Dramaturgias do Tempo
Peça Exumação
Personagens
DIABO-COXO
COVEIRO
ISMÊNIO
URUBU
CORVO
INSPETOR DE QUARTEIRÃO
CARCEREIRO
JUIZ DE PAZ
COMENDADOR
LEGISTA 1
LEGISTA 2
ADVOGADO
Abertura
Projeção de tela no fundo do espaço cênico. As projeções devem ser feitas como vídeos clichês típicos do aplicativo Tik Tok. Na tela o Diabo-Coxo, que tem sua caracterização inspirada nas ilustrações de Angelo Agostini. Ele deve mostrar as seguintes frases:
VOCÊS SABEM COMO JUSTIFICAVAM O ASSASSINATO DE CRIANÇAS NEGRAS ANTES DA INVENÇÃO DAS BALAS PERDIDAS?
NÃO?!
NÓS VAMOS MOSTRAR O CASO DE UMA MENINA.
ELA MORREU HÁ MUITO TEMPO.
NÃO TEMOS FOTO DELA. NEM SABEMOS O NOME.
MAS VOCÊS PODEM ESCOLHER UM DESSES ROSTOS PARA REPRESENTÁ-LA:
As fotos apresentadas serão de meninas negras reais, mortas por tiroteios em favelas no passado recente. Exemplos de meninas cujas fotos devem ser exibidas, com nomes e idades.
JENIFER CILENE GOMES, 11 anos
ÁGATHA FÉLIX, 8 anos
KETELLEN GOMES, 5 anos
MARIA ALICE NEVES, 4 anos
RAYANE LOPES, 10 anos
ANA CAROLINA DE SOUZA NEVES, 8 anos
EMILY VITÓRIA, 4 anos
REBECA BEATRIZ, 7 Anos
O Diabo-Coxo reaparece, com as seguintes frases:
ESTÃO PRONTOS?
VAMOS LÁ!
Fim do vídeo.
Cena 1
Cemitério. Alta madrugada.
O Diabo-Coxo aparece com um lampião, que será o principal instrumento de iluminação desta cena. Seu uso será guiado pelos atores em cena.
O Coveiro está deitado em uma cova rasa, com um punhado de terra ao lado, uma pá jogada de qualquer jeito. Na lateral da cova, um pouco mais afastado, um muro e uma árvore.
A entrada de Ismênio se dará sem muito alarde, enquanto o Diabo-Coxo faz sua primeira fala. A perna de Ismênio está adornada por moedas, de modo a parecer que é feita de ferro. Ele deve arrastar um cadáver até um canto entre o muro e a árvore.
O cadáver é o corpo de uma criança embalado numa manta que é feita da junção de diversas camisetas do uniforme escolar da prefeitura municipal do Rio de Janeiro (camiseta branca com uma faixa azul), apenas com os pés feitos de barro para fora. O público não deve ver nada além dos pés, mantendo oculto o corpo embalado no pano, mas deve ficar claro que há um corpo de criança dentro dele.
DIABO-COXO:
“Meus senhores, sou eu, não é ninguém. É o Coxo-Diabo que aqui vem”.
Faltando oito anos para a Abolição, quando o poder era exercido por comendadores, barões de café e escravocratas em geral, e um pouco pelo Imperador e sua filha, um coveiro teve um sonho que perturbou sua alma, ou melhor: suas duas almas. Um preto, que escravo não era, mas tão pouco era livre. Que não era chamado de escravo, mas também não era chamado pelo nome. Coveiro, apenas coveiro.
Estando ele deitado sem deleite em seu leito, numa cova que às vezes lhe servia de alcova, sonhou com uma estátua enorme, impressionante, de aparência terrível. A cabeça da estátua era feita de ouro puro; o peito e o braço eram de prata; o ventre e os quadris eram de bronze; as pernas eram de ferro; e os pés eram de barro. Enquanto observava, uma pedra soltou-se, sem auxílio de mãos, atingiu a estátua nos pés de barro e a esmigalhou. Então o ferro, o barro, o bronze, a prata e o ouro foram despedaçados, viraram pó, como o pó da debulha do trigo na eira durante o verão. O vento os levou sem deixar vestígio. Mas a pedra que atingiu a estátua tornou-se uma montanha e…
Ismênio se aproxima da cova.
