio, ia ser ruim prele.

Silêncio. Os sons dos perseguidores se distanciam. Gus e Ulisse se levantam.

GUS: Teve até um dia que o pai trouxe uma notícia que tinham trazido prele… Tinham encontrado o corpo dum piá que parecia o seu corpo, piá. Parecia o cê, Ulisse, seu idiota! Não falava muito, como era, mas aquele pouco que falava, podia ser o cê. Eu quis acreditar, pro pai não fi- car louco, mas não adiantou, não, piá.

ULISSE: Desculpa… Foi por querer, não.

GUS: Quando cê sumiu, acharam que cê tinha levado eu junto! O pai me escondeu, achô melhor!

Tata, de sua cama:

TATA: E depois disso?

GUS: Depois disso, falamos, ele pra mim e eu prele. Juntei comidas prele comer e juntei pra te trazer tamém. No caminho de volta, parei no re- dondão. O pai me escondeu a vida toda, por culpa do Ulisse, Tata. Eu tava feliz que ele tinha voltado, mas não sei. Fiquei. Depois, vi o buraco. No buraco, vi o vasinho.

TATA: E o seu irmão, o que aconteceu com ele?

GUS: E ele fala?! Só falou que tava correndo fazia tempo e que tava morrendo de fome. Disse que não fez nada de errado. Disse um monte de coisa que não fez, mas não disse o que fez.

TATA: E os perseguidores?

GUS: Aqueles lá não sabem andar no mato, não. Acho que viram que ta- vam se aproximano da Colônia… Sei lá, partiram.

TATA: E o seu irmão?

ULISSE: Eu fiquei entocado na mata. TATA: E não podia vir se esconder aqui? GUS: Ele disse que queria…

ULISSE: Eu bem que queria! Mas não posso…

TATA: Não pode por quê?

ULISSE: O pai.

GUS: O pai… Ele disse isso e ficou quieto.

IVO (canta, ainda a procura de Gus): “Sem o sol a brilhar
minha voz não sabe cantar
por que, mana minha, por quê?
Tu fostes longe morar?”

Tata estende a bacia de broas a Gus. Enquanto isso, ouve-se a voz de Cândi.

CÂNDI (voz): Não é porque somos homens sem tempo, que não há de termos tempo para uma visita a um membro da família. Digo e repito: Presenteie-me com um pouco de seu tempo. Venha à humilde recepção que lhes preparo e eu hei de mostrar quantos mil novos tempos, pode o tempo ter.

ATO 2

Ivo está sobre a máquina e despeja ruidosamente, um grande saco de ração aos fundos desta. À frente, no chão, dois magarefes: Redimido e Demitido, com uma faca de açougueiro e uma pistola de espigão, respectivamente. Ivo não os olha e tenta conter com “Eia”, “Eh”, os seres que comem do outro lado. Ao terminar, ele observa calado, saca uma câmera e fotografa os animais. Em seguida, vira-se para os magarefes.

IVO (a Demitido): Como vou chamar você? DEMITIDO: Me chamam “Demitido”, senhor. 

Silêncio. Ivo o encara.

REDIMIDO: Ele vem de uma colônia de capitania, Seo Ivo.

DEMITIDO: Me chamam “demitido” porque me demitiram muitas vez por lá, senhor. Injustamente! Até que cansei e saí.

IVO: Fugiu…

REDIMIDO: Ele conduzia viventes, mas deixava alguns escapar.

DEMITIDO: Isso não se diz assim! Já tentou conduzir uma dezena de viventes?

REDIMIDO: E era demitido porque não respeitava os superiores.

Silêncio.

