Dramaturgias do Tempo

Crianças Selvagens

O que é preciso defender é o direito de todo corpo de não ser educado para transformar-se exclusivamente em força de trabalho ou força de reprodução. É preciso defender o direito das crianças, de todas as crianças, de serem consideradas como subjetividades políticas irredutíveis a uma identidade de gênero, de sexo ou de raça.

PAUL B. PRECIADO, Um Apartamento em Urano

 

A NOITE DAS CRIANÇAS SELVAGENS

Lá, no bueiro da Terra
não no tão fundo que
não se possa respirar,
mas nem no tão raso
em que se possa ver
com frequência a luz
do sol, num buraco fundo
o suficiente para
não ser mais superfície,
lá se encontram
as crianças selvagens.

Seus pais há muito
desapareceram
mas lá também viviam.

Durante o dia, trabalhavam
na superfície para os donos
das coisas do lugar.
Durante a noite, cansados, fatigados,
brincavam por entre os buracos onde moravam uns com os outros
Lá, onde todos eram de todo mundo
e ninguém era de ninguém,
durante a noite
eles se lambuzavam uns nos outros
e deixavam de fora dos
buracos todas as suas vergonhas.

Irresponsáveis progenitores
sumidos de suas crias.
Nascidas de todas a mães,
filhas de todos os pais,
as crianças selvagens vieram ao
mundo após as noites do grande bacanal. Por que hoje estão sozinhas? Não sabemos. Para onde foram os adultos? Tampouco. Numa noite foram concebidas,
na madrugada nasceram bebês,
e tão logo raiou o dia, tiveram
que subir às ruas para roubar o que comer!

 

PRÓLOGO

Munido de uma lanterna e um espelho, o Inspetor rompe a escuridão do bueiro da Terra

O Inspetor: Aqui é mesmo o fim do mundo. Não há vida humana que possa sobreviver a um lugar inóspito como este.
Como cheira mal.
E, no entanto, o espaço parece muito amplo. Bom, bom…
Talvez depois de uma boa dedetização, um banho de água sanitária… Precisaremos de uma boa iluminação, é claro, mas certamente servirá aos nossos propósitos.

Que ruídos são esses? Ratos? Baratas? Está certo, precisaremos mesmo de uma boa dedetização. Talvez até mesmo uma defumação, uma sessão de descarrego, porque vivos aqui não há, é certo, mas talvez uns espíritos dos mortos ainda rondem…

Pelo amor de Deus, mas que cheiro ruim tem esse lugar… Aqui é mesmo o fim do mundo…

Alguma coisa acerta a cabeça do Inspetor. Ele desmaia. Sua lanterna e seu espelho caem no chão.

  1. PAI É QUEM CUIDA

Debaixo da Grande Cidade, talvez em um bueiro, lá, onde moram as crianças selvagens, neste buraco que elas chamam de maloca. Estão sujas, de sangue, de suor e de fuligem. O sangue, contudo, não é delas: vem de uma grande caça ainda fresca. Em breve verão um adulto pela primeira vez depois de muito tempo. Mas enquanto isso é Xan quem, com alguma dificuldade, reparte os pedaços da carne para Melonça, Didiê, Biu e Milu.

XAN: Ai, qui priguissa! Sempri sobra tudu pra iô. Caramba, eli era dus gordus, hein? Prontu. Fatiadu direitinho. Um tequinhu prucê, um tequinhu prucê… Um prucê tamém. E prucê. Prontu. U restu fica tudu pra iô.

DIDIÊ: I cum a carcaça, u que a genti fazemus? Tem qui tirá daqui, a Maloca vai ficá fidida di novu, num vô limpá mais uma veiz nãum…

MELONÇA: Ei, Xan, comu assim u restu fica prucê? Num é justu, teim um montãum aí! Vai deixá a genti passanu fomi?

XAN: Mas fui iô qui matô, fui iô qui fatiô. Iô fico cum a maió parti.

BIU: Mei ruim, u gostu deli… Mas pelo menus é gordurosu…

MILU: A Milu tá achanu gostosu…

BIU: A Milu acha tudu gostosu né, sua draguinha… MELONÇA: Xan, a genti fizemos a armadilha tudu juntu! XAN: Cala a boca sua fidida, iô qui mandu aqui na Maloca!

MELONÇA: Cê num manda ni iô! Mi dá otru pedaçu si não iô vô arrancá seus olhus, seu trôxa!

MILU: Num bliga, num bliga, a Milu fica tliste…

XAN: Veim pra cimá intão, sua baranga, si ocê arrancá meus olhus, iô arrebentu seus dentis!

MELONÇA: Si ocê arrebentá meus dentis, iô arrancu seu pintinhu fora!

BIU: Ai qui dor…!

MILU: Num bliga! Num bliga!

DIDIÊ: Pára ceis dois, ceis tãum assustandu a Milu!

BIU: Vai, Xan! Dá na cabeça da Melonça, mata ela, aí a gente vai tê mais cumida!

DIDIÊ: Biu, num bota lenha, Biu! Pára, cêis dois!

MELONÇA: Num paru nãum, eli é mó folgadu, essi mininu aí, fica querenu mandá ni nóis, cêis diviam pará di sê bobus tamém, a gente fizemos tudu juntus!

DIDIÊ: Issu é verdadi, Xan, a genti todis merecemus um tequinho maió!

XAN: Vai ficá du ladu da Melonça agora, Didiê? Traíra! Si reclamá di novu, ocê vai perdê seu tecu da caça…

DIDIÊ: Não, Xan! Peraí…

XAN: Prucê aprendê a num si bandiá pru ladu erradu…

Xan arranca o teco de caça da mão de Didiê.

MELONÇA: Seu filhu duma puta, devolvi u pedaçu dela, agora!

XAN: Vem pegá intãum, seu estrupíciu!

Melonça vai pra cima de Xan e dá na cabeça dele. Eles começam a se bater.

MILU: Num bliga, num bliga, a Milu vai cholá!

BIU: Vai Milu, aproveita, vamu pegá us pedaçus delis, vamu comê us pedaçus delis!

DIDIÊ: Pára agora, cêis dois! Pára, olha a sujêra qui cêis tão fazenu! Milu, chega di chôru, bebê!

Melonça morde o braço de Xan

XAN: SOCORRO! ESSA LÔCA VAI ARRANCÁ MEU BRAÇO!

Biu atira na cabeça de Melonça.

MELONÇA: Ai, meu coco! Queim foi u disgramadu? Foi ocê seu piolhentu? Biu, iô vô arrancá seu pintu tamém!

MILU: Chega, chega, Milu fica tlisti si seis bliga!

BIU: Socorru, Xan, mi ajuda, a Melonça vai arrancá meu pintu!

Ouvem um barulho na entrada da Maloca. Se surpreendem e param com o fuzuê. É o Inspetor, que entra com sua lanterna vasculhando o espaço.

DIDIÊ: Iscondi, iscondi! Vai Milu, iscondi!

MILU: Milu tá cum medu, Milu tá cum medu…

XAN: Vai, rápidu, pega a carcaça, eli vai pegá nossa cumida!

As crianças selvagens se escondem e o observam de longe.

O INSPETOR: Aqui é mesmo o fim do mundo. Não há vida humana que possa sobreviver a um lugar inóspito como este. Como cheira mal, que cheiro ruim…

BIU: Dêxa qui iô acertu a cabeça deli cum meu titicó!