ISMÊNIO: Acorde homem! Trouxe um serviço para você. Pagamento extra. Dinheiro (bate nas pernas) e um pedaço de carne de porco que foi servido numa festa luxuosa.
O Coveiro acorda e lentamente vai saindo da cova, com a mesma confusão que um morto teria se voltasse à vida. Diabo-Coxo se aproxima do Coveiro como um encosto.
DIABO-COXO/COVEIRO:
“Rompeu-me o sono fundo em minha mente
grave trovão e assim me recobrei
como o que acorda a força e rudemente.
Vi que no extremo estou eu situado
aqui na vala do meu abismo doloroso.
É escuro, profundo e nebuloso
e embora eu aplique a vista a fundo
nada me dá a ver por penumbroso
escuro, profundo e nebuloso
e embora eu aplique a vista a fundo
nada me dá a ver por penumbroso”[1].
Diabo-Coxo deixa o corpo do Coveiro.
DIABO-COXO: “Aqui descemos para o cego mundo”[2]. O Coveiro foi acordado, por Ismênio, outro coveiro, que pela brancura da pele se coloca como seu patrão, e porta-voz em negócios que jamais seria chamado a negociar. Estamos em novembro. “No dia que o cadáver da menor, tendo ainda os pés sujos de barro, foi levada ao cemitério e recusada pelo coveiro, que levantou o alarma”[3].
ISMÊNIO: Taí um corpo que mandaram pra gente enterrar ali perto do muro, longe das covas já abertas. São três da manhã. Em dois a gente faz o serviço rapidinho. Aí melhor, pois eu quero voltar pra minha cama e dormir mais um cadinho antes de amanhecer.
COVEIRO: Onde está?
ISMÊNIO: Logo ali, veja. É uma criança, uma pretinha escrava. Será rápido. Eu mesmo jogaria na cova e enterraria, mas minhas costas doem, e precisamos abrir uma cova aqui mesmo, depois enterrar, e bater a terra no chão, para que ninguém perceba que uma cova foi aberta aqui, longe das demais.
O Coveiro pega o lampião do Diabo-Coxo, como se este não existisse, vai até o corpo, faz o sinal da cruz, repara nos pés de barro que estão para fora do pano.
COVEIRO: Pés de barro.
ISMÊNIO: Quê?
COVEIRO: Pés de barro.
ISMÊNIO: Quê que tem?
COVEIRO: Eu me recuso! (devolve o lampião para o Diabo-Coxo)
ISMÊNIO: Recusa o quê?
COVEIRO: Recuso enterrar esta menina.
DIABO-COXO: Era ele quem cavava sepulturas, onde antes só havia chão.
ISMÊNIO: Mas sempre que alguém vem te chamar, na cova que você fazia de alcova, você me diz sim, independente da qualidade do morto.
COVEIRO: Agora eu digo não!
ISMÊNIO: Oxi, Diacho!
DIABO-COXO: Oxi, pra mim não, que eu não fiz nada!
ISMÊNIO: Pois foi você ver a fuça da defunta que mudou a expressão.
COVEIRO: É que eu notei algo errado. E os pés de barro.
ISMÊNIO: Pois desembuche, enquanto a gente cava!
COVEIRO: Quantos anos ela tem? Sete, oito, nove anos no máximo?!
ISMÊNIO: Vou lá saber?! Não fui convidado para o batizado. Se é que teve.
COVEIRO: Há marcas de chicote em sua fina pele preta. Tantas marcas, como se fossem caminhos, que levam minha mente a um destino inevitável: a certeza de que foi assassinada. E os hematomas, talvez você não veja, pois não tem olhos para ver, mas eles brilham aos meus olhos, mesmo sendo mais escuros que sua pele; mesmo sendo a noite densa. E em seu brilho, eu leio: homicídio. E veja o quanto ela é magra, como se tivesse somente a fome como companhia para barriga. São tantas marcas recentes e cicatrizes antigas, que parece que sua vida foi apenas a vivência de seu próprio assassinato. Não nasceu ela de ventre livre, mesmo que com mãe escrava?!
ISMÊNIO: Então quer dizer que eu vou cavar este buraco e enterrar a preta sozinho?!