IVO: O pagamento vai ser feito amanhã, depois que isso tudo passar. Hoje, Seo Cândi quer mostrar o matadouro aos convidados, que ele chama de família. São sócios, são donos de colônias como essa. São compradores. A visita atrasa a produção, eu avisei Seo Cândi. Fazer o certo é fazer devagar e quando mostramos aos visitantes, Seo Cândi quer que mostre o jeito certo. Aí, os convidados pensam que a produção é lenta, não entendem! Seo Cândi ri. Não é esse o verdadeiro trabalho que acontece quando ninguém está vendo! Hoje, mais do que nunca, Seo Cândi quer que tudo pareça lento pra parecer, a máquina, mais rápida… Comecem!

DEMITIDO: A minha responsabilidade é zelar para que todo vivente esteja na linha de abate e receba o devido atordoamento aqui (mostra com o dedo), no centro da cabeça;

REDIMIDO: No centro da cabeça é onde eu olho, nunca pros olhos, olho no centro e se está com a marca do atordoamento, eu corto a garganta. Esta é a minha responsabilidade. Um corte único e limpo.

IVO (a Redimido): E se algum vivente não receber o atordoamento? (a Demitido) E se a pistola de espigão falhar? (a Redimido) E se um corte único e limpo não for possível?

Os magarefes não respondem.

IVO (a Demitido): E se você encontra um vivente que deveria estar na linha de abate, solto e livre por aí…

Silêncio.

IVO: Então… Mata-se?

DEMITIDO: Eu não mato, senhor, só atordoo.

Ivo olha para Redimido.

REDIMIDO: Essa culpa, eu não carrego. O vivente chega inerte, inconsciente, mais morto do que vivo. Eu só sangro!

IVO: O que é que você faz?

REDIMIDO: Pela regra… Bem… Eu não sei o que o senhor quer que eu responda!

IVO: Responda a minha pergunta!

REDIMIDO: Ah, pro senhor eu respondo! Mas não sei o que devo responder à inspeção.

Ivo pega a faca das mãos de Redimido e a aproxima do pescoço de Demitido.

IVO: Está afiada?

REDIMIDO: Sempre, senhor. Não nos dão instrumento de amolar há seis meses, mas eu a mantenho afiada por conta própria.

IVO: E você sempre a carrega consigo?

REDIMIDO: Sempre, senhor.

IVO: E se você encontra um vivente livre, solto por aí?

REDIMIDO: Eu não tenho licença para…

IVO: E se você encontra um vivente que deveria estar na linha de abate, livre, solto por aí?

REDIMIDO: Eu mostro a ele a faca… Eu o faço entrar na linha por conta própria.

IVO: E se, na linha de abate, você se depara novamente com ele, mas ele não recebeu o sinal de atordoamento no centro da cabeça, o que você faz?

REDIMIDO: Eu trabalho dentro, senhor. Essa função…

IVO: O que faz? Não invente! O que faz?

REDIMIDO: Eu corto a garganta, senhor. Um corte único e limpo.

IVO: Muito bem. E se o corte único e limpo não for possível?

REDIMIDO (hesita): Eu corto de novo.

IVO: E se o vivente ainda não morreu, mesmo depois de dois cortes sujos?

REDIMIDO: Eu corto de novo.

IVO: E se…

REDIMIDO: Eu corto quantas vezes for preciso, senhor. Quando entrei pro abate, sangrava muito mal… Tinha de furar o vivente muitas vezes, mas a agonia me fez aprender a sangrar num golpe só, mas às vezes não dá.

IVO: Contanto que na maioria das vezes, um golpe seja suficiente, a pro- dução não sofre. (Os encara. Retira a faca do pescoço de Demitido e a devolve a Redimido) Mas fiquem tranquilos… não vão perguntar nada.

Ivo sai.

DEMITIDO: Amanhã, depois de receber, caio no mundo sem rastro.

REDIMIDO: E pronde cê vai?

DEMITIDO: Me tratou como se eu fosse… Cê viu?

REDIMIDO: Pronde que cê vai?

DEMITIDO: Eu vô descansá. Depois penso no que vô fazê.