MELONÇA: Iô vô atacá ele!

Antes que elas se aproximem, o Inspetor as ilumina com sua lanterna e leva um susto. Iluminadas, as crianças são pegas no flagra.

O INSPETOR: O que é isso?! Valha-me Deus, que susto! São… crianças?! Olá? Olá, pequenos. Meu Deus, como estão… sujos. Agora entendo a origem de todo esse fedor. Não posso acreditar, de onde vieram vocês? Vocês… Vocês falam a minha língua?

As crianças observam o Inspetor com ar suspeito, e discutem entre si.

DIDIÊ: Elis sempri acham qui somus burrus…

XAN: Vixe, mais um daquelis trôxa…

BIU: Divia te acertadu a cabeça deli cum meu titicó.

MELONÇA: Iô vô arrancá us olhus deli…

MILU: A Milu vai dá um pedacinhu pla ele… Qué um pedacinhu?

Milu se aproxima e oferece um pedaço da caça para o Inspetor, que quase vomita.

O Inspetor: O que é isso? Vocês estão comendo essa carne podre?

XAN: Num fala assim da nossa caça!

O INSPETOR: O que você está fazendo aqui? Isso aqui é um bueiro. Onde estão seus pais? Suas mães? Como vocês vieram parar aqui? Eu preciso reportar isso urgentemente para os órgãos responsáveis! Crianças abandonadas, morando aqui, no bueiro… No meio do esgoto, do lixo, da podridão…

BIU: Ei, num fala assim nãum, aqui é nossa casa!

MILU: É a Maloca! É a Maloca da Milu!

O INSPETOR: Ô, meu anjo, é esse o seu nome? Milu? Isso lá é nome de gente… Por trás dessa sujeira toda, olhinhos tão graciosos… E vocês, outros, como se chamam? Devem estar com fome, hein? Estão precisando de um bom banho. É a treva mesmo, este país é um inferno, onde já se viu, crianças tão marginalizadas…

DIDIÊ: A gente num samos margizalinadas não, tiu.

O INSPETOR: “Marginalizadas”, minha querida. Ou querido. Desculpe, eu não consigo ver bem, você é um menino ou uma menininha?

XAN: É a Didiê. Num mexe cum ela nãum, si não cê vai si vê cumigu!

DIDIÊ: Meu heroizinhu!

O INSPETOR: Ah, meu Jesus… Você deve ser o líder deste grupinho, é isso? Calma, rapaz, pode baixar a guarda. Eu estou aqui para ajudar vocês. Sou o inspetor da… Bem, fui designado para inspecionar a situação dos bueiros da cidade. Eu… Eu estou em choque. Não posso acreditar que haja crianças abandonadas, largadas à própria sorte, sobrevivendo neste buraco imundo…

BIU: Num é buracu nãum, seu trôxa, a genti já falamos, aqui é a Maloca, é a nossa casa, seu burru!

O INSPETOR: Muita calma, rapaz, eu só estou querendo ajudar. É impressionante: eu não sabia que tinham tantas saídas aqui embaixo. Para onde dão?

DIDIÊ: Prus otrus bueirus, a gente anda tudu ai pur dentru, a gente conhecemus tudu, ó, iô tenhu até um mapinha que iô fiz…

MELONÇA: Grrrr… Pára, Didiê, num mostra não, eli vai roubá da genti, olha u tamanhu deli, essi aí é adultu…

O INSPETOR: Meu Deus, você parece um bicho, menina. Como estão sujos os teus cabelos, olha isso, você… Você deveria estar brincando de boneca, na escola. Vocês… Vocês já foram para escola alguma vez na vida? Antes de tudo, onde estão os pais e as mães de vocês?

MILU: Milu num tem pai nem mãe… Milu só tem os ilmãozinhos dela qui são esses dai ó. O Xan, o Biu, a Melonça e a Didiê. Tiu, cê tem um doci,

tiu? A Milu quelia um doci…Puquê ocê tá cholandu?

O INSPETOR: Desculpe, eu estou um pouco comovido. É injusto demais, esse mundo cão, vocês, aqui, sozinhos, fedidos, esfomeados, sem pai nem mãe, vivendo neste buraco, junto dos ratos, do esgoto, do lixo. Como podem, meu Deus, como podem?

BIU: Xan, manda eli embora, eli tá enchendu u sacu, iô queru comê, iô tô cum fomi…

XAN: Vai embora, tiu, sai fora, ô… Aqui é nossa Maloca! Sai, sinãum iô vô batê em tu!

MILU: Tadinho du hominhu, tá cholanu, fica tliste não, a Milu tá aqui, tá bom?

O INSPETOR: Um anjinho. Sujo, mas ainda sim, um anjo. Acho que foi mesmo Deus quem me mandou para fazer este serviço aqui, só pode. Fiquem tranquilos. Sinto que isso foi um chamado. De agora em diante vocês não estarão mais sozinhos.

BIU: Ihhh, nem vem, num tem lugar pra mais ninguéim aqui, a genti num vamus dar um pedaçu di caça pra tu nãum…

DIDIÊ: Eli num qué nossa caça, Biu…

MELONÇA: Intão eli qué u que…? Grrrrr… Sai daqui, seu velhu…!

O INSPETOR: Calma. Vocês estão assustados. Eu entendo, é normal, eu também estou assustado. Eu vou embora. Não quero importuná-los. (Faz menção de sair. Pensa, e dá meia volta.) Esperem. Acho mesmo que foi Deus quem me enviou até aqui. Pensando bem, tudo tem um motivo. Vocês pelo visto estão com fome, não é verdade? E só tem essa carne podre para comer. Olha, deixem isso de lado, vamos, vamos jogar fora.

XAN: Cê é doidu tiu? A gente num vamos jogá fora nossa comida…

O INSPETOR: E isso lá é comida? Não, vocês estão enganados. Estão acostumados aos maus tratos, a não ter ninguém para cuidar de vocês. Infelizmente, crianças como vocês existem de monte por aí. Abandonadas, largadas, filhas de ninguém. Mas pai e mãe não são aqueles que concebem, não. Pai é quem cuida. Eu vou cuidar de vocês.

Eu vou subir à superfície e volto com um marmitex com bastante arroz, feijão, batata frita… e um bom bife à parmegiana! E refrigerantes. E gelatina de sobremesa. Querem? Eu sei que vocês querem. Não parece bom? Gostam, não gostam? Eu não vou deixar vocês comerem essa carne podre, não, não. Agora eu estou aqui.
Está decidido. 
Eu vou ser como um pai para vocês.

  1. ESPELHO ESPELHO MEU

Movido por suas boas intenções, e comovido por seus sentimentos cristãos, o Inspetor se habituou a levar marmitex e refrigerantes para as crianças selvagens. Em troca de quê, não sabemos. Talvez ele imagine que esteja fazendo a sua parte para mover a roda do mundo em prol dos necessitados.
Algumas semanas depois, lá vem ele mais uma vez, trazendo produtos de higiene.

O INSPETOR: Ó de casa?! Onde estão as minhas crianças? Trouxe presentes, pequenos! Vejam só: sabonetes, pra vocês se lavarem, uma muda de roupas… Escova de dentes! Sim, porque, da última vez em que eu trouxe comida, vocês lembram? Eu expliquei que é preciso escovar os dentes depois das refeições. Se não, os dentinhos vão todos apodrecer!

Milu é a única que se aproxima. O Inspetor se ilumina ao ver a mais dócil das crianças. As outras ficam a distância, meio desconfiadas.

