Dramaturgias do Tempo

Louça da Cristaleira

PERSONAGENS

ORLANDO, homem que completa 90 anos.
OTÁVIO, filho de Orlando, tem 51 anos.
OLAVO, filho de Otávio e neto de Orlando, tem 24 anos. 
MARTA, casada com Otávio e mãe de Olavo, tem 49 anos. 
EUNICE, advogada amiga de Marta

 

LOCAL

A história se passa em um apartamento de classe média localizado em um prédio no centro de uma cidade do interior paulista.

 

PRIMEIRA PARTE: A CARTA

É fim de tarde. No apartamento há um toca-discos de um lado e uma mesa de outro. Mesa é onde se centraliza a vida de uma família. Se come na mesa, mas também é onde se reúne, chora, briga, revela segredos, planeja passeios e viagens. É onde acontece o fato e o ficto. Ao fundo se vê uma cristaleira, móvel geracional de famílias tradicionais perseverantes em guardar objetos caros e valiosos, longe das traças e traições. O vidro da cristaleira não quebra ou quebra pouco, porque nela há cuidado extremo quando tocada. Ela exige um ballet do desempenho para tirar sua poeira. Em cima da cristaleira há armas expostas e uma cabeça de javaporco. Marta está na sala, arrumando a mesa de jantar para uma festa. Coloca os pratos, copos, talheres e arranjos. Ela tira pó das armas e arruma a cabeça do javaporco.

OTÁVIO (entra nervoso com um papel na mão): Onde tá Olavo?

MARTA (assustada): Calma, que aconteceu?

OTÁVIO (alarmado): Olha o que o merda do seu filho aprontou… (entrega o papel a Marta)

MARTA (surpresa): O que é isso?

OTÁVIO: Leia!

MARTA (lendo): Nossa!

OTÁVIO (raivoso): Sem juízo nenhum, vai matar a gente de vergonha.

MARTA (desesperada): Calma! Há modos de contornar isso…

OTÁVIO (irônico): Quem é advogada aqui? Você deveria saber como…

MARTA (enfática): Eu sei. Podia ter sido pior!

OTÁVIO: Tem como?

MARTA: Sim, e se tivessem feito uma busca e apreensão?

OTÁVIO (impaciente): Não fala merda, Marta!

MARTA (convicta): Vou ligar pra Eunice!

OTÁVIO (apreensivo): Agora? Meu pai não pode ouvir!

MARTA: Seu pai tá no banho.

OTÁVIO: Ele ainda tá empolgado com a vinda do Pessoa ou já tirou isso da cabeça?

MARTA (irônica): Até parece que você não conhece seu pai! Falando nisso, amanhã ele quer vocês dois na visita!

OTÁVIO (nervoso): Isso se eu não matar o idiota do Olavo antes…

MARTA (enfática): Escuta aqui! Presta atenção! Você vai segurar sua raiva, deixar o aniversário do seu pai passar, ir com ele e seu filho amanhã ver o Pessoa, tirar a tradicional foto ao lado da liderança e depois a gente vê isso… Me entendeu?

OTÁVIO: Você se acha muito esperta, viu a data do depoimento?

MARTA (relendo, se assusta): Depois de amanhã?

OTÁVIO: Pois é…

MARTA (enfática): Mesmo assim, até lá você vai fingir que nada aconteceu…

Orlando entra assobiando. Ele veste uma calça escura, camisa de manga longa verde, seu cabelo, recém-lavado, está penteado para o lado. Penteia seu bigode enquanto anda. Marta e Otávio se entreolham estabelecendo um pacto de silêncio. Marta dobra delicadamente o papel e coloca no bolso do avental.

ORLANDO (feliz): Tarde!

OTÁVIO (gentil): Taaaarde! Viva o velho Orlando! Feliz aniversário, papai! Muitos anos de vida (se abraçam)

ORLANDO (feliz): Pudera! Não é todo dia que a primavera chega aos 90

OTÁVIO (generoso): Com essa alegria toda, chegará aos 100 fácil.

ORLANDO (retomando): Vaso ruim não quebra! (todos riem) Vocês sabem onde estão os recortes dos escritos de meu finado pai? Quero ver aqueles escritos antigos, compreende? Recordar aqueles bons tempos…

OTÁVIO (solicito): Opa! É sempre bom, sempre bom… Estão no armário, vamos lá pegar…

ORLANDO (alegre): Gosto de ver o passado… Ajuda a manter nossa tradição em pé!

Saem abraçados. Orlando comenta com o filho sobre a alegria que será rever os recortes. Marta, quando sozinha, pega o papel e lê novamente. Pensa. Pega seu celular. Escreve uma mensagem. Lê mais uma vez a carta. Continua a digitar no seu celular. Retoma seu trabalho doméstico. Arruma a mesa. Pega uma arma na mão. Olha e coloca de volta.

MARTA (para, olha para o javaporco, o contempla por minutos): Ainda bem que você não fala (liga o abajur e sai)

A sala fica vazia. A luz do abajur ilumina a cara do javaporco. Um tempo depois Orlando e Otávio voltam à sala. Otávio carrega uma caixa. Orlando continua a falar. Entra Olavo carregando um prato, dois copos e uma xícara empilhados. Otávio olha para ele com cara de raiva. Olavo não entende e sorri.

ORLANDO (festivo): Olavo, finalmente saiu do quarto…

OLAVO (justificando): Tava trabalhando lá no computador, vô.

OTÁVIO (irônico): Trabalhando… desde quando ficar na internet é trabalho?

OLAVO (percebendo algo estranho no comentário do pai): É trabalho sim, tem gente que fica rico fazendo isso. E você, que fica mais tempo no clube do que fazendo suas coisas…

ORLANDO (corretivo): Olha como fala! O senhor, entendeu? O senhor! Respeite seu pai.

OLAVO (irônico): O senhor, pai, é muito atrasado… (Otávio olha com mais raiva, quase não conseguindo se conter.)