REDIMIDO: Pensá… Depois de descansá esses pé, cê vai é voltar correninho pra Colônia, como fazia na outra.

DEMITIDO: E se eu não voltar?

Ulisse e Gus, sentados, na mata. Ao lado deles, um cesto com broas, das quais Ulisse come.

TATA (voz): Ulisse não achou que poderia perder por aqui. Quando chegou, pela mata, foi até o beiral das árvores e parou quando viu a Colônia.

ULISSE: O vento favorece Seo Cândi, favorece não? Joga o cheiro da mata sobre tudo. Empurra o fedor dos viventes lá pras outras bandas…

GUS: Mas fede memo assim.

TATA (voz): Quando saiu do beiral das árvores, nada havia que ele conhecesse. E os perseguidores, perseguindo. Ulisse, tentou cruzar mil caminhos e mil vezes viu…

ULISSE: Uns olhos… Uns zoinhos vermelhos de uma sementinha que eu nunca tinha visto…

GUS E TATA: Jequiriti.

ULISSE: Por toda parte, olhando pra mim!

TATA: Ulisse retornou tão perdido e assustado, quanto quando chegou à cidade.

GUS: Como é a cidade?

ULISSE: Não se explica, irmãozinho…

Redimido e Demitido entram.

REDIMIDO E DEMITIDO: A única maneira de se livrar da Colônia, é ino (faz sinal de corte na garganta) com o carregamento (ri), como fez o filho mais velho de Seo Ivo… Já ouviu a história?

Ivo chega até Tata.

IVO: Onde ele tá?

REDIMIDO: Ulisse, o nome do menino.

Gus puxa, de dentro da blusa, um colar de jequiriti que tem no pescoço.

GUS: Jequiriti! Vermelho e preto. São esses, os zoinho que você viu. Dá um enfeite bonito, mas é também veneno, um grande veneno! Se engolido, pode matar, mas olha… Bonito!

ULISSE: Cê já viu os viventes?

Gus faz que não com a cabeça.

TATA: Eu não sei, Seo Ivo.

REDIMIDO: Dizem que os filhos vieram… Vieram de uma mãe sem nome. Não se sabe do que não se fala. O homem sempre foi essa coisa calada. Esse braço direito de Seo Cândi. Eu não me arrisco com ele… Tome seu cuidado, viu!

ULISSE: O sonho de quem tá contido, só pode ser o de fora. Acredito que os viventes sonham como eu, mas a gente sonha com o que pode ver… Eles, de lá do curral, não podem ver nada, a não ser o céu… Esse céu que cega, sempre branco. Eu podia ver a cidade. Por isso sonhava a cidade, mas não foi como eu imaginei.

IVO (vê o pequeno vaso e o pega nas mãos): O que é isso? Foi ele quem te deu? Onde ele encontrou isso?

Tata não responde. Ivo observa o objeto.

IVO: O mundo já foi mundo, menina… Sua avó, a professora, bem sabia. O mundo era o mundo até o dia que sucedeu. Nesse dia, não houve prédio, não houve estrada, não houve ponte. Meio de transporte, não houve. Não houve ofício, não houve prática, não houve droga e não houve bicho capaz de manter o mundo, mundo. Eu era pequeno. Tudo o que era feito se desfez.

TATA: Ele vai voltar, Seo Ivo…

REDIMIDO: O menino foi, o mais velho. Se enfiou no meio do carregamento e foi. Levou o mais novo junto! O pai ficou louco. Pode não parecer porque cê só vê ele trabalhano, mas tá louco.

IVO: Nada fazia sentido, porque sentido foi a primeira das coisa que desaparecero no dia que sucedeu. Seo Cândi e os da família dele chamavam e ainda chamam o que sucedeu de “fim do mundo”, mas nós nunca chamamo assim… Sua avó, a professora, não deixava. Foi ela que ensinou pra nós que mais correto seria chamar de “O dia que sucedeu” porque é preciso lembrar que acaso não existe, que nada acontece por acontecer, mesmo que a gente não entenda.