COVEIRO: O enterro será feito, mas não sem antes investigação!
ISMÊNIO: E quem é você para falar em investigação, homi? Juiz de Paz? Pois saiba que foi gente da lei, que presta serviço pra gente muito importante que mandou a gente enterrar esse corpo. E por uns bons tostões. E pelo jeito não queriam velório, cortejo e muito menos perguntas. Eu que não sou besta, só disse “sim senhor”. Então, não vou passar a madrugada ouvindo ladainha. Antes do sol nascer este corpo tem que estar sendo comido pela terra, se não os homi vem atrás de mim e eu vou falar que você não quis enterrar. Ou melhor, eu mesmo enterro e fico com dinheiro sozinho, a tua parte e a minha.
COVEIRO: Eu o acuso!
ISMÊNIO: A mim, por querer trabalhar?
COVEIRO: Aquele que tem interesse em enterrar.
ISMÊNIO: Olhe bem! A alta madrugada, ou cansaço, ou algum espírito noturno deve ter lhe tirado o juízo. Está escuro, só temos esse lampião, não dá para ver nada demais no corpo da menina, ou melhor, da escrava. Veja bem, eu fui acordado a esta hora da madrugada para trazer este cadáver para a cova. Vamos abrir esta cova, depois tacamos a pretinha embaixo da terra, e deixe eu voltar para minha cama. Não compensa tamanha confusão por causa de uma escrava. Enterre, e depois volte para tua alcova. Quando acordar, não se lembrará que vagou pela madrugada. Melhor assim, não?!
COVEIRO: Eu me recuso; e acuso.
ISMÊNIO: Se recusa sem porquê, e acusa sem pra quê. Por acaso é doutor? Não é médico para examinar, nem promotor para acusar. És coveiro, coveiro para enterrar.
COVEIRO: Não acha estranho este enterro no meio da noite, com ordem para abrir um buraco para enterrar a menina perto do muro, longe das sepulturas, sem nenhuma outra alma de testemunha, além de Deus ou quem sabe o Cão?
DIABO-COXO: Você está me vendo?
ISMÊNIO (ao coveiro): Não! A gente que me mandou está numa festa. Eles mesmo o fariam, não teria problema algum. Já que é assim, cavo e enterro sozinho, mas você me paga! Um dia te enterro vivo, enquanto dorme numa dessas covas, e ninguém sentirá falta.
COVEIRO: Você não vai enterrar ela sozinho, pois ninguém vai enterrar ela esta noite.
ISMÊNIO: O que foi que você disse?! Se eu quiser enterrar essa menina cê vai fazer o quê?
COVEIRO: O que for necessário. Não vou deixar que ninguém enterre esta menina como se fosse um bicho. E também não vamos agir igual a dois assassinos querendo esconder um corpo. Vamos levar esta menina para o meio da praça e deixar que o povo veja essas marcas e exija justiça das autoridades.
ISMÊNIO: Não pense você que pode fazer o que quer só porque é preto livre… E você acha que alguém vai se importar com uma escrava? Aproveite que você é livre e está vivo, pois a qualquer momento pode perder a vida ou a liberdade. Se se importa tanto com a escrava, por que quer o corpo dela insepulto sendo comido pelos urubus?
COVEIRO: Eu me importo! E este buraco quase fora do cemitério por acaso é sepultura? E esse trabalho de coveiro a troco de migalhas acaso é vida? E ter que escolher entre dormir embaixo de um teto ou comer é liberdade?
ISMÊNIO: Para quem está embaixo da terra, não faz a menor diferença! Eu te chamei porque quero te ajudar. Com o dinheiro poderá comer e dormir embaixo de um teto. E ainda consegue comprar uma cachaça para esquecer o que acha que viu!
COVEIRO: Eu estou fadado à cova. A diferença é que durmo coberto pelas estrelas e sou acordado pelo sol, para desespero dos urubus. Depois serei coberto de terra e acordado por nosso Senhor, se ele me quiser junto dele.
ISMÊNIO: Ou pelo Cão, para arder no inferno, alma teimosa!
DIABO-COXO (ao público): Eu não teria lugar pior para levar do que este paraíso tropical cheio de escravos em que eles vivem!