ORLANDO (convidativo): Querido, fica um pouco aqui com a gente! É meu aniversário, me dê esse presente. Vamos ver a revista que meu pai dirigia. Recortes do passado…

OLAVO: Da hora, só vou levar essas coisas na cozinha, já volto…

MARTA (entra com outros utensílios para a decoração da festa, vê o filho e se dirige de forma ríspida a ele): Saiu da toca, coelho?

OLAVO (não entende o tom da mãe): Que bicho mordeu vocês? Por que tão encanando comigo? Que caraio!

MARTA (irônica enquanto deposita os utensílios à mesa): Parou de fazer suas cagadas?

OLAVO (olha desconfiado à mãe): Não entendi…

MARTA (olha para Otávio que está a encarando assustado, muda de assunto): Me dá essas coisas. Vá tomar banho porque daqui a pouco vou começar a servir o jantar.

OLAVO: Agora vou ver as publicações do bisa…

ORLANDO: Os homens verão o passado para projetar a verde prosperidade do futuro, compreende? Deixe o menino, Marta. É na juventude que mora a esperança! Hoje é meu dia, quero todos juntos aqui…

MARTA (cedendo enquanto sai): Tá bem, seu Orlando, pelo seu dia! (se dirige à Olavo) Mas depois, se limpe…

Os três homens estão sentados à mesa. Orlando retira cadernos e afasta os pratos que outrora foram colocados cuidadosamente. Empilha pastas, vai comentando por onde acha que deve começar. Silêncio. Tudo se apaga, somente o javaporco é iluminado pelo abajur. Tempo. As luzes são acendidas, os homens continuam a mesa.

ORLANDO (canta, Otávio e Olavo sorriem, se divertindo): 
Minha espingarda
Tem a boca envenenada
De matá onça pintada
Caititu, tamanduá – ôi.
Eu dei um tiro
Na cabeça da guariba
Que a bala passo pra riba
Matou dois Maracajá …

OTÁVIO (risonho): Essa é boa. De quem é ?

ORLANDO (feliz): De Jararaca e Ratinho. Eram palhaços, compreende (saudoso) Naquela época não era como hoje, a gente andava com espingarda na rua, o certo era deixar o cano pra baixo…

ORLANDO (convicto): Ah, mas isso vai mudar! No clube todo mundo acha que vai! Tá fácil de comprar arma, mesmo sem registro.

OTÁVIO: Não sei, espero que o Pessoa diga algo sobre isso amanhã.

OLAVO (curioso): O senhor já conheceu outros líderes, vô?

ORLANDO (saudoso): Evidente, na revista de meu finado pai sempre vinha alguma autoridade da Ação. Tenho fotos desses encontros em algum lugar aqui (procura na caixa)

OLAVO: Na raça?

ORLANDO: Na raça! Quando não podiam vir por algum motivo, mandavam correspondências. Bonitas, sabe? Umas palavras bonitas, compreende?

OLAVO: Eu nunca vi a revista, o senhor sempre falou dela, mas nunca cheguei a ver nenhuma.

ORLANDO (empolgado): Não seja por isso… Tenho recortes delas aqui, em algum lugar (procura dentro da caixa até encontrar) Aqui! Olha que bonita edição, é de quando meu pai morreu. Leia essa linda homenagem. (Passa uma pasta para Olavo) Leia!

OLAVO (lendo sorridente): Esta cidade nunca poderá esquecer o amador extraordinário, o mágico, o suscitador de entusiasmos pelos artistas, pelos escritores, pela Pátria… (pensativo contemplativo) O bisa deve ter sido foda!

OTÁVIO (ríspido): Respeito, Olavo!

ORLANDO (achando graça): É o modo dos jovens (ri contidamente) Meu finado pai era um homem, era a evolução criadora. Leia a última frase, querido, por favor.

OLAVO: …A raça dos dominadores há de me escutar, para sonharmos um grande sonho…

ORLANDO (emocionado): Sabia que eu escolhi seu nome? Quando soube o que Olavo significava, pedi pro seu pai te chamar assim. Olavo, a herança dos ancestrais…

Luzes se apagam. O javaporco está iluminado. Uma luz vermelha de cima para baixo banha seus pêlos com a cor do sangue de um animal morto. Tempo. As luzes são acendidas e os homens continuam a mesa. Desta vez Otávio está com uma arma que antes estava exposta na parede.

OTÁVIO (orgulhoso): …Peça de museu, não se encontra com facilidade uma dessas. O pessoal do clube já me ofereceu muita grana por ela, não vendo!

ORLANDO: Meu finado pai sempre cuidou muito bem dela.

OTÁVIO (analítico): Até encontra na internet alguma coisa fabricada hoje, mas antiga assim, nunca mais.

OLAVO: Num jogo que participo online tem uma dessas, mas não compensa matar com ela…

OTÁVIO: Calibre perfeito

OLAVO: Às vezes é melhor matar com faca

OTÁVIO: Tem precisão

OLAVO: Ou com uma metralhadora, depende da situação

OTÁVIO: Peso ideal

OLAVO: Mas o bom mesmo é headshot com sniper. M-24 na cabecinha

OTÁVIO: Você mal sabe segurar uma…

OLAVO: Você sabe?

OTÁVIO (entrega a arma para Olavo): Claro que sei!

OLAVO (brinca com a arma): Você sabe se eu sei?

ORLANDO: Filho de peixe, peixinho é. Meu finado pai só atirou três vezes com essa ai. Uma para proteger a família, compreende? Outra para homenagear um líder quando esteve aqui, e a última na Sé, na passeata que os comunistas atiraram na gente.

OLAVO: Como foi isso?

ORLANDO: Foi triste! Muito triste! Era criança de colo, não me recordo. Sei o que me disseram depois. Foi uma grande passeata nossa, compreende? Milhares de pessoas marchando, uma integração bonita de se ver. Do alto de um prédio armaram uma emboscada. Essa gente não presta…

OLAVO (curioso brincando com o revolver, descobre que está carregada): Puta merda, essa porra tava carregada, podia ter dado merda! Ela sempre fica assim?