TATA: Seo Ivo era menino, no dia que sucedeu…

IVO: Mais menino que os meus menino!

TATA: Perdeu os poucos que tinha, coisa comum a quem sobreviveu.

IVO: Rico era quem tinha alguém, algo pra comer, um teto, eu achava, mas não… Rico era quem sempre fora rico…

TATA: O resto vagava por comida, por abrigo, por medo de ficar, por es-

perança de achar um lugar onde não houvesse sucedido o que sucedeu.

IVO: Assim vagou a professora, sua avó…

TATA: As pessoas se juntavam em grupos pra vida ter chance…

IVO: A professora me achou sozinho, eu nem falar, falava! Ela me levou com seu pequeno grupo.

TATA: O grupo foi encontrado por Seo Cândi, que era jovem, que prometeu comida, abrigo e proteção pra quem trabalhasse na fazenda de seu pai, morto no dia que sucedeu.

IVO: Fomos os primeiros a chegar à Colônia. Saber o que seria então, foi a pior parte.

REDIMIDO: Ivo trabalhava na ala suja e a esposa no corte. Ela endoidou quando o Ulisse, o mais velho, teve de entrar pro batente, aos oito anos de idade. Falava coisa com coisa e ninguém entendia e Seo Ivo lá, tentando apaziguar o chefe… Ela dizia que tudo ia suceder de novo ou, como dizia Seo Cândi, “o mundo ia acabar”. Ela dizia que não estava certo o que se fazia aqui e que, por isso, “o mundo ia acabar” de novo e de novo, até que se fizesse diferente.

ULISSE: É assim: Uma vivente grávida pare. A cria vai mamar só o primeiro leite, o colossal. Depois eles são separados. Por um tempo, o leite dela vai ser retirado, até ficar o peito vazio. Enquanto ela tiver forças, vão repetir o procedimento. Já o vivente que nasceu, grita quando é separada e chora por uns dias. Isso se for fêmea. Se for macho, matam já. Um ou outro é escolhido pra reprodutor e pode viver um pouco mais. Pra alimentar essa fêmea, dão um preparado que faz ela crescer rápido. Ela ainda é muito nova, mas preles, “já tem porte de adulta”, então a matam, cortam em muitos pedaços e vendem a carne ou fazem como com a mãe.

Silêncio.

GUS: Por quê?

ULISSE: O pai fez muito mal pra você, quando te escondeu do mundo.

GUS: Ele não ia fazer isso se cê não tivesse ido. Ele queria cuidar de mim.

ULISSE: Agora cê não sabe de nada. Como é que cê nunca viu os viventes?!

GUS: Não vendo, ué! O que cê chama de curral, hoje é um galpão, só um galpão enorme. Os viventes não devem ver nem o céu… Nunca entrei lá. O que vejo é o corpo funcionário entrar e sair.

ULISSE: Então você não sabe como eles são?

Silêncio.

GUS: O que acontece com a mãe das viventes?

ULISSE: São matadas também. Essas são vendidas mais baratas, porque a carne cansou, mas são matadas do mesmo jeito.

GUS: Seu Cândi, agora, construiu uma máquina…

ULISSE: Uma máquina de processamento.

GUS: O que é isso?

ULISSE: Antes de nós nascer, havia lugares como a Colônia onde matavam outros viventes. Nesses lugares, já havia máquinas de processamento. Seu Cândi não inventou nada, ele só conseguiu construir de novo uma coisa que existia no passado. Ela serve pra moer, triturar e transformar numa massa só, tudo o que sai dos viventes e que não pode ser aproveitado se não for assim. Sangue, tripa, ossos.

IVO: Eu preciso ir, menina. Hoje é o grande dia de Seo Cândi e a família já deve estar pra chegar.