MILU: Oi tiu! Milu tá com fome, tiu…

O INSPETOR: Oi Miluzinha, meu anjo, o tio trouxe comida, veja só: aqui nessa sacola tem marmitex com aquele bife à parmegiana que vocês gostaram. E batatas fritas, naquele outro. Os refrigerantes estão ali.

Agora nestes daqui tem saladinha de tomate, alface, verduras. Tem que comer verduras, pessoal, não pode ficar só na batatinha frita não. E quem comer tudo, adivinhem? Vai ter sobremesa! Xan, que bom te ver!

XAN: Passa pra cá, passa, vai vai vai, podi passá, prontu, agora tchau, si manda.

O INSPETOR: Xan! O que é isso? Onde já se viu? Não está esquecendo de nada não?

BIU: Tá sim, tá sim, Xan, pega ali u ôtru potinhu qui eli trusse ali, qui tem us dôci!

MELONÇA: Grrrr… Essi adultu chatu di novu… Vô mordê ele…

MILU: Num mordi não, Melonçinha, Milu fica tlisti si cêis bligá…

MELONÇA: Dá logu a comida, seu chatu, vai, pega, pega Biu, vamu. Nossa, qui fomi, qui gostusu, issu daqui é muitu bom!

BIU: Mi dá um pedaçu do seu?

MELONÇA: Eiiii é meu, é meu, sai seu piolhentu!

XAN: Iô queru tamém, iô sô maió, iô tô cum mais fômi!

O INSPETOR: E cadê o meu “obrigado”? Hã? Vocês precisam ser gratos, pessoal. Olha só: antes de comer, a gente precisa fazer uma oração. Vamos, juntem as mãos aqui, assim, desse modo, vamos todos agradecer ao papai do céu pela…

DIDIÊ: A genti num sabemus fazer uma oçarão tiu, a gente tamus com fomi…

O INSPETOR: “Oração”, Didiê, repita comigo, “oração”. Vocês tem que aprender a agradecer. Aliás… Vocês estão muito sujinhos, pessoal. Eu falei que era preciso lavar as mãos, não falei? Olha. Vamos fazer o seguinte. Peguem este sabonete aqui, lavem as mãos, tomem um bom banho e depois coloquem essas camisetas que eu trouxe. Estão vendo? Limpinhas!

DIDIÊ: Credu que feiu, é tudu igual.

O INSPETOR: São roupas de qualidade, minha querida… Querido… Enfim, não sei. Olhem para vocês, olhem esses trapinhos que vocês estão vestindo! Crianças não podem sair por aí desse jeito, com as vergonhas de fora…

DIDIÊ: Eeiiii fui iô qui fiz as nossas rôpinhas…!

XAN: A Didiê é artista!

DIDIÊ: Iô façu tudu tão bunitinhu, iô sei custurá, sabia, tiu? Iô peguei essis pedacinhu di panu num canal ali na saída lá da Maloca, sabia? Tudo cororidinhu, achei tão bunitu…

O INSPETOR: “Coloridinho”, Didiê. Deviam ser sobras das fábricas de roupa do Brás, crianças. Escutem: vocês não merecem se vestir com as sobras. Vocês merecem roupas novas, limpas, decentes.

DIDIÊ: Eeeeei mas nossas rôpinhas são detences!

O INSPETOR: “De-cen-tes”, Didiê, repita comigo: de-cen-tes! Por Deus, você provavelmente é dislexa…!

DIDIÊ: Eeeei iô num sô issu daí nãum…

XAN: Num xinga a Didiê si nãum ocê vai si vê cumigu, ô seu trôxa! Dá essa cumida aqui logu, vai, e rala peito…!

BIU: Isso Xan, pega, pega, iô vô pega us dôcinhu tudu, é tudu nosso!

MELONÇA: Grrrr… Sai daqui, seu velhu chatu… Êca tem um monti di planta nessa daqui, nossa num servi pra nada…

As crianças arrancam as comidas da mão do Inspetor, manejam selvagemente, fazem uma grande bagunça, jogam fora as verduras, ficam só com as gostosuras. Depois, se mandam para dentro das tubulações da Maloca. O Inspetor recolhe os marmitex jogados pelo chão, e começa a chorar discretamente. Milu é a única que fica no ambiente, e se aproxima.

MILU: Tiu tiu num chola não tiu sinão a Miluzinha fica tlisti… A Miluzinha gosta do tiu…

O INSPETOR: Meu anjo, você é tão boazinha, você tem um coração tão bom! Mas seus irmãozinhos também são bons, coitados, ele só foram mais perturbados que você, enfrentaram mais provações… Mas eu vou cuidar para que você não seja corrompida por esse mundo cão, Milu…

MILU: Ebaaa bligadu tiu a Milu plomete qui vai ser boaçinha…

O INSPETOR: Só de olhar para você, meu anjo, com essa perninha machucada, eu sinto um aperto no peito. O que aconteceu contigo, Milu?

MILU: A Milu é uma seleia! A Milu nasceu assim cum uma pelninha assim dodói, já… O Biu fala qui a Milu é um monstlinhu… A Milu fica tlisti quandu eli fala assim…

O INSPETOR: Milu, você não é um monstrinho! Olha, vem cá: deixa eu te mostrar o presente que eu trouxe pra você. Tá vendo só? Isso aqui é um espelho!

MILU: Cleeeedu quem é essa aqui?

O INSPETOR: É você, Milu! É você mesma!

MILU: Nossa, qui feinha qui a Milu é…

O INSPETOR: Não, não, meu bem, você não é feia. Você só está suja, mal cuidada. Toma aqui esse sabonete. Lave o seu rostinho, o seu corpinho. Vai ali no canto, pega esse galão de água, e tome um banho. Depois, vamos colocar uma roupinha nova em você, Milu. (Olha para os céus.) Meu Deus, isso é um desafio, não é? Uma provação? Se for, eu vou provar o meu valor. Eles não tem ninguém… Pronto, Milu? Olha que linda que você está! Cheirosa, bonitinha. Agora vamos dar um jeito nesse cabelo?

O Inspetor ergue o espelho para Milu, que novamente se olha, agora de banho tomado.

MILU: Nossa, nossa, essa é a Milu?! Qui bunitinha qui ela é agola, palece uma plincesa!

O INSPETOR: Você é uma princesa, meu bem, olha no espelho: tá vendo como você é linda? Só precisava mesmo de bons cuidados!

As crianças voltam com as embalagens vazias.

DIDIÊ: Milu, toma, a genti deixamos um restinho procê… Ei! O que tá acontecenu?

MILU: A Milu é uma plincesa seleia!

MELONÇA: Grrr O qui essi dai fez cocê?

MILU: A Milu adola água!

O INSPETOR: Vejam, vejam, ela não está linda?

BIU: Nossa, nossa, neim pareci aqueli monstrinhu di antis…

DIDIÊ: Qui bunitinha qui ocê ficou Milu…É, até qui essas rôpinha ai é boa mesmu…

XAN: Ei, olha isso… Essa coisa aqui… É igual aquela do Kaike… Cês lembra?

O INSPETOR: O nome disso é “espelho”, Xan, repita comigo: espelho. Eu vou deixá-lo aqui, vai ser ótimo para a auto-estima de vocês… Quem é o Kaike?

As crianças se entreolham.

MILU: Ê nosso ôtlo ilmãzinhu…

O INSPETOR: Outro irmãozinho?