ORLANDO (rindo, responde em tom de galhofa): Nunca ouviu falar que o seguro morreu de velho?

OTÁVIO (ri, pega a arma): Estranho! Por que tem quatro balas no carregador?

ORLANDO (constatando): Quem fez isso?

OTÁVIO (desconfiado): Não sei. A quanto tempo está assim? … (fica pensativo, se dirige a cristaleira, abre uma caixa, retira balas)

Luzes se apagam. O javaporco está iluminado com uma cor verde. Silêncio. Tempo. Luzes são acendidas. Os homens continuam conversando. Na mesa, além da caixa e pastas, há a arma, copos de uísque e cinzeiro de Otávio. Marta entra.

MARTA: Vocês querem mais uísque?

OTÁVIO: Que pergunta… é óbvio!

MARTA (tirando copos vazios e deixando petiscos na mesa): Só tira essa arma daí, já disse que nesta casa a arma não fica na mesa!

OTÁVIO: Calma, dona onça!

MARTA (assertiva): Para com isso! E eu to calma, só não gosto de arma em cima da mesa, parece cena de acerto de contas (pega a arma e coloca em cima da cristaleira)

OTÁVIO (desconfiado): Marta, sumiram balas dessa arma, por acaso você sabe de alguma coisa?

MARTA (convicta): Eu não, nunca relei nessa arma.

OTÁVIO (colocando contra a parede): Tem certeza?

MARTA: Eu não gosto de armas!

OTÁVIO (insistente): E por justamente não gostar, você não relou nela?

MARTA (saindo): Já disse que não!

OTÁVIO (se levanta e dirige-se ao toca-discos): Veremos! (tempo) Vou colocar um disco que o senhor gosta, papai (procura pelo disco)

ORLANDO: Você não pode tratar sua mulher assim, filho.

OTÁVIO: Pronto! O que eu fiz dessa vez?

ORLANDO: Falou como se estivesse acusando ela de algo

OLAVO: Ele é assim mesmo, vô. Fala com os outros como se tivessem em sua mira.

OTÁVIO: Cala a sua boca, seu ingrato. Ou prefere que eu vá te calar?

OLAVO (quase concomitante): Isso é uma ameaça?

ORLANDO (bravo, separando o início de briga): O que é isso? Que coisa feia! Vocês vão se estranhar hoje? Hoje é festa, nada de briga! Olavo, respeite seu pai, não fale assim. Filho, se acalme, por que essa braveza toda?

OTÁVIO (mudando de assunto): Nada, pai! Desculpe. Vamos ouvir o disco que o senhor ganhou do finado coronel.

Começa a tocar a faixa 1 O Planalto Deserto de Brasília – Sinfonia da Alvorada de Tom Jobim e Vinicius de Moraes. Luzes se apagam.

Fim da primeira parte.


SEGUNDA PARTE: A COMIDA ESTÁ NA MESA

Carne para todos, vinho, uísque, cigarros e a necessidade da felicidade da estirpe. O ambiente é majoritariamente masculino. As armas, todas expostas, são o coro do corifeu javaporco. Orlando, Otávio e Olavo conversam.

OLAVO (se defendendo): Não! Não disse isso. Estou falando que sem fiscalização as coisas andam melhor…

OTÁVIO (explicando): Sim, mas não. Escuta aqui, concordo com isso, além do mais, não fiscalizam quem deveria ser fiscalizado.

OLAVO (bebendo): Mas nem tudo pode ser…

OTÁVIO: Como assim?

OLAVO: Tem lugares que não chega. É diluído.

ORLANDO (nostálgico): Meu finado pai sempre dizia que se não fosse integralizado tudo, a gente jamais chegaria à compreensão do todo. Ele estava certo, com essa diluição não se entende nada, compreende?

OTÁVIO: São outros tempos, pai…

ORLANDO: Não discordo! Mas veja, se houvesse uma diretriz forte, nada disso ia acontecer. Estaríamos dialogando harmoniosamente. Retos.

OLAVO (afirmativo): A internet é terra de ninguém, por isso isto nunca daria certo…

ORLANDO (enfático): Ledo engano! Seguindo a doutrina filosófica você teria ética diante de qualquer decisão.

OLAVO (tentando não ofender vô, concordando amistosamente): É verdade! Não duvido! Também concordo com o senhor que ética é importante.

OTÁVIO (termina sua dose de uísque): Eu não acho. (Acende um cigarro e fala enquanto a fumaça sai de sua boca) Tem gente que acha que tem ética, mas na verdade é um grandíssimo imbecil.

ORLANDO (ri): Há quem acredite em uma real democracia … OTÁVIO (enfático): Democracia não existe. Existe quem tem dinheiro. OLAVO: E quem quer ficar rico…

ORLANDO (saudoso): As virtudes tão corrompidas pela ganância. É preciso ter o que for preciso de material e não esquecer do amor em cristo. Isso sim que é necessário, compreende?

OTÁVIO (enquanto levanta um copo de uísque): Amém, pai. E que acabe esse bando de político vagabundo!

OLAVO: Tem que roubar esses malandros. Eles roubam do povo.

ORLANDO (explicativo): Sempre falei, não adianta esse monte de partidos. Isso não chega ao povo, que nunca sabe os projetos dos políticos. Viram massa de manobra, manipulada por quem tem poder.

OLAVO: Tem que acabar com as leis. Prender todos eles. Tem que ter pena de morte

ORLANDO (explicativo): Os líderes sempre dizem, não devemos nos esquecer do supremo Deus. Ele é absoluto sob nossa nação, absoluto sob nossa sociedade, absoluto sob moralidade, sob nossa espiritualidade, sob nós, servos do senhor, compreende?

OTÁVIO: Ele está acima, mas aqui na terra tem que usar a força. Estamos em guerra com nossos inimigos internos… Esses políticos são todos ateus.

ORLANDO: Sem moral e bons costumes! Sem respeito a um bom Líder.