COVEIRO: O inferno já é aqui! Quem fez o que fez com esta menina é pior que o Cão!
ISMÊNIO: Então deixe que Deus julgue o sujeito.
COVEIRO: Não quero ser julgado como cúmplice.
ISMÊNIO: Mas pode ser enquadrado pelo Juiz de Paz daqui como agitador, ou pior: como um haitiano, querendo matar os homens de posse.
COVEIRO: Ser tratado como assassino por não querer enterrar?! É um absurdo, eu estou acusando um assassinato!
ISMÊNIO: Justamente! Um homem de posses que não pode ser obedecido é o mesmo que um morto. É uma morte em vida! Mas pode ter certeza que ele vai te assombrar.
COVEIRO: Eu durmo em um cemitério, não tenho medo de assombração, nem alma penada. Meu medo é que a alma do assassino não experimente a pena que a lei determina.
ISMÊNIO: Você é um louco, não sabe o que fala e de quem fala. O senhor da menina também é dono da lei.
COVEIRO: Pois então vou lutar pela emancipação da lei.
ISMÊNIO: A lei está mais morta que a menina. Não queira perder a vida, justamente quando pode ganhar dinheiro. Enterre a menina junto com essas ideias tolas.
COVEIRO: Ismênio, estou decidido. Você não pode me obrigar, até porque sou mais forte que você. Não quero dinheiro de sangue, mas se é pelo dinheiro que o sangue de tua veia corre, corre daqui com teus tostões.
ISMÊNIO: Preto bastardo! Em outros tempos eu lhe partiria a cara. Eu vou, mas você há de se arrepender.
COVEIRO: O Diabo que te carregue!
Diabo-Coxo entrega o lampião para o Coveiro, pega Ismênio e o carrega para fora da cena.
COVEIRO: Pobre menina sem malícia, mas com o corpo cheio de máculas. Queria poder te chamar ingênua por tua inocência, mas não nasceu livre como a lei ordena. Talvez Ismênio tenha razão e a Lei esteja mais morta que você. Você que vaga pelo mundo dos mortos, bem que poderia me dizer se a Justiça jaz por aí. E aí não me arriscaria por ela aqui, também. Se tudo der errado, talvez eu te encontre aí. Não tenho medo de morrer. Sei que há um propósito para eu ter sonhado o que sonhei. Com teus pés de barro, vamos destruir este império de maldades sem lei. (Pega o corpo.) Vamos sair daqui, pois você precisa ser vista por todos da praça, pois a Justiça, se viva, não pesará as ações dos homens às escondidas.
Cena 2
Transição gradual da noite para o dia. Praça. Corpo deixado ao relento. Diabo-Coxo, Urubu e Corvo. Embaixo de uma árvore (salgueiro), o Coveiro descansa segurando sua pá, sentado, quieto, mas não dormindo, pois está atento ao corpo.
DIABO-COXO: Noite. Noite. E nada mais. Vejam! Um corvo dos bons tempos ancestrais. Esta ave estranha e escura. Seus olhares rituais. Corvo emigrado das trevas infernais. Dize-me, qual teu nome lá das trevas infernais. És o corvo de quem disse o poeta: o que repetia “nunca mais”?
CORVO: Já fui, mas nunca mais. Eu sou o Corvo que fez ninho sobre a estátua do Leão da Torre da rua São Bento, diante do feudal palacete de um garboso senhor que se dizia proprietário desta menina. Eu sou uma testemunha.
DIABO-COXO: E você, majestoso Urubu, glutão de pútridos banquetes, apresente-se!
URUBU: Eu sou aquele que faminto há muito tempo ronda o Coveiro, que todas as manhãs me engana, dormindo em uma cova aberta, como se fosse morto; e a todos engana com sua negra tez, parecendo escravo, mas não sendo; formalmente livre, mas não sendo. E que apesar de ser coveiro, recusa-se a enterrar. Enquanto houver contradição em tua alma, sua carne não se tornará carniça. Então todos os dias eu o acompanho, esperando que suas contradições se encerrem e eu o encerre em meu estômago.
DIABO-COXO: Como pode ver, ele está bem vivo. Pelo menos por hoje. Por que não voa para outros ares?