BIU: …o mais velho. Qui virô adultu…

O INSPETOR: Adulto? Por que ele não tomava conta de vocês? Onde ele está?

XAN: Mortu.

O INSPETOR: Ah, não. Não. Morto? Faz tempo isso? Se eu tivesse chegado antes… Eu prometo que não vou deixar isso acontecer com vocês… Eu vou cuidar de vocês, mesmo que vocês não queiram, eu quero cuidar de vocês, eu quero proteger vocês… Está bem?

XAN: Por mim…

BIU: Cê vai continuá trazenu cumida?

MILU: Ebaaaa! A Milu gosta! Bligado, papai!

O INSPETOR: Milu, você… Você me chamou de quê?

MILU: Papai…

O Inspetor não consegue esconder sua felicidade. A partir de agora, o Inspetor deixa de sê-lo, e torna-se o Pai das crianças selvagens.

  1. MUITOS CUIDADOS

Ciente de suas responsabilidades de Pai, suas visitas tornam-se mais frequentes, sua presença mais ostensiva, seus cuidados mais superprotetores… Desta vez, quando chega na Maloca, encontra somente Biu, às voltas com seu titicó.

BIU: Qui bosta, essa merda num funciona mais. Num vai dá mais pra caça nadinha, nem pra acertá a cabeça de ninguém.

O PAI: Tá falando sozinho, Biu?

BIU: Ei… É ocê, é…

O PAI: Por que, não tá feliz em me ver, não?

BIU: Cê trouxi cumida, foi? Minha barriga tá roncanu…

O PAI: Trouxe, claro que eu trouxe. O que seria de vocês, se eu não trouxesse comida, né? Mas eu trouxe algo melhor: trouxe presentes.

BIU: Presentis? Qui porra é essa? É di cumê?

O PAI: Presente, Biu. Presente é… Pode ser qualquer coisa. Qualquer coisa que a gente dá com carinho, emoção, afeto. Entende?

BIU: Iô só queru issu daí si for cumida.

O PAI: Calma, Biu, vai ter comida. Mas o presente que eu trouxe são sapatos. Não tem condições de vocês continuarem andando descalços por aí. Vocês podem se cortar, se machucar, pegar uma leptospirose…

BIU: Iô num vou pegá issaí não..

O PAI: Claro que não. Porque você vai usar sapatos a partir de agora. Olha, olha: não é bonito?

BIU: Num achei nãum…

O PAI: Poxa, Biu, você podia ser um pouquinho mais bem agradecido, né? Caramba, eu trago comida pra vocês, trago roupas, trouxe esses sapatos. Não é barato não, sabia? Mas tudo bem, eu trouxe porque eu realmente quis dar de presente pra vocês. O que foi, hein? Que cara é essa?

BIU: Hum… Né nada não. É que meu titicó quebrô.

O PAI: O seu o quê?

BIU: Titicó. É issu aqui ó. Foi um negóciu qui u Kaike mim deu.

O PAI: Hum, deixa eu ver… Tá vendo, Biu, isso é um presente. Está cheio de lembranças, de afetos… Tem um valor sentimental.

BIU: Num vali nada essa merda dessi titicó, agora essa bosta tá zuada.

O PAI: Olha a boca, Biu! Tá bom, tá bom, me deixa ver o seu “titicó”. Você gosta dele, né? Sempre te vejo carregando isso por ai. O nome disso, Biu, é “estilingue”.

BIU: Iô gostu pra acertá predrinha na cabeça das pessoa, pra matá rato, ôto dia matei um ratão grandãum com eli, a gente cumemos uns dois dias esse ratão ó, foi mó bom!

O PAI: Vamos fazer um combinado? Eu conserto o seu “titicó”, mas você vai prometer pra mim que não vai mais usar ele pra acertar a cabeça de ninguém, e nem pra caçar ratos, tá bem?

BIU: Não.

O PAI: Não o quê?

BIU: Num prometu. O titicó é meu e iô façu o qui iô quisé cum ele.

Silêncio. O Pai reflete.

O PAI: Então tá certo, olha só, eu vou embora. Com licença Biu. E me devolve aqui os presentes, por favor. Toma, pode ficar com o seu titicó quebrado. Boa sorte.

BIU: Eeeeeei! Ocê falô qui era meu!

O PAI: É, mas eu estou desfalando agora.

BIU: Nãum!

O PAI: Não o quê?

BIU: Num podi isso!

O PAI: Ué, por que não? A comida é minha, os presentes são meus, e eu faço o que eu quiser com eles.

BIU: Ahhhhh tá bom, vai, como ocê é xatu, ocê é muito xatu, tá bom, tá bom, tá bom, conserta pra mim vái pufávô, vai, vai paizinhu…

O PAI: Você me chamou do quê?

BIU: Paizinhu, ué, ocê num é nossu paizinho agora?

Milu se aproxima, muito feliz, com o espelho nas mãos.

MILU: Paizinhuuuu! Paizinhuuuu veio vê a Milu! Ebaaaa, paizinho trôsse presente!

O PAI: Que graça, Milu! Estou vendo que você tá levando a sério, hein, o que eu falei? De tomar banho, direitinho, escovar os dentinhos. Deixa eu ver os dentinhos da Milu? Olha, estão menos sujinhos. Mas ainda assim um pouco sujinhos, né?

MILU: Ahhh papaizinhu, a Milu tem muita pliguiçinha… Mas se u papai iscovassi us dentinhus da Milu, a Milu ia sê uma plincesa pla sempli!

O PAI: Ai ai ai, Milu. Você tem que aprender a escovar sozinha. Onde estão os outros? Didiê, Melonça… Xan?

MILU: Elas tão lá dentlu, puquê a Melonça vai cotá fola o pézinho da Didiê, sabe paizinho, puquê a Didiê pisou num caco de vidlo, ai coltô, saiu sangue, e agola u pézinho dela tá podle…

O PAI: O QUÊ? Não, pelo amor de Deus, onde elas estão, vamos parar com isso agora!

Milu aponta para um dos túneis. O Pai entra. Milu veste os sapatos e dança com eles. Biu também gosta dos sapatos, eles brincam. Dali a pouco volta o Pai com Didiê no colo, e Melonça em seu encalço.

O PAI: Vocês deviam ter me chamado. Meu Deus, que absurdo isso. Olha, deixa eu explicar uma coisa: quando vocês se machucarem, não precisa “cortar” fora o membro não, está bem?

DIDIÊ: Hum… Tá… Duen…du… Tá duendu muitu…

MELONÇA: Grrrr… U pézinhu da Didiê vai caí, tá podri…

O PAI: Nada disso. Pelo amor de Deus, crianças! Olha, calma. Melonça, pegue ali a minha mala. Por sorte eu ando sempre com um kit de primeiros socorros. É só a gente limpar esse machucado. Vai ficar tudo bem, Didiê. Vamos fazer um curativo. Pronto. Lavar, lavar bem. E você vai tomar um antibiótico, eu mesmo vou comprar assim que sair daqui.

DIDIÊ: Hum… Obri… gadu…

O PAI: A partir de agora, minha pequena, não é mais pra você andar descalça, está bem? Olha, olha, olha o que papai trouxe pra vocês: sapatos! Vejam só, não são lindos? Um parzinho pra cada um. Vamos, Melonça, vista, vista. E o seu Didiê, vamos deixar aqui no cantinho pra você usar quando seu pé melhorar, está bem?