OTÁVIO: E o preço das coisas que não para de subir? Esses vagabundos!

OLAVO: É isso que dá não ter um mercado maior, com bastante concorrência.

ORLANDO: Bom era o tempo que quando você precisava de um alfaiate, ia no alfaiate. Precisava de um sapateiro, ia no sapateiro. Agora nas lojas tem um monte de coisa igual, isso que encarece.

OLAVO: Mas hoje não precisamos de loja, dá pra comprar tudo pela internet…

ORLANDO: Tudo é porcaria. Você não vê o que compra. Você foi comprar um negócio pra mim, veio tudo errado.

OLAVO: Não vê, mas se não gostar é só trocar. A gente trocou, lembra?

ORLANDO: Trabalho em dobro! Pra você é fácil falar isso, nasceu nesse momento onde tudo está desalinhado.

OLAVO: São novas linhas…

ORLANDO: Olavo! Eu acredito na juventude, mas na juventude em Cristo, compreende? Não na juventude na internet

OLAVO: Mas hoje tem missa online ORLANDO: O que é isso? Missa é missa! OLAVO: A gente vê o padre pela internet ORLANDO: Mas como ter a hóstia sagrada? OLAVO: Aí não tem!

ORLANDO: Está vendo? Essa internet é boa pra você mas muito ruim pra muita gente…

OTÁVIO (provocativo): Falando sobre internet, Olavo, o que você tanto faz por lá, hein?

OLAVO (se assusta com a pergunta do pai, pega um cigarro): Muita coisa. Jogo, trabalho, estudo…

OTÁVIO (olhando com um sorriso sarcástico): Você fuma?

OLAVO (apreensivo): Faz pouco tempo.

ORLANDO (saudoso): Fumei durante 40 anos, na minha época podia fumar dentro da redação… Todo mundo fumava. A gente ficava até tarde esperando o editor geral finalizar a pauta, sempre fumando, compreende?

Marta entra com uma bandeja.

MARTA (surpresa): Você tá fumando, Olavo?

OTÁVIO (irônico): Pois é, Marta! Tem coisas que não sabemos sobre nosso filho.

OLAVO (se esquivando): Faz pouco tempo, por isso nunca contei…

MARTA (enfática): Para com isso! Isso faz mal!

OLAVO: É só socialmente, mãe!

OTÁVIO (provocando): Você sabia que cigarro serve para se acalmar, se concentrar?

MARTA: Besteira! Para com isso. Isso mata. ORLANDO: Fumei durante 40 anos e não morri! MARTA: O senhor teve sorte.

ORLANDO: Tive fé!

MARTA (mudando de assunto): Vou começar a servir o jantar. Posso tirar essas coisas da mesa?

ORLANDO: Claro, dona onça

MARTA: Não me chame assim, você sabe que eu não gosto!

OTÁVIO (malicioso): É só uma brincadeira… Não se pode cutucar você com uma vara curta. (ri)

MARTA (constrangida): Chega, Otávio!

Marta sai. Otávio continua rindo, acende outro cigarro. Orlando mexe em seu bigode enquanto olha para baixo. Olavo mexe em seu celular. Tempo.

ORLANDO (cauteloso): Filho! Não estou gostando da sua atitude com a sua mulher. Ela é sagrada. Marta é boa com vocês.

OLAVO: Ele é assim com todo mundo, vô!

OTÁVIO (bravo): Cala sua boca, Você é um moleque!

OLAVO: Não admito que me chame de moleque.

OTÁVIO: É moleque sim!

ORLANDO (bravo): Calados! Vocês dois não parecem pai e filho. Ouçam… Uma família bem unida também tem que estar integrada.

OTÁVIO: Me desculpe, pai (Fala encarando o filho, Olavo desconfia de algo) Estou um pouco com a cabeça quente de um tiro que saiu pela culatra lá no clube…

ORLANDO (solicito): Meu filho, se estiver mal, me peça ajuda. Sou velho, mas ainda posso raciocinar com você…

OTÁVIO (acalmando o pai): Não é nada grave, pai! Vai melhorar…

ORLANDO (tentando esboçar uma tranquilidade): Pois bem, como dizia, é preciso ter o amor de cristo guiando nossas ações, compreende? Um filho deve respeitar seu pai. Mas, sabemos que a juventude é o futuro, um pai também deve ter paciência para indicar o bom juízo ao filho…

OLAVO (provocando): O senhor conversava bastante com meu pai, vô? Porque o meu nem sabe com o que trabalho…

OTÁVIO (nervoso): Sei mais do que você imagina… (Olavo se assusta)

ORLANDO: Seu pai trabalha muito para te dar do bom e do melhor.

 OTÁVIO: Ele é mal agradecido.

ORLANDO: Filho!

OTÁVIO: Pai!

ORLANDO: Cuidado quando for falar com sua esposa. Suas palavras ofendem ela.

OTÁVIO: Vou cuidar, pai.

ORLANDO: Eu fiquei inúmeras vezes bravo com sua mãe, mas jamais faltei com respeito.

OTÁVIO: Me recordo!

ORLANDO: Meu finado pai sempre dizia que na família há as mais lídimas tradições. É verdade.

OTÁVIO (fumando): É verdade.

ORLANDO: E você sabe, a verdade anda ao lado da virtude.

OTÁVIO: Sei.

ORLANDO: É preciso cultivar

OTÁVIO: Está certo!

ORLANDO: Vamos rezar!

Enquanto a cena anterior acontece, Marta entra com uma bandeja com carne, arroz e salada. Sai. Volta com taças e vinho. Sai. Volta preparada para sentar à mesa. Toda família reunida. No decorrer da oração puxada por Orlando as luzes se apagam e o javaporco é iluminado com a cor verde oliva. Luzes são acendidas.

ORLANDO (terminando): … E não nos deixei cair em tentação, iluminai nosso Líder, amém.

TODOS: Amém!

MARTA (cortês): Posso servir o aniversariante?