URUBU: Ora, você não vê? Nesta manhã ele me deixou um presente: um corpo que recusou sepultar. Muito pequeno e magro, mas um corpo.
CORVO: Esta menina não é um presente. As contradições de toda essa gente seguem viva em sua carne. Nem a terra, os vermes ou ave alguma há de devorá-la até que todos saibam o que aconteceu com ela.
URUBU: Mas não será você, ave menor, por mais que muito sabida, que irá me impedir.
O Urubu se aproxima do corpo da menina, mas o Coveiro aparta com a pá.
COVEIRO: Vá comer a carne do Cão, ave maldita!
Urubu olha para o Diabo-Coxo.
DIABO-COXO: Pode ir tirando o olho e se afastando. Nesta terra o diabo está mais vivo que nunca!
O Coveiro se senta ao lado da menina morta. Urubu voa para a árvore.
URUBU: Conte-me então, ave agoureira. O que impede que esta menina seja enterrada ou devorada?
CORVO: O corpo só poderá ser devolvido a Nanã quando a carne puder ser enterrada sem que o assassinato seja encoberto. Enterrada agora, enterram-se os crimes.
DIABO-COXO: Mas a preservação da memória está mais para historiadores, jornalistas e artistas que corvos, não?!
URUBU: Exatamente!
CORVO: Aqueles que dotados de melindrosa sensibilidade tão justamente se horrorizam quando algum escravo feroz, no auge do desespero, dominado pela loucura, lança mão de arma homicida e acomete o senhor, devem enlouquecer de dor, de pesar, depois de reclamar, com energia, a vindita legal, perante os tribunais, ouvindo o seguinte caso:
No interior de certo vistoso palacete, à rua de S. Bento, uma pessoa de elevada posição social toma-se de nobres cóleras contra uma mísera crioulinha, ingênua, filha de uma sua escrava, menor de nove anos de idade, uma Rio Branco[4].
URUBU: E o que é ser Rio Branco?
DIABO-COXO: É qualquer criança que nasceu a partir do dia 28 de setembro de 1871, dia da proclamação da Lei do Ventre Livre, ou Lei Rio Branco.
URUBU: Essa lei aí não pegou não.
DIABO-COXO: Os que fazem as leis são os primeiros a violá-las.
CORVO:
Isto nada tem de notável, a pessoa que descende de uma família considerável, e de ramo, célebre tanto pelo sangue como pelo crime, e pelo homicídio, não é muito que odeie, que deteste mesmo, uma infeliz criança que nasceu de ventre escravo; espécie de precito, descendente de grilheta.
Também não é de espantar que espanque, com ferocidade nativa, a desgraçada criança: o ferro endireita-se a malho. É bem natural que, para eficácia do castigo, e para evitar desastres de estômago, privem-na de alimentos.
É proveitoso, para exemplo de futuros ingênuos, filhos de escravas, que a criança, com o corpo todo chagado, cicatrizado, em parte, ensanguentado, fosse posta em uma arca, no quintal do suntuoso palacete, num chiqueiro com os seus irmãos porcos. É belo de ver-se esta criatura humana, cristã, purificada nas águas do batismo, ungida com os óleos santos, vivendo dia e noite com os seus irmãos cerdosos.
É suntuoso, é edificante, é bíblico, ver-se os porcos comerem, na mesma gamela, como aquela cristã de raça preta. É uma cena gasparina, digna dos Martinhos, dos Cotegipes e dos enflorados Florêncios.
É arrebatador, é admirável verem-se os porcos, os seletos irmãos do cônego Ferreira, tomados de treda inveja e quais modernos Cains atirarem-se àquela menor cristã, para judiciosamente impedirem-na de comer mais do que eles no imundo banquete.
É, porém, deplorável vê-la fugir deles, perseguida, esfomeada, sem abrigo, sem proteção divina, sem socorro humano, desesperada, meter-se em uma barrica e, ali, qual caranguejo em sua concha, ocultar-se, diante de olhos católicos, à ferocidade de incitadas bestas; ali passar horas, dias e noites, tendo por leito, por homizio, as tábuas côncavas do providencial casulo; ali receber, às ocultas, corrompidos sobejos de comida; ali viver alguns dias, como se irracional fora; e ali morrer menos cuidada do que um cão[5].