Melonça experimenta os sapatos, mas não gosta muito não..

MELONÇA: Ai issu machuca meu pé, fica apertadu, iô num queru nãum…

O PAI: Você quem sabe. Não use então. Só espero que você não pise num caco de vidro que nem a Didiê.

MELONÇA: Golpi baixo, hein… Tá bom, iô uso vai.

O PAI: Crianças, crianças. Tudo que eu quero é o bem de vocês…

BIU: Paizinhuuuu, ocê inda num consertô meu titicó!

O PAI: Ah Biu, calma, calma, eu sou um só. Me dá aqui de novo. É fácil. É só prender com uma fita aqui, amarrar essa pontinha aqui e… voilà! Prontinho!

BIU: Obaaaa! Obrigado, paizunhuuu!

MILU: Viva u paizinhu!!!

MELONÇA: Iô tô cum fome.

O PAI: Tem comida ali, eu trouxe, Melonça. Vai, anda, pega. Muito bem. Pronto. O que tá faltando dizer?

MELONÇA: Qui gostosu!

O PAI: Não senhora, não é isso. Qual é a palavrinha mágica?

MILU: Obrigadu!

DIDIÊ: Obrigadu, paizinhu. Obrigadu pelu sapatinhu e pelu curativu. E obrigadu pela cumida tamém. E por não esquecê di nóis.

O PAI: Eu jamais esqueceria de vocês, Didiê. Andam, venham, me dêem um abraço. Vamos. Somos uma família, esqueceram?

Xan entra.

XAN: Aê cambada di esfomiadu, ó u qui iô peguei lá em cima pra nois, hein, fiz a rapa lá na lixeira da lanchonete ó, várias batata frita, tá meio murcha, mais dá pru gastu. Já cortaru fora u pé da Didiê…? Ei… u que eli tá fazenu aqui?

O PAI: Oi pra você também, Xan. Olha o que eu trouxe pra vocês: sapatos!

XAN: Iô num queru isso ai nãum, podi ficá pá tú

O PAI: Xan…

XAN: Vai embora seu otáriu, já falei prucê que a genti num precisamos docê nãum, vai cuidá da sua vida, rapá!

MILU: Num bliga, num bliga cum u paizinhu…

DIDIÊ: Num briga, Xan, eli salvô meu pézinhu, iô ia ficá sem pé, agora eli fez um curativu.

XAN: Hum… Salvô é? Menus mal.

BIU: Eli é nossu paizinho, Xan…

XAN: Até tu, Biu? A genti num precisamus di pai neim mãe!

O PAI: Toda criança precisa de pai e de mãe!

XAN: Cê sabi u qui a genti fizemus cum us nossus?

O PAI: Os seus pais te abandonaram aqui, Xan.

XAN: A gente comemus elis!

O PAI: Xan, por favor, que delírio. Olha, posso te dizer uma coisa? Você é marrento mesmo, hein, moleque? Mas eu admiro isso em você. Você precisa ser marrento assim, afinal, você é o líder aqui, não é? Eles confiam em você, então você tem que ser assim, forte, bravo, tá certo. Eu diria mais: eu me reconheço em você. Sabe por quê? Porque eu era igualzinho a você quando eu tinha a sua idade.

XAN: Mintira!

O PAI: Eu não tinha pai, não tinha mãe, então precisava ser bravo e marrento pra poder enfrentar o mundo. Mas no fundo, no fundo, tudo o que eu queria era que alguém cuidasse de mim. Infelizmente não tive essa oportunidade. Mas tudo bem, a vida me deu outras coisas: graças ao bom Deus eu cresci, arranjei um trabalho, e sobrevivi. Mas com você, Xan, pode ser diferente.

XAN: Pára…

O PAI: Você não precisa mais pegar batata frita murcha no lixo. Nem caçar ratazanas no esgoto. Também não precisa cortar fora um membro que estiver machucado. É possível curar, Xan. É possível ser cuidado por alguém. Me deixa cuidar de você, Xan. De você e dos seus irmãos, hein?

XAN: Hum…

MILU: Deixa, deixa… A Milu vai ficá tãum feliz…

DIDIÊ: Vai, bofinhu, vai…

O PAI: Toma. Aceita meu presente. Veste esse sapato, menino. Você vai ver, seus pés vão se sentir tão confortáveis que você vai se perguntar como pode viver tanto tempo sem isso.

Xan hesita. Olha para as outras crianças. Depois, pega o par de sapatos e os veste.

INTERSTÍCIO

UMA CARTA DO PAI PARA OS SEUS SUPERIORES

Aqui embaixo era terra de ninguém. Vocês disseram que era perigoso, mas eu cuidei de tudo, e de todos.
Aceitei para mim essa missão.
Fui resiliente, obstinado, até mesmo insistente, diriam vocês.
Como se 
eu quisesse fazer um pomar no deserto.

E, decerto, no começo tudo que eu via era areia. Mas aos poucos,
foram surgindo os primeiros frutos…

Fui ensinando às crianças selvagens 
o bom português. Lhes dei o que comer
e o que vestir. Lhes dei afeto, carinho 
e cuidado.  Ensinei-lhes o valor do “não”
mesmo na hora em que me apertava o coração.

E, depois, fui motivando todos eles
a fazer por merecer. E vislumbrei,
nesses caminhos que saem da Maloca,
nessas tubulações que percorrem
os esgotos, a possibilidade de chegar
mais rápido em todos os pontos da cidade.

Cultivei em nossas crianças o amor por um ofício.
E agora, que temos o nosso próprio negócio,
somos finalmente uma família.

As crianças selvagens são agora 
as crianças saudáveis: as mais velozes
em qualquer entrega.
Para aquilo que preciso for, contrate os nossos serviços!

  1. CRIANÇAS SAUDÁVEIS

Um bom tempo depois. O Pai mudou-se de vez para a Maloca, e agora gerencia as “Crianças Saudáveis”, um sistema de entregas pelos tubos e tubulações que saem de lá para todos os bueiros da cidade. As crianças agora são pequenos entregadores de coisas. Estão limpos, bonitos, higienizados, porém não necessariamente felizes… Xan acaba de voltar de mais uma entrega.

XAN: Toma, o carinha lá me mandou te dar isso aqui. Pai, como é mesmo o nome desses papeizinhos aqui que a gente recebe pela entrega, hein? Eu já vi isso aqui na superfície, em outros lugares também.

O PAI: Isso é dinheiro vivo, filho. O pagamento.

XAN: Hum… Mas por que eles só dão às vezes?

O PAI: Ora, quase ninguém mais usa! Hoje em dia é tudo digital, Xan. Mas eu gosto de dinheiro vivo. Mais difícil de descobrir a origem, entendeu? É bom pro nosso negócio. Você sabe que a entrega dos saquinhos é separada das outras entregas, não sabe? Nós já falamos sobre isso…

XAN: Sei… Mas, pai… O que tem mesmo dentro dos saquinhos?

O PAI: Xan, pela milésima vez, não é do seu interesse!

XAN: Você falou que confiava ni mim…

O PAI: “Em mim”, Xan. Você é duro na queda mesmo, hein, meu filho? Tá certo. São balas, digamos. Muito doces, contém muito açúcar. Mas você tem que me prometer que não vai, em hipótese nenhuma, abrir os saquinhos e comer essas balas, tá me ouvindo? Elas fazem mal pra crianças. Promete pra mim?