TATA: Se ele aparecer, eu dou recado, Seo Ivo. Eu seguro ele aqui, o senhor não se preocupe.

GUS: Onde cê aprendeu isso?

ULISSE: Na cidade, irmão. É bem verdade que eu saí da Colônia porque não aguentava trabalhar no matadouro. Eu tinha medo e seguia ordem, mas consegui que essas mãos nunca matassem um vivente. Entender, eu não entendia. Eu tinha a sua idade e sabia que ninguém entendia o que estava acontecendo, mas obedecia… Pensei que a cidade seria diferente…

GUS: Você fala e não conta!

ULISSE: Pra nós, ela é igual. Até pior.

GUS: Cê não queria trabalhar no matadouro, mas deixou eu pra trabalhar!

ULISSE: Eu achei que ia conseguir voltar pra te buscar e buscar o pai.

GUS: Foi pra isso que cê voltou?

Tata lê um papel que tem nas mãos, um convite. Sobre suas pernas, em toda a cama, há muitos outros.

TATA: “Digo e repito: Presenteie-me com um pouco de seu tempo. Venha à humilde recepção que lhes preparo e eu hei de mostrar quantos mil novos tempos pode o tempo ter.” Como o senhor pediu.

CÂNDI (voz): Está bom, menina. Junte todos e me entregue.

Tata junta os convites e estende a alguém que não é visto, na escuridão.

CÂNDI (voz): Já tomou seu remédio?

Ela faz que não com a cabeça.

CÂNDI (voz): E o que está esperando?

Ela toma o remédio e o observa se afastar. Recosta-se, com mal-estar.
Vê-se apenas o vaso e ouve-se um tambor, um toque de barravento, que reverbera por todo o espaço. Aos poucos, o som correntes e de um ruidoso motor começam e tomam lugar do tambor. De súbito, tudo cessa.

ATO 3

Na penumbra, Gus e Ulisse próximos à cama de Tata.

GUS: Tata!

Ela permanece dormindo.

GUS: Tata!

Tata começa a acordar, nauseada.

TATA: Gus?

GUS: Não se assusta. Eu tô com o Ulisse.

TATA: Ulisse?

ULISSE: Eu peço licença, Tata.

TATA: Ulisse! Você voltou?

GUS: Voltou? 

ULISSE: Voltei, não. 

TATA: E então?

GUS: E então? Fala!

ULISSE: Eu vim parar a máquina!

GUS: Eu não falei que ele tava besta?!

ULISSE: Eu vim pra acabar com isso! Eu vim como só quem volta da cidade… Ninguém volta da cidade, não é?

GUS: Tá vendo? Ele mistura tudo e nem sabe pra quê veio!

TATA: Gus! Ulisse… Você saiu daqui porque, como esse aí, desejava ir à cidade, não foi? A avó dizia que a linha do horizonte, se vista do portão da colônia…

ULISSE: É Kalunga, eu sei, a linha entre o mundo dos mortos e o dos vivos. Eu não sei de que lado da linha está a vida, Tata. Na cidade eu encontrei o porquê da colônia.

TATA: Os compradores…

ULISSE: Enquanto estive por lá, estive escondido.

GUS: Não pode ser…

ULISSE: Mas tive a sorte de ser ajudado. Sem entender, cheguei a uma pequena casa, muito grande, onde havia outros como eu. É isso, eu vim foi pra buscar Gus e o pai!

GUS: E a Tata tamém!

ULISSE: E você Tata, se quiser…

TATA: Eu posso pensar em meios de ajudar vocês…

ULISSE: O pai!

TATA: Amanhã é a grande inauguração…

ULISSE: Pois, então, a única maneira de ter a atenção do pai, é parando a máquina. Destruo tudo e o pai vai ter que me ouvir. Se não for assim, ele não vai parar.

TATA: Pois a única maneira de parar a máquina, é parar seu operador, seu pai. Eu sei como ela é, Seo Cândi me fez redigir os manuais que ele pretende entregar à família.