ORLANDO: Muito gentil de sua parte. Obrigado, querida. (Marta monta o prato de Orlando)

OTÁVIO (fala enquanto se serve): Pai, estou feliz com esse jantar de aniversário pro senhor.

ORLANDO: Estou orgulhoso de ver minha família unida e abençoada. Mal posso esperar para a próxima alvorada. Ver o Pessoa amanhã será um presente tão valioso quanto minha família (recebe o prato de Marta) Obrigado, querida!

OTÁVIO (fala enquanto mastiga): Sei o que isso significa para o senhor.

ORLANDO: Para todos nós!

OLAVO (fala enquanto se serve): Vou com o senhor amanhã, vô!

ORLANDO (feliz): Que alegria, querido! Vamos atualizar o álbum de família.

MARTA (fala enquanto se serve): A carne está mal passada, do jeito que gostam.

ORLANDO: Três gerações de homens que apreciam uma boa carne.

MARTA (ri): Alguém quer vinho?

ORLANDO (afirma com a cabeça): Um dedinho.

OTÁVIO: Vai com calma, pai!

ORLANDO: Estou bem, filho! Vinho é sangue de cristo, é saúde.

Comem. Riem. Lembram de histórias. A luz se apaga. O javaporco, agora, habita a mesma escuridão que os demais humanos da sala, enquanto no toca-discos é reproduzido a faixa 5 Coral de Brasília – Sinfonia da Alvorada de Tom Jobim e Vinicius de Moraes. As luzes se acendem. Otávio está passando a mão na cabeça do javaporco. Todos já estão fartos de comer. Olavo e Marta usam seus celulares. Orlando olha para o além.

OTÁVIO (nostálgico): Ele correu rápido, estava ao lado de uma fêmea, mas não foi mais rápido que minha mira.

ORLANDO (curioso): Como funciona isso?

OTÁVIO (bebendo seu uísque, acendendo um cigarro): O tiro?

ORLANDO: A caça!

OTÁVIO: Uma empresa turística, ela leva a gente do clube.

ORLANDO: E o javali é da empresa?

OTÁVIO: Não! É tudo no meio do mato mesmo… A gente leva cachorros, cada um com uma 357 na mão. Os cachorros fazem a acuação e a gente mete bala (faz uma arma com as mãos e aponta para a cabeça do javaporco)

ORLANDO: Cachorro é bom pra isso! 

OTÁVIO: O senhor tem que ver o Nelori. 

OLAVO: O pitbull?

OTÁVIO: Olavo já viu. O bicho é bravo, enfrenta cada cachaça de 200 quilos.

ORLANDO: Cachaça?

OTÁVIO: Chama assim bicho grande.

OLAVO: Esses bichos só são assim porque misturam com porco. Genética. São bravos, vô, tem que ver!

OTÁVIO: Vão pra cima mesmo depois de baleado. 

OLAVO: Vi há pouco tempo que tem gente criando. 

OTÁVIO: É. Reproduz pra gente matar.

ORLANDO: No meu tempo era tudo mato, compreende? Não tinha cria não. A gente também levava cachorro, mas naquele tempo a gente não amarrava cachorro com linguiça. Também não tinha pit bull.

OTÁVIO: Pessoal da empresa sabe onde estão as criação. (entra Marta)

ORLANDO: No Boqueirão a gente matava capivara, o mais comum era teiú e rolinha. Já comeu teiú?

OTÁVIO: Isso não se come, pai!

ORLANDO: Como não? 

OTÁVIO: Não é carne boa! 

ORLANDO: E javaporco é?

OTÁVIO: Boa! Mas o melhor é matar!

MARTA (indignada): Credo, você fala cada coisa…

OTÁVIO (surpreso): Ué! Estou mentindo? Depois vira um lindo troféu. Esse foi o único que consegui matar com um tiro. E não foi na cabeça.

MARTA: Tenho dó!

OTÁVIO: De um bicho que só serve para destruir tudo?

MARTA: Não sei de onde você tira essas ideias.

OTÁVIO: Ai, Marta! Não me encha o saco, vai.

ORLANDO (dando uma bronca como se falasse com uma criança): Filhoooo!

OTÁVIO: Pai, a Marta não é uma santa! Vai na igreja, mas não é santa… 

MARTA (surpresa): Por que você está falando assim?

OTÁVIO: Você não sai do celular. 

MARTA: Não te devo explicações. 

OTÁVIO: Você é minha esposa!

MARTA (se dirige a Orlando enquanto se levanta): Seu filho é um paranoico! (pega os pratos vazios)

OTÁVIO: Fala na minha cara!

MARTA (encarando Otávio de perto): PA-RA-NOI-CO!

OTÁVIO: Você fala isso porque é fria, não se preocupa…

MARTA (brava): Você se acha muito preocupado, mas não sabe de nada que passa perto de você.

OTÁVIO: Cala a sua boca

ORLANDO (gritando): Filho!

OTÁVIO: Essa merda vai explodir dentro da nossa casa. Não aguento mais…

MARTA: Se controle!

ORLANDO (desconfiado): O que está acontecendo? Vocês estão escondendo algo?

MARTA (esquivando): Não é nada, seu Orlando… (sai)

ORLANDO (espera Marta sair): O que está acontecendo aqui?

OTÁVIO (respira fundo, penteia os cabelos para trás com as mãos, fecha os olhos): Não me sinto bem.

ORLANDO: Sente aqui, filho.

OTÁVIO (fala enquanto se senta): É… (pensa)… Tenho uma amante no clube. Marta descobriu!

ORLANDO (indignado): Não me fale isso! Que pecado, filho.

OLAVO (surpreso): Há muito tempo?

OTÁVIO: A carne é fraca.

ORLANDO (corrigindo): Não é! O homem é fraco e diz sim. Você precisa voltar à missa.

OTÁVIO: É no horário do clube.

ORLANDO (tentando ser assertivo): Não interessa! É sua alma que está em jogo. Quando for para a milícia do além, tem que estar puro.

OTÁVIO: Não acredito nisso, papai!