XAN: Prometo.

O PAI: Ótimo. Onde estão seus irmãos?

XAN: Fazendo entregas por aí.

O PAI: Certo. Bom, eu preciso buscar a Milu no hospital. Quando eles voltarem, recolha os papéis com todos. E entregue para Didiê. Lembre- se, meu filho: quando eu não estou, é você quem está no comando, ouviu? Você é a inspiração dos seus irmãos!

XAN: Pode deixar.

O Pai sai. Dali a pouco chegam Melonça e Biu.

BIU: Nossa, eu tô morto.

MELONÇA: Olha só quem está aqui, se não é o patrãozinho…

XAN: Nem vem, Melonça, que você não vai me tirar do sério. Onde estão

os papeizinhos?

BIU: Tá aqui, os meus. Calma. Eu, hein.

XAN: O Pai falou que quando ele sair, eu que estou no comando.

MELONÇA: Puxa-saco. E cadê a Didiê? 

XAN: Lá dentro, fazendo a contabilidade. 

MELONÇA: Ela não está bem, sabia…

BIU: Por quê?

MELONÇA: Sei lá, ela anda meio tristinha…

Didiê entra.

DIDIÊ: Oi. Vocês chegaram. Que bom. Foi legal?

BIU: Foi, nossa, super, andando pra lá e pra cá nesses bueiros.

DIDIÊ: Vocês viram pessoas?

MELONÇA: É claro, Didiê, são os compradores! DIDIÊ: Eu queria tanto sair por aí, que nem vocês… XAN: Didiê, o pai já falou…

DIDIÊ: Eu não quero tocar nesse assunto. Me dêem logo os papeizinhos. Vou fazer a contabilidade.

BIU: Nossa, são tantos papeizinhos, né. Por que tem gente que paga com isso?

XAN: O pai disse que o nome disso é “dinheiro vivo”. É bom pro nosso negócio.

BIU: Eu nem sabia que tinha “dinheiro morto” MELONÇA: O que será isso que tem nesses saquinhos? XAN: O pai disse que são balas…

BIU: Nossa, deve ser muito bom, né, tem gente que compra um monte…

MELONÇA: E tem gente que compra todo dia! Hoje eu levei pros mesmos adultos de ontem…

BIU: Vocês não têm curiosidade de experimentar?

XAN: Não! O pai me fez jurar que eu não iria encostar nisso…

MELONÇA: Hum. Eu não jurei nada para o Pai.

BIU: Eu muito menos.

XAN: Não, não, não, parem vocês dois…!

Xan tenta, mas não consegue impedir Biu e Melonça de abrir um dos saquinhos.
Eles experimentam a substância.

MELONÇA: Nossa, é bem gostoso… Tem um gostinho doce… Hum, eu quero mais uma…

Aos poucos suas percepções vão mudando…

BIU: Ai, eu estou me sentindo tão bem… Tão maravilhoso e relaxado! Caramba, agora tô entendendo…

MELONÇA: Que sacanagem, hein? O pai bem que podia ter dado um pouquinho antes pra gente…

XAN: Escondam, escondam isso, o Pai vai chegar a qualquer momento!

O Pai chega com Milu.

O PAI: Olha quem está de volta?! E com a perninha consertada?! A nossa Miluzinha!

MILU: Oi, meus irmãozinhos, a Miluzinha voltou!

XAN: Seu pé está funcionando?

MELONÇA: Ela não é mais uma sereia…

MILU: Não, agora a Milu é uma menina normal.

BIU: Ela foi uma sereia?

MELONÇA: Era nossa princesa sereia…

BIU: E você é a nossa princesa onça?

Melonça e Biu estão chapados. Ambos caem na gargalhada. O Pai acha estranho.

O PAI: Vocês… vocês estão bem? O que está acontecendo?

XAN: Pai, eu… Eu não tive culpa… Eu falei para eles não…

O PAI: Ah, eu não acredito numa coisa dessas. Vocês mexeram no conteúdo dos saquinhos? Não é pra mexer, estão me ouvindo! Vocês estão pensando o quê? Que isso dá em árvore? Isso é muito perigoso! Que decepção, hein, Xan, eu confiava em você para controlar seus irmãos…

XAN: Mas pai, eu…

O PAI: Não quero saber… Olha, eu estou de saco cheio, eu faço tudo por vocês. Eu me sacrifico por vocês. E vocês me dão uma punhalada dessa nas costas? Onde está Didiê?

DIDIÊ: Oi, pai. Aqui estão os papeizinhos.

O PAI: Estão faltando papeizinhos.

DIDIÊ: Não, não estão, eu contei certinho!

O PAI: Eu quero saber onde estão os papeizinhos que estão faltando!

DIDIÊ: Pai, eu… Eu não sei. É culpa deles. Eles são desorganizados. Se você me deixasse ir entregar, ficaria tudo mais…

O PAI: Você sabe por que você não faz entregas, Didiê. Eu já te expliquei.
Qual é o motivo?

DIDIÊ: …pra fazer entregas tem que usar uniforme…

O PAI: E pra usar uniforme…?

DIDIÊ: Tem que saber se é de menino ou de menina…

O PAI: Muito bem, e você é o quê?

DIDIÊ: Eu não sou nenhum dos dois.

O PAI: Tá vendo? Assim você não me deixa te ajudar.

XAN: Pai, não fala assim com a Didiê…

O PAI: Você, quieto! Estou muito decepcionado com você! Você perdeu a minha confiança. Todos vocês perderam minha confiança. Vocês dois estão suspensos das entregas. E já sabem: suspensão significa uma semana sem comida. Muito bem feito. Agora, Didiê, é essa a sua chance: você quer ou não quer fazer entregas?

DIDIÊ: Eu quero… Mas eu… Eu não sei o que eu sou…

O PAI: Então tira a roupa. Vamos, deixa eu ver logo de uma vez por todas.

DIDIÊ: Não, mas eu tenho vergonha…

O PAI: Vergonha? Do quê? Do seu pai? Vergonha você devia ter do estado em que se encontravam quando eu cheguei. Vocês não se lembram? Na imundície. Comendo comida podre. Isso aqui era um esgoto. Aquilo sim dava vergonha. Anda, vamos logo, tire a roupa já que eu estou mandando.

As crianças ficam todas apreensivas. Didiê hesita e olha para seus irmãos, constrangida. Ninguém, somente ela, sabe o quão vexatória é a situação. Sem ter como fugir, aos poucos tira suas roupinhas em frente ao Pai, que analisa, observa, e em seguida pega uma dos uniformes.

O PAI: Muito bem. É como eu imaginava. Toma aqui, Didiê, o mesmo uniforme do Xan e do Biu. Você é um menino.

  1. O MOTIM DAS CRIANÇAS

As crianças saudáveis não são mais selvagens. Daqui a pouco, também não serão mais crianças. Estão crescendo, e ao crescer tornam-se independentes, e aprendem que precisam lutar pela própria comida. Elas se organizam, enquanto o pai está fora de casa.

MILU: A Milu tá ficando doidinha, acho..

XAN: Que foi dessa vez, Milu?

MILU: A Milu não consegue mais se ver no espelho… Ela se vê, se vê, e não se encontra…

DIDIÊ: Vixe…

MILU: Aparece essa menininha bonitinha mas não é a Milu…

BIU: CHEGA! Dá pra você parar de falar assim, “…a Milu isso”, “…a Milu aquilo…”. O pai já te disse que tá errado! Quer levar bronca de novo?