Redimido e Demitido carregam pesados baldes com vísceras. Demitido para de andar, com dificuldade na tarefa. Ao notá-lo, Redimido também para. Neste momen- to, um vulto quadrúpede passa por trás dos dois, que se assustam. Redimido saca sua faca. Na penumbra, ele parece ver e tenta se aproximar do vulto.

REDIMIDO: Um em cem. Às vezes nem isso. Um em mil, um em alguns mil. Às vezes, nem.

DEMITIDO: Ah, eu carregava dois baldes cheios enquanto você, um quase cheio e um nem metade! Venha, vamos distribuir isso direito!

REDIMIDO: E mil é fácil levar a cabo. Como é mais fácil levar cem, como é mais fácil levar dez do que um, apenas um. Um desgarrado pode dar mais trabalho que um grupo grande.

DEMITIDO: Aqui, já dividi. Vi que você levava ossos, cada osso grande! Femorudo! Eu só levava sangue, quase que sangue, praticamente. Por que o sangue pesa tanto?

REDIMIDO: Eu tô te vendo!

DEMITIDO: Venha, homem. Tem nada aí!

REDIMIDO: Se quiser viver um cadinho mais, vem comigo até o matadouro, é o tempo a mais que te dou.

DEMITIDO: Venha! Ele já deve tá longe! E mesmo se tivesse aí, cê acha que ia te entender?

REDIMIDO: Cale a boca, seu protetor de vivente!

GUS: Eu vou chamar o pai.

ULISSE: Eu vou com você.

GUS: Deixa de ser tonto! Vai se mostrar assim, pro pai? Ele vai achar que tá alucinano… E outra, a colônia não é a mesma que cê conheceu. Eu posso vagar sem ser visto. Cês fica aí, quietim. (vai sair, mas volta-se) Cê fez bem em voltar, irmão. Logo cê vai tá em casa! (sai).

Gus corre, mas para ao se deparar com Redimido e Demitido. Se esconde. Redimido lança-se sobre o vivente, que começa a gritar. Ele, por sua vez, grita “para” e resmunga. Por fim, consegue imobilizá-lo e trazê-lo à luz. É uma pessoa nua e suja, feroz e assustada, que chora. Gus assiste, atônito. Redimido a amarra, em silêncio. Ca- lado, Demitido saca os baldes para retomar o caminho e vê então Gus. Com o susto de Demitido, Redimido olha em sua direção e também vê o jovem, que parte correndo.

REDIMIDO: Era outro? Eles tão fugindo! Pega, desgraçado, ou vai sobrar pra você e pra mim!

Demitido corre em direção a Gus. Redimido hesita entre ir atrás, mas retorna e encara o vivente, preso pelas mãos e pés.

ULISSE: Ouviu isso?

TATA: O dia de hoje, há de ter muito barulho.

ULISSE: O que você tem, Tata?

TATA: Eu não sei.

Ivo está toscamente caracterizado quase como um palhaço anfitrião. Um sorriso fixado no rosto.

IVO: É o jeitim mais simplim que existe, o que Seo Cândi foi buscar no passado pra oferecer na Colônia! Toda a sorte em comidas que só quem tem a sorte em escolher o que comer pode comer e se fartar. Quer um gostinho dessa história? Tem na carne. Quer um gostinho da saudade dos tempos de outrora? Ora, a carne é só saudades e agora, nada mais se perderá. Com a máquina, tudo o que antes era descartado, agora também vira comida. Ossos, cartilagens, vísceras, sangue. A máquina processa tudo o que o vivente ainda deixava nessa terra, de forma que, dele, não restará mais nada! Bem vinda, família!

Gus, na penumbra, chega ao galpão dos viventes. Ele percebe, em choque, serem os viventes, amontoados e quase imóveis, na escuridão. Gus fecha a porta, com dificuldade. Com o ruído, os viventes começam a emitir um som crescente que torna-se ensurdecedor, enquanto Gus foge.
Demitido procura por Gus.