ORLANDO: Precisa acreditar! (Abaixa a cabeça para pensar)

OLAVO (reforçando): Você trai minha mãe há quanto tempo? 

OTÁVIO (bravo, encarando Olavo): Há menos tempo que suas cagadas. 

OLAVO (irônico): Eu não traí ninguém!

OTÁVIO: Continue fazendo suas merdas na internet que eu vou ter que trair…

OLAVO: O quê?

OTÁVIO: Uns cagam, outros limpam OLAVO: Tá limpando com traição?

OTÁVIO: Cortina de fumaça

OLAVO: Ataque com perna curta?

OTÁVIO: Você é um merda!

ORLANDO (levanta a cabeça): O que é isso?

OTÁVIO: Esse moleque me tira do sério!

OLAVO: Já falei para não me chamar de moleque!

OTÁVIO: Moleque, sim!

OLAVO: Moleque não tem integridade!

OTÁVIO: Cala sua boca!

ORLANDO (bate palmas para chamar atenção): Chega! (se acalma, entrelaça os dedos enquanto pensa) Vocês dois precisam me escutar… (Otávio abaixa a cabeça para ouvir, Olavo olha o avô) Hoje completo 90 anos, nasci praticamente junto com a ação. Dediquei minha vida à construção de uma nação com uma grande sociedade de famílias. Família. Vocês sabem o que é isso? Os homens têm seus direitos naturais, morais, espirituais e materiais. Infelizmente vejo que vocês só pensam no material…

OTÁVIO: Desculpe, pai, mas estamos em outro tempo…

ORLANDO: O tempo não muda, a sociedade sim. E vocês caminharam para longe das virtudes. (se lamenta) Me sinto culpado por isso!

OLAVO: Não, vô! O senhor não tem culpa de nada. O senhor sempre nos ensinou as boas virtudes.

ORLANDO: E vocês aprenderam?

OLAVO: Eu tento, vô! Juro para o senhor! Quero ser justo, quero fazer as coisas boas.

ORLANDO: Não se trata somente disso. E cristo?

OTÁVIO (bebendo um gole de uísque, convicto): Vou voltar para a missa!

ORLANDO: Sua salvação não virá somente disto. Tem que cuidar da alma…

OTÁVIO: Estou me esforçando!

ORLANDO: Adultério!

OTÁVIO (olha para Olavo e sorri malicioso): Estou arrependido!

OLAVO (irônico): Síndrome de cristo crucificado

OTÁVIO (grita): Vou te matar, seu merda! (Marta entra às pressas)

ORLANDO: Mas será o Benedito?!

OTÁVIO: Esse moleque fica fazendo merda na internet e agora quer dar uma de rapaz bom…

MARTA: Otávio, por favor!

ORLANDO: Filho, se acalme!

MARTA (cortando Otávio): Hoje é aniversário do seu pai, vamos ficar tranquilos, amanhã conversamos mais calmos, sem bebida na cabeça…

ORLANDO: Gostaria de entender o que está se passando.

MARTA: Seu Orlando, não é nada! Nada demais…

OTÁVIO (raivoso): Nada demais? Esse moleque vai sujar nossa família… E se ele for preso?

MARTA: Otávio, você não está ajudando!

OTÁVIO: Uma vergonha! VER-GO-NHA!

OLAVO: Você traiu minha mãe e eu que sou vergonha?

MARTA (surpresa): O que é isso? É verdade isso?

OTÁVIO (olha assustado): É… Na verdade, não! (olhando para Marta) Tentei inventar algo…

MARTA (desconfiada): Otávio, por que você mente?

OTÁVIO: Você me pede para mentir!

ORLANDO: O que está acontecendo? O que é verdade, o que é mentira?

OTÁVIO (calmo, se esquivando): Nada pai! Eu não tô traindo Marta.

MARTA: Prove isso!

OTÁVIO: To tentando proteger essa merda do seu filho.

MARTA: Você é muito estúpido. (Sai).

ORLANDO: Filho, o que você tá escondendo?

OTÁVIO (senta, coloca a cabeça entre as mãos): Olavo tá sendo investigado, cometeu um crime

ORLANDO: O que é isso?

OTÁVIO: Ele fez coisas que foram consideradas crimes.

ORLANDO: Crimes como?

OLAVO (preocupado): Quero ver provar o que eu fiz

OTÁVIO: O ataque?

OLAVO: É. Como chegaram em mim? 

OTÁVIO: No processo comentam de pegadas. 

OLAVO: Quais?

OTÁVIO: A bandeira da ação.

ORLANDO (preocupado): O que tem a bandeira da ação? Me explique isso Olavo.

OLAVO: Calma, vô. Não foi nada demais. Eu fiz um vídeo, queria fazer justiça contra uns vagabundos.

ORLANDO: Explica isso direito. Quem permitiu? Com quem falou?

OLAVO: Não falei com ninguém. Peguei uma bandeira, não sabia que era da ação. Usei no cenário de um vídeo.

ORLANDO: Como não sabia?

OLAVO (resignado): Achei que não ia dar nada…

ORLANDO: Como ousa fazer uma coisa dessas? Como ousa pegar nossos emblemas para cometer um crime?

OLAVO: Eu achei que vocês não eram fortes o suficiente. Ninguém acredita mais em vocês.

ORLANDO: Amanhã o Pessoa vem aqui, você quer prova maior?

OTÁVIO: Ele não pode saber disso. 

ORLANDO: Eu não minto para um líder. 

OLAVO: Desculpe, vô!

ORLANDO: Cala a sua boca! (começa a passar mal. sua pressão arterial cai) Ai. Não estou bem! Tontura.

OTÁVIO: Pai! (Olavo se levanta, vai na direção de Orlando) Marta, traz água, papai está passando mal.

MARTA (entra às pressas): Aqui! (entrega a água)

OTÁVIO (dando água a seu pai): Pai! Se acalme.

ORLANDO: Um neto criminoso… Usando nossa bandeira… Covardia

OTÁVIO: Bebe mais água, pai

MARTA: Chamei Eunice!