XAN: Chega, Biu! Por que você tá assim, hein?

BIU: Por favor, Xan, por favor, me dá só mais um pouquinho, eu preciso…

XAN: Não, Biu! Você já sabe como funciona, o pai já disse: só se você bater sua meta de vendas. Ai sim, ele te dá um saquinho inteiro só pra você se divertir. Aliás, ele não tinha te dado um na semana passada?

BIU: Mas acabou, Xan, acabou rapidinho…Eu só preciso de um pouco, um tiquinho, vai, libera aí…

XAN: Não, Biu! Não insiste, se não eu vou ter que falar pro pai… E ele vai te demitir!

BIU: Quem te viu, quem te vê, hein, Xan? Virou patrão, hein…

O Pai entra, acompanhado de Melonça.

O PAI: O que está acontecendo aqui, posso saber?

BIU: Pai, ô pai, deixa eu pegar mais um tiquinho, por favor…

O PAI: Xan, não deixe seu irmão tocar em nada. Você já sabe. Se não,as consequências serão graves… Para todos vocês, entendido?

MILU: Pai, a Milu tá ficando maluquinha… Gente, vocês acham a Milu feinha? Podem falar a verdade…

O PAI: Eu não tenho tempo pra suas frescuras agora, Milu, estou muito ocupado. Xan, na volta nós vamos conversar sobre a gestão da Maloca, ok? Eu não estou nada satisfeito com seu rendimento. Didiê, também quero um balanço dos gastos. Lembrem-se, nós somos uma família! Em uma família, todos precisam cooperar para o bem de todos! Vamos, Melonça!

XAN: Onde você vai com a Melonça? Por que você vai levar ela, e não eu?

O PAI: Surgiu… Digamos, uma oportunidade. Uma boa oportunidade pra ela. Que privilégio, hein, Melonça?

Melonça fica quieta.

MILU: A Miluzinha quer sair, deixa ela ir… A Miluzinha não aguenta mais ficar presa…

O PAI: Negativo, Milu. Você ainda está se recuperando da cirurgia. Vá brincar com seu espelho, vai. Vamos, Melonça. Diga adeus aos seus irmãos.

Melonça continua muda, e é levada pelo pai para fora da Maloca. 

DIDIÊ: Que coisa estranha. Para onde será que ele vai levar ela? 

XAN: Num sei, Didiê, num sei, faz ai seu trabalho quieto…

DIDIÊ: QUI-E-TÁ! Até você, Xan? Eu num acredito que…

XAN: Eu tô só obedecendo ordens

DIDIÊ: Quem te viu quem te vê, hein, Xan… Você costumava ser o mais desobediente…

Um certo tempo passa. Biu tenta pegar o conteúdo dos saquinhos, mas Xan percebe e o impede.

XAN: Cê tá louco, moleque?

BIU: Xan, agora que ele saiu, me dá um tequinho vai, ele nem vai perceber, eu preciso muito… Só um poquinho…

MILU: A Milu tá ficando assustada… A Milu sumiu… Cadê o pézinho dela? Essa não é ela, o pézinho dela era machucado, ela era uma seleia…

XAN: Eu num aguento mais vocês! Parem de me encher o saco! Como vocês são chatos, todos vocês, eu num aguento mais ter irmãos! Vocês me irritam o tempo todo, eu faço tudo por vocês, e vocês não fazem nada por mim! Eu odeio vocês!

DIDIÊ: Eu também te odeio, seu traíra!

BIU: EU ODEIO VOCÊS!

MILU: A Milu tá assustada, para, para…

As crianças começam a gritar umas com as outras, ninguém se entende, cada vez mais alto. A Maloca se torna um ambiente ensurdecedor. O barulho é interrompido pela entrada de Melonça, que atravessa correndo, fecha a porta e se esconde. Eles a observam, e param de gritar.

DIDIÊ: O que aconteceu, Melonça? Que sangue é esse na sua boca?

MELONÇA: Sai daqui, para de me encher o saco!

DIDIÊ: Cê tá muito estranha, tá tremendo…

BIU: A Melonça é muito estranha…

MELONÇA: Cala a sua boca, seu estrupício!

BIU: Ó lá, tá vendo! Ela pode até estar aí melhorzinha, mas continua a mesma selvagem de sempre…

Melonça chora. As crianças observam que ela segura uma orelha decepada.

XAN: De quem é essa orelha? Eita… Deve ser grave mesmo…

MILU: Não chola… Não chola…

XAN: Alguém te fez alguma coisa? Cadê o pai?

DIDIÊ: Você não precisa falar, se não quiser. Mas pode só mexer a cabeça…

Melonça mexe a cabeça positivamente.

DIDIÊ: Foi alguém na superfície, aposto, um daqueles adultos… Ela tava vindo de lá…

XAN: Foi um dos adultos? Caramba, eu vou matar eles… Quem foi?

BIU: Fala Melonça! 

MELONÇA: Foi o pai! 

XAN: O pai…?

MELONÇA: Ele e um amigo dele…

MILU: Um amigo do pai?

MELONÇA: É…

XAN: O que eles fizeram…?

MELONÇA: O pai queria me vender pra ele…

DIDIÊ: TE VENDER?

MELONÇA: …pra eu ser esposa dele, ele queria uma esposa, ele disse…

XAN: NÃO PODE SER!

DIDIÊ: Eu não tô acreditando que ele ia fazer isso!

BIU: Como ele teve coragem?

MILU: Não chora, não chora…

MELONÇA: Eu disse que não, que não queria, mas ele tentou me prender. Ai eu fiz isso…

XAN: Você arrancou a orelha do cara? 

BIU: Ele tá precisando de uma lição… 

DIDIÊ: Já faz tempo, já passou da hora…

BIU: A nossa vida tá uma merda. Não que antes fosse boa, mas agora tá pior.

XAN: O pai deve ter tido seus motivos…

DIDIÊ: Motivos? Pra vender a Melonça? Cê sabe muito bem o que esse cara ia fazer

BIU: Melonça, por quanto e ele ia te vender, ele falou…?

DIDIÊ: Cala a boca, Biu!

BIU: Não, eu tô falando pra gente dar um prejuízo nele! Vamos dar uma lição, vamos comer todas as balas… 

MILU: O Pai vai ficar muito bravo. 

BIU: Eu não tô nem aí…

MILU: Não, eu não quero fazer mal para o meu papaizinho. Ele me fez tão bem esse tempo todo.

DIDIÊ: Ele escraviza a gente! A gente trabalha pra ele de graça esse tempo todo…

MILU: Mas ele dá várias coisas em troca!

XAN: É muito pouco, Milu, perto do tantu que a gente faiz… A genti nem brinca mais, ceis já perceberam isso?

BIU: I ocê, Didiê? Num vai falar nada naum?

DIDIÊ: Eu num tenhu muito u qui falá. Cêis podem ver com seus próprius olhus: cêis acham que eu tô mais feliz vestida assim, desse jeitu? Eu queria ir embora daqui. Aqui num é mais minha casa. Essas num saum mais minhas rôpas.

XAN: Do que cê tá falandu Didiê? Achei que o problema aqui era a Melonça…

DIDIÊ: Melonça, si ocê quiser vir comigo, ocê pode vir… 

XAN: CHEGA! Ninguém vai sair daqui! Essa é a nossa casa! 