DEMITIDO: Eu sei que cê não é um deles! O que é que cê faz por aqui? Me mostre onde cê tá e eu mantenho o perigo longe de você!

Gus chega até onde está o pai, que não o percebe, e mantém-se escondido. Ivo finge não ouvir os viventes.

IVO: Sou o que sou por levar jeito para a loucura! Nunca me levantei sem cair, andei sem tropeçar, fiz qualquer coisa sem dificuldade em ser eu mesmo! A máquina, família, veio para fazer o que eu, pobre Ivo, desastrado e lento, não poderia fazer jamais!

Ivo retira de dentro de um saco, um pedaço pequeno de carne. Sobe na máquina e a lança dentro da boca superior.

IVO: Quem dera eu ser como vocês. Ser convidado como membro da família, inventar uma coisa, como Seo Cândi fez. Quem dera eu poder apreciar a carne como vocês, mas nem para isso sirvo, ela me causa um nauseabundo enjoo! Quem me dera… Pra isso, bastava eu, Ivo… Não ser. Nascer Seo Cândi, para fazer melhor ou não fazer nada, mas para poder escolher! Mas quem sou eu? Quem sou eu?!

Ivo puxa a alavanca, ligando a máquina. O saco, preso à boca inferior da máquina, se enche. Ivo desliga a máquina, vai até o saco, o retira e coloca outro em seu lugar.

IVO: O processo leva seu tempo. Por favor, acompanhem Seo Cândi, que o jantar será servido!

Ivo, antes sorridente, torna-se sério à medida que assiste os convidados se afastarem. Gus assiste a tudo. Ivo sai.
Ulisse está agoniado, ao lado da cama de Tata, que dorme. Ele pega o embornal do irmão e coloca sobre a cama, para ela, em despedida. Sai, em seguida.
Gus, só, se aproxima da máquina, sobe as escadas, chega até a boca superior e olha. 

CÂNDI (voz): Ivo, iguais a você, já não nascem mais! Como eu estimaria se você tivesse filhos! A sua recepção foi brilhante! Todos riram muito! Você foi muito cordial! Agora nós vamos jantar. Amanhã, depois do almoço, faremos uma inspeção no matadouro. Você deve, antes do amanhecer, me trazer um pacote cheio da carne mais fresca do processamento de hoje. Entendeu? Cedo, porque se não, a carne estraga.

Demitido chega até a máquina. Gus se assusta e cai dentro da boca superior. Sem que se puxe a alavanca, a máquina começa a moer. Ivo retorna, correndo, vê Demitido e vê o pacote se encher, na boca inferior. Ivo encara o funcionário em tom ameaçador, enquanto desliga a máquina. Escuridão.

TATA (voz): Meus sonhos são as espirais que a avó me conta. Muitas coisas se repetem e ela diz que é assim. Diz que enquanto uma coisa, uma palavra, por exemplo, não terminar de dizer tudo o que tem para dizer ou enquanto não for ouvida, ela vai ecoar e que o avançar do tempo é isso, nada fica para trás e o que está por vir é o que já houve.

Penumbra. Vê-se o vulto de Ivo, à procura de Gus. Também vê-se Ulisse, que foge, perseguido. Escuridão.

TATA (voz): Quando acordei, era noite ainda e eu estava sozinha. Ulisse pôs no meu colo, a sacola de frutas de Gus. Agora, mais novo e mais velho estavam lá fora. Eu acordei disposta a melhorar, a escrever, até!

Escrever para Gus… Confesso que não vê-los ali, me entristeceu e preocupou. Eu sei o que acontece lá fora, mas eles estavam vestidos… Iriam voltar e trazer o pai. Eu estava disposta a comer e mordi, vagarosamente, um caqui.

FIM.

Maio/2022