OTÁVIO: Agora? A gente precisa de um médico

ORLANDO: Sem médico… quero um padre e um dirigente da ação.

OTÁVIO: O senhor tá passando mal, pai

ORLANDO: Tô, mas deus está acima de tudo.

MARTA: A coisa tá virando um monstro… (se dirige a Olavo) Você nos deve explicações!

Luzes se apagam.

Fim da segunda parte.


TERCEIRA PARTE: EUNICE

O apartamento está tomado pelo silêncio e constrangimento. Eunice chega, Marta a recebe. Se abraçam. Um abraço carinhoso e reconfortante. Marta beija quatro vezes o pescoço de sua amiga durante o ato de abraçar.

MARTA: Que bom que veio!

EUNICE: Queria ter vindo antes… 

MARTA: Você sabe, querida, não dava! 

OTÁVIO (tentando ser gentil): Oi, Eunice. 

EUNICE: Boa noite, Otávio.

ORLANDO (se dirigindo a Otávio): Quem é essa aí? 

OTÁVIO: Eunice, uma amiga da igreja de Marta. 

ORLANDO: E o que ela sabe de justiça?

MARTA: Muita coisa, estudamos juntas no curso de direito.

ORLANDO: O que ela sabe de justiça divina?

MARTA: Seu Orlando, isso não vem ao caso agora…

ORLANDO: Sou movido pela fé. A justiça dos homens é falha, esse moleque desonrou uma aliança sagrada (Olavo olha para o avô) não olhe pra mim!

MARTA: Ele será julgado em um fórum criminal, não na igreja…

ORLANDO: Ele acabou com o nosso destino após a morte…

EUNICE: Senhor, com todo o respeito, se ele colaborar, talvez pegue somente um trabalho voluntário…

ORLANDO: Não me importo com o material, vocês só pensam nisso. E o espiritual? E a moral? Isso importa!

MARTA: Eunice, vem comigo pegar uma água!

OTÁVIO (ameaçador): Você vai ajudar, morfético. Se não ajudar, vai ter comigo!

OLAVO: Já tô fodido mesmo.

ORLANDO: Vergonhoso!

OLAVO: Já pedi desculpa, vô.

ORLANDO (com mãos trêmulas segura um copo d’água): Cala a boca!

Luzes se apagam. Javaporco têm seus olhos vermelhos. Luz acende, Marta e Eunice voltam. Otávio fuma, bebe e coça o nariz. Orlando dorme com a testa apoiada em uma espingarda. Olavo está olhando para baixo, pensativo.

OTÁVIO: Por que demoraram tanto?

MARTA: Conversávamos sobre o caso…

OTÁVIO: Agora você se acha advogada também, dona onça advocacia?

MARTA: Cala a boca, idiota!

OTÁVIO: O que vocês estão escondendo?

MARTA: Sua paranoia a gente cuida depois, agora vamos ver o caso do seu filho…

OTÁVIO (ruge como um javaporco): Mais essa… (olha para Olavo com tom ameaçador) Já sabe, né?

MARTA: Você sabe que está ferrado, então nos ajude a te ajudar…

EUNICE: Querido, dia 20 de dezembro, pelo que consta em algumas provas identificadas, você atacou um bar com bombas e incendiou um carro que estava estacionado na frente do estabelecimento. Confere essas informações?

OLAVO: Sim

EUNICE: Você não estava sozinho?

OLAVO: Não

EUNICE: Estava em um grupo com toucas e roupas com emblemas, certo?

OLAVO: Certo

EUNICE: Esses emblemas correspondem a alguma ação, movimento ou algo do gênero?

OLAVO (tempo): Vocês já sabem…

MARTA: Queremos ouvir novamente da sua boca, ou será que teremos que usar uma forcinha para falar? Otávio?

OTÁVIO: Quê?

MARTA: Parece que seu filho está com medo de falar… Você não tem um corretivo aí?

OTÁVIO: Quer ver o que é bom pra tosse, Olavo?

EUNICE: Fiquem calmos! Olavo, falar a verdade será mais fácil para todos nós. Vamos? O emblema que vocês usavam era da ação, certo? O mesmo movimento que seu avô participa e que será homenageado amanhã por quase um século de participação. Por que você fez isso?

OLAVO: Porque eu vi na cristaleira.

MARTA: Resposta vaga!

OLAVO: Sempre esteve na cristaleira, eu sempre vi.

ORLANDO (voz embargada): Triste ouvir isso. Nossos emblemas sempre estiveram nas nossas formações. Você sabe o que ele representa, seu covarde. (chora) Covarde!

OTÁVIO: Calma, pai!

EUNICE: Otávio, dê uma água a seu pai. (olha fixamente para Olavo) Nos ajude a entender, você sabia que usava um emblema da ação, por que se fez parte dela para cometer seus crimes?

MARTA: Você cometeu alguns crimes, ajude a gente a ver como podemos reduzir sua pena…

OLAVO: A gente queria mostrar força.

EUNICE: Quem é a gente?

OLAVO: Os caras

EUNICE: Que caras?

OLAVO: Os caras do fórum

EUNICE: Pessoas que você nunca tinha visto até os ataques?

OLAVO: Sim.

EUNICE: Pessoas que encontrou na internet porque compartilham das mesmas ideias que você. Por que você fez isso?

OLAVO: Isso o quê?

EUNICE: Os ataques criminosos. 

OLAVO: Porque era o certo 

MARTA: Qual certo?

OLAVO: O que eu acredito, o que os caras também acreditam. A gente só foi dar uma lição em quem a gente acha que tá errado.

EUNICE: Você cometeu alguns crimes. Terá que responder por racismo, intolerância religiosa, fraude de identidade, formação de quadrilha e tentativa de homicídio. Tudo o que fez, o que você e os caras fizeram, são infrações segundo o código penal. Você precisa nos ajudar a te ajudar!

MARTA: Já te aviso que não vou te visitar na cadeia, seu pai que vá…

EUNICE: Você precisa entender uma coisa, você cometeu crimes que não são hediondos, mas ainda assim são crimes…

OLAVO: Não escolhi usar os emblemas da ação.

MARTA: Quem escolheu?

OLAVO: Os caras

EUNICE: Mas você sabia a quem pertencia.

OLAVO: Sabia

EUNICE: E os caras? (Olavo fica em silêncio)

MARTA: Parece que estamos na frente de um ingênuo. Um maria-vai- com-as-outras. Uma criançola que se tranca na frente de uma tela de computador e que fora do seu quarto não consegue falar com ninguém, nem com sua terapeuta.

OTÁVIO: Terapeuta?

MARTA: Eu pago pra ele, uma vez por semana vai na irmã da Eunice para melhorar seu comportamento antissocial com forte tendência a paranoia. Vai ver que herdou sua genética, Otávio.

OTÁVIO: Que porra é essa? Desde quando isso acontece?

MARTA: Você nunca se interessou pelo seu filho, não é agora que precisa saber.

EUNICE: Olavo, minha irmã não me disse nada. Ela é ética. Mas saiba que os investigadores chegaram nela antes de vir até você.

OTÁVIO: Que merda tá acontecendo aqui? Você sabia dos crimes dele antes da chegada da carta, Marta?

MARTA: Palmas para o grande pai do ano!

OTÁVIO: Por que não me falou antes?

MARTA: Os investigadores me viram deixando Olavo na clínica. De lá pra saberem seu nome, de onde veio e seus documentos, foi um pulinho!

OLAVO: Mas não usei meu celular para falar com os caras.

EUNICE: Sabemos. Cruzaram algumas informações e origens para confirmar o uso de seu nickname. Sigmeupau, Olavo?

MARTA: Que falta de criatividade!

EUNICE: Por quê, Olavo?

Olavo fica quieto.

EUNICE: Nós sabemos de todos os ataques cibernéticos e físicos que fizeram. Ainda não teve busca e apreensão. Ainda. Mas você deixou inúmeros rastros. De uso da bandeira a uso do uniforme do seu avô.

ORLANDO (se assusta com a informação): Você vestiu minha camisa verde?

EUNICE: Você esqueceu que cada uniforme da ação tem uma numeração. Pegar um dos uniformes do seu avô, fazer ataques físicos, ser captado por câmeras de segurança, foi uma pista importante para a investigação.

MARTA: Achou que estava cometendo o crime perfeito, mas foi um verdadeiro amador. O pior foi você ter deixado na máquina de lavar. Pensou o quê? Que eu acharia normal uma camisa do seu avô criar perninhas sem ter sido usada?

OTÁVIO: Meu pai lava as camisas dele…

OLAVO: Não sabia…

EUNICE: Olavo, alguns dos caras já foram presos. Seus amigos da internet não são familiares de ninguém da ação. Você é! Isso custará caro à tradição.

OLAVO (se levanta): O que podem fazer?

EUNICE: A você, nada. Provavelmente a ação fará algo a seu avô.

ORLANDO (chorando): Adeus minha reputação (engatilha a espingarda)

OTÁVIO: Não! Calma, pai, não vai fazer besteira!

MARTA: Calma. É possível reverter isso.

ORLANDO: Como, Marta? Na certa o Líder Pessoa já sabe disso.

MARTA: Ainda não!

EUNICE: O processo está correndo sob sigilo.

Olavo pega a arma que estava na cristaleira e aponta a todos.

EUNICE: Calma, Olavo!

MARTA: Filho, não faça mais besteiras!

OTÁVIO: Olavo, solta isso!

OLAVO: O seguro morreu de velho, não é? Agora quero que me escutem! Por favor, vocês precisam me entender. Fiz o que era certo. Aquilo que sempre imaginei que deveria ser colocado em prática. A limpeza, a honra e principalmente a justiça contra aqueles que tentam acabar com as nossas boas tradições. Vocês me interrogaram e ameaçaram até agora. Falaram onde falhei mas ninguém me perguntou onde acertei. Agora vocês vão me ouvir… Sempre escutei meu vô Orlando falar que a honra é a primeira qualidade de um homem e a segunda a lealdade, não é, vô? Eu fui leal e honroso a tudo que me ensinaram. Honrei tudo o que está nessa cristaleira há anos. Acertei quando ataquei aquele bar de gente que não respeitava a igreja. Acertei quando pensei no meu dever de homem de bem antes da ética. Acertei quando quis que respeitassem deus, a nossa pátria e a família. Eu não errei e vocês estão me condenando com base numa lei caduca. Nós somos maiores que essas leis! Nós somos a mudança! Eu sou a mudança! Fiz isso que chamam de ataque, mas para mim é a salvação. Queria agir para construir um mundo melhor e vocês reagiram me condenando, me entregando à essa justiça porca. Eu sou uma atualização, tentei tornar os antigos costumes mais vivos. Acertei porque assustei aqueles não pensam conforme as virtudes, como nós, e sei que posso ir mais longe… Por tudo que me ensinaram…

Luzes se apagam. Ouve-se um som de tiro. O Javaporco é o único elemento iluminado. Tempo.

VOZ OFF DO LÍDER PESSOA NO DIA SEGUINTE: É com muita tristeza que chego a essa cidade, onde faríamos uma homenagem a um dos nossos membros mais longevos. Seu Orlando, que ontem mesmo completara 90 anos, teve sua vida retirada por um infarto fulminante. Seu Orlando faria os tiros de saudações com as armas que pertenceram a seu pai. Que sua família seja consolada pela paz de cristo e que seja recebido com festa na milícia do além. Mas a vida é feita de surpresas e honras e para minha felicidade saúdo o mais jovem membro da nossa ação, Olavo, neto do finado Orlando. Seus últimos atos nos fizeram acreditar que ele será bem-vindo a nossa ação. O que seria aparentemente um revés se tornou uma benção, pois a repercussão do acontecido serviu para propagar nossa missão através das redes. Os jovens vêm para plantar os velhos costumes…