URUBU: Comer tal corpo seria comungar com um crime. Mas se o Coveiro pretende enfrentar tais bestas, não poderei violar novamente a lei de minha natureza. Se pela desobediência civil ele tiver o mesmo fim que a menina, eu me reservo o direito de lhe provar a carne antes dos vermes. Há tempos o rondo, como uma iguaria de demorada preparação.
DIABO-COXO: Comungar com um crime… Que questão interessante a se pensar.
URUBU: Tudo o que devoro é comunhão. Eu metabolizo a podridão, para que a natureza seja sempre imaculada. Não fosse eu, a podridão das carnes dos homens e dos animais se sobreporia ao perfume dos lírios do campo.
DIABO-COXO: E quem devora um dos porcos que serviram de tortura para a criança, se alimentando de seu terror, e mordiscando pedacinhos de tua carne…
CORVO: Ó não, não pronuncie em voz alta tamanho horror!
URUBU: Quem come a carne daqueles porco, se torna uma só carne com…
Diabo-Coxo faz expressão de profundo nojo.
URUBU: Só de pensar em falar eu sinto um nauseante sabor de podre saindo de minha garganta… A podridão das ações dos homens é infinitamente mais indigesta que putrefação de suas carnes.
CORVO: Se este Coveiro for esperto, vai te ver com um alerta.
DIABO-COXO: Mas o Urubu não é profeta, ave agourenta. Por falar nisto, porque não é mais aquela que repete nunca mais?
CORVO: Porque sei que não vai acabar por aqui. Este é só mais um capítulo da longa história de um povo. E das muitas crianças que como ela terão o mesmo fim.
URUBU: Enquanto houver escravidão?
CORVO: Mesmo depois, sei que não mais poderei dizer quanto ao crime desta gente…
URUBU: Dizer o quê?
DIABO-COXO: Nunca mais.
CORVO: Tendo contado tudo o que vi, já vou. Quem souber a língua dos corvos, poderá sempre contar com meu testemunho!
Corvo sai.
DIABO-COXO: E você, ficará a rodear a carcaça de alguém que ainda não morreu?
URUBU: Vou precipitar o fim deste Coveiro!
Cena 3
Urubu vestido como se fosse uma pessoa, mas ainda assim um Urubu.
URUBU (grito desesperado): O HORROR, HORROR, HORROR! HÁ UMA MENINA MORTA NA PRAÇA. QUEM É O HOMEM QUE ESTÁ A SEU LADO? É UM SUSPEITO, PODEMOS VER PELA CARA. ESTA PÁ QUE CARREGA, É UM INSTRUMENTO DE TRABALHO OU UMA ARMA? TOMEM CUIDADO COM ELE! O HORROR, HORROR, HORROR! O CHEIRO PUTREFATO ESPANTA AS CÂNDIDAS CRIANÇAS E VIRGINAIS DONZELAS DA PRAÇA. QUATROCENTÕES E QUATROCENTONAS ESTREMECEM ANTE A IGNOMÍNIA DE UM CORPO INSEPULTO DE GENTE DIFERENCIADA POLUINDO O HIGIÊNICO ESPAÇO DE CONVIVÊNCIA E RECREAÇÃO. O HORROR, HORROR, HORROR! A ECONOMIA ESTÁ EM RISCO. O VENDEDOR DE DOCES NÃO PODE MONTAR SUA BANQUINHA TEMENDO QUE OS CLIENTES ACUSASSEM GOSTO DE CADÁVER A SEUS QUITUTES. O HORROR, HORROR, HORROR! ONDE ESTÃO AS AUTORIDADES? UFA, AÍ VEM O CORAJOSO INSPETOR DE QUARTEIRÃO.
Chega o Inspetor de Quarteirão com um porrete. Ele é um homem negro tentando se parecer com um homem branco. Urubu abandona a forma humana e sai.
INSPETOR DE QUARTEIRÃO: Ouço gritos de terror nesta jurisdição. É uma revolução escrava?! Mas só vejo dois pretos em atitude suspeita. Um homem adulto e uma criança. Não permitirei que esta praça se torne um quilombo ou uma versão brasileira da ilha de São Domingos. Parados aí, pretos, levantem as mãos!
COVEIRO (levantando a pá): Eu levanto as mãos porque estou vivo. A menina está morta.
INSPETOR DE QUARTEIRÃO: Abaixe a arma!
COVEIRO: Isto não é uma arma, é uma pá. (Coveiro solta a pá). Eu sou coveiro.
Inspetor avança violentamente sobre o Coveiro, imobilizando-o com a perna sobre seu pescoço e apontando o porrete na direção do cadáver, como se este pudesse avançar sobre ele a qualquer momento. O Coveiro fala com dificuldade.
INSPETOR DE QUARTEIRÃO: Vocês são pretos fujões? São quilombolas ou haitianistas? Estão presos.
COVEIRO: Me solta! Eu sou um coveiro, eu já disse. A menina está morta.
INSPETOR DE QUARTEIRÃO: Então você matou a escrava do teu senhor?! Porque quis infringir tamanho prejuízo ao teu patrão?
COVEIRO: Eu sou livre. Eu sou livre. Por favor, me escute.
Inspetor de Quarteirão algema o Coveiro.
INSPETOR DE QUARTEIRÃO: Se um dia foi livre, não é mais. Está preso, pois alguma coisa fez, talvez assassinato.
COVEIRO: Eu não a matei. Trouxeram até mim para enterrar, e eu me recusei. Outra pessoa a matou, e eu quero denunciar o assassinato.
INSPETOR DE QUARTEIRÃO: Sei, sei. Deixe de preguiça e se levante.
COVEIRO: Então saia de cima do meu pescoço!
INSPETOR DE QUARTEIRÃO: Não me dê ordens, insolente!
COVEIRO: Eu não quis… (desmaia).
INSPETOR DE QUARTEIRÃO: Espero que não esteja morto. (Algema os pés da menina morta) Por via das dúvidas. Preciso falar com o promotor. Sua casa é aqui perto.
Cena 4
Mais afastado. Inspetor bate palma na frente de uma suntuosa casa. Diabo-Coxo atende de dentro da casa.
DIABO-COXO: Quem chama? Espero que não seja um morto de fome atrás de pão velho!
INSPETOR DE QUARTEIRÃO: Sou eu, o Inspetor de Quarteirão!
DIABO-COXO (ao público): Um morto de fome que se empanturra com pequenas tiranias. (Ao Inspetor) O que deseja?
INSPETOR DE QUARTEIRÃO: Quero falar com o promotor!
DIABO-COXO: Ainda dorme!
INSPETOR DE QUARTEIRÃO: A esta hora?! Já são nove da manhã!
DIABO-COXO: Quem você pensa que é para controlar a hora que o doutor promotor acorda?
INSPETOR DE QUARTEIRÃO: Perdão, não quis ofender!
DIABO-COXO: Saiba que o doutor promotor fez uma diligência muito importante nas bodas do senhor Juiz de Paz, que foi até alta madrugada. O senhor não era um dos seguranças, à porta? Meu amo periciou muito vinho e carne de porco que perturbaram o sono, só conseguiu dormir ao amanhecer. Deixe que ele durma, e a justiça que espere. Mas digo que o senhor esteve por aqui!
INSPETOR DE QUARTEIRÃO: Não precisa incomodá-lo. Não diga nada. Eu resolvo. Perdoe-me pela minha perturbação.
Inspetor de Quarteirão sai.
DIABO-COXO (ao público): Eu sou aquele que jamais dorme, o Grande Acusador. Esta gente não precisa de mais um sonolento promotor, embalado pelo grito daqueles que sofrem injustiças. Seus crimes e pecados chegam a meu conhecimento, noite e dia, para que eu os acuse diante de vocês, soberana plateia. Mas sejam diligentes e atentos. Não confiem a justiça à História, que alguns crimes revela, mas sem condenar ninguém à forca. Vossos olhos não enxergarão tudo sem a ajuda dos meus ouvidos atentos
Diabo-Coxo faz um gesto como se ouvisse algo distante.
Ouve-se a voz do Inspetor do Quarteirão conversando com alguém, sem que se possa ouvir o interlocutor.
INSPETOR DE QUARTEIRÃO: Você por aqui, maldito imprestável! (…) Não me venha com desculpas. Eu te dei uma ordem e você