BIU: Mas agora quem manda aqui é o pai…

XAN: Não, negativu! Ele num manda não, todos nós mandamos juntos!

DIDIÊ: Se liga, Xan, cê virou um chefinho, um bostinha, um pau mandado dele…

BIU: Olha u qui ele tá fazendu cum a gente, Xan…

DIDIÊ: Olha o que ele tá fazendu cum ocê… Ocê disse hoje qui odeia a gente… Seus irmãos!

MILU: A Milu num gosta que os irmaozinhos dela bliguem…

MELONÇA: Iô queru mi vingá dele… Eli num pudia tê feito issu cumigo… 

Ouvem um barulho. É o Pai, que grita, bate na porta e pede pra entrar na Maloca 

DIDIÊ: Si a genti deixá ele entrá, eli vai querê baté na Melonça…!

BIU: Nóis vamu ti protegê, nois num vamo deixá…

XAN: Eli num vai mais entrá aqui, nãum, até ele pedi desculpa pra Melonça!

DIDIÊ: Eli num vai pedi desculpa, Xan! Eli tá usando a genti esse tempo todu! Será qui ocês ainda num perceberam? A gente trabalha dia e noiti pra ele, irmãos! Tudo que ele dá pra genti é fruto du nossu trabalhu! Ele divia dá muito mais!

MELONÇA: Eli ia mi vendê, Xan! Agora eli deve tá cum muita raiva de mim! Mas iô num tenhu medu deli nãum. Si ele entrá por aquela porta, vai sê eli ou iô!

DIDIÊ: Iô tô cuntigu, Melonça!

BIU: Iô tamém! I depois qui a genti botá eli pra corrê, a genti vamus ficá tudu cum us pozinhu pra nois!

XAN: A genti num vai botá eli pra corrê, irmãuns. Eli é muitu forti, i ocês sabem, quem é muito forti é fonti di muita força…

BIU: …o que ocê tá querenu dizer, Xan?

DIDIÊ: A genti tinha prometidu qui num ia fazê mais issu…

MELONÇA: …pensando bem, iô tô ficando cum fome…

MILU: A Miluzinha também!

XAN: Iô tô dizendu que o Pai merece u mesmu destino do Kaike…

UMA CARTA DOS SUPERIORES AO PAI, LIDA TARDIAMENTE

Ficamos muito orgulhosos 
dos serviços que tens desenvolvido.
É certo que seu brio, coragem e dedicação são notáveis. Também
é certo que mereces uma promoção.

Quem sabe muito em breve, se
os lucros aumentarem, não podemos
te garantir férias remuneradas?

Não é este, afinal de contas, o sonho de todos os pais?
Não podemos, entretanto,
deixar de observar que há
um vazamento no consumo
da substância. Por algum motivo,
as remessas enviadas têm sido
maiores que os pagamentos obtidos.

Também gostaríamos de sugerir que
você tomasse bastante cuidado.
Porque antes de você, o mais jovem
dos nossos inspetores esteve por aí.

Chamava-se Kaíke. Tornou-se pai muito cedo,
e depois de algumas visitas aos bueiros,
não retornou jamais. Não sabemos se
fugiu com a remessa, ou se algo aconteceu:
o certo é que Kaíke desapareceu,
para nunca mais voltar. Fique atento, meu caro:
a alma selvagem é inconstante e pode
sobreviver latente e disfarçada por dentro dos corpos dóceis.

  1. O BANQUETE DAS CRIANÇAS

Silêncio. O Pai entra na Maloca. Está tudo escuro.

O PAI: Onde vocês estão, suas pestes? Melonça, cadê você? Eu fiz tudo por vocês, tudo, e é assim que vocês me retribuem? Me deixando trancado do lado de fora?

Milu entra, carregando uma xícara de chá.

O PAI: Quem está ai… Milu? É você?

MILU: Paizinho, qui bom qui ocê voltou! A Milu estava cum fomi…

O PAI: Onde estão seus irmãos? Por que…? Porque o nosso produto está todo espalhado no chão…?

MILU: Ihhh, paizinhu, ocê demorou muito… O Biu cansou di espelá… A Didiê também… Ai a Melonça chegô, i disse umas coisas qui deixalam os outlos muitu irritados. E a Milu ficou muito tliste…

O PAI: …eles estão irritados? Com que direito…?

MILU: Calma, paizinhu, a Milu vai ti ixplicá. Olha, toma essi chazinhu qui a Milu feiz prucê…

O Pai pega a xícara das mãos de Milu e toma o chá.

O PAI: Obrigado, meu anjo. Só você mesmo pra valorizar meus esforços. Já os seus irmãos…

MILU: Num fica tliste, não. Bebi, vai ti faze bem! Ocê vai discansa, a Milu plometi…

O PAI: Já estou me sentindo mais calmo, Milu. Está ótimo, bem docinho. É chá de quê?

MILU: Sabi, paizinhu, a Milu plecisa ti contá uma coisa… Ocê num é o nosso primeiro paizinhu… A genti teve otros antis…

O PAI: Do que você tá falando, Milu?

MILU: Ué, ocê acha qui a genti nasceu comu? Vai dizê qui ocê acredita em cegonhas…?

O PAI: Milu! Eu não estou te reconhecendo! Eu… Eu estou me sentindo estranho…

MILU: É dever dus adultus alimentá as crianças… E quandu elis num conseguem mais… Eles devem virá o próprio alimentu! Foi assim com os nossos pais de verdade, quando a gente ficou trancadu aqui debaixo da terra por muito tempo, e num conseguia sair… Eles serviram de comida pra genti, como manda a tradição… E depois, quandu veio o Kaike, e ele prometeu qui ia trazê cumida e num trouxe, a genti tevi qui fazê u mesmu cum ele…

O PAI: Do que… Do que você está falando? Eu acho melhor eu… Eu não estou me sentindo bem…

MILU: Paizinhu, ocê divia se alegrá! A genti vai ficar muitu forti, ocê vai alimentá a genti por um bom tempu!

Didiê, Xan, Melonça e Biu aos poucos aparecem. Estão alegres, excitados, possuídos. Resquícios das substâncias em suas caras. Biu é o primeiro quem acerta o pai com seu titicó. O Pai tenta fugir, mas não consegue. Xan dá na cabeça do pai com o tacape: uma, duas, vezes, até sangrar. O Pai implora por ajuda, mas as crianças estão completamente entorpecidas. Melonça arranca a outra orelha do pai com os dentes. Didiê puxa um facão e decepa o primeiro membro do pai.

DIDIÊ: Um tequinhu procê, um tequinhu prucê… Um prucê tamém. E prucê.

As crianças selvagens destroem o corpo do Pai, comem sua carne e se divertem, cobertas do seu sangue, em plena folia, enquanto dizem:

Nóis somus crianças selvagis
Filhas di todus ou pais, erderas
di todas as mãis, i nu intantu órfãuns
seguimus pois ninguém cuidará di nóis
tãum bem quantu nóis mesmus.

Seguiremus abrindo mão
di toda boa educaçãum.
Dobri sua língua pra falá di nóis
i economizi sua fraca voiz

Falaremus pur nóis mesmus i
 faremus nossus próprius brinquedus
i quandu tivermus fómi
nóis não vamus esitar
im ti caçá i ti matá

Pur issu não si aproximem
Cum seus sagradus motivus
Somus muitos i cada veiz mais
vamus ti oferecê pirigu
ÓRFÃUNS DU MUNDU, UNI-VUS!

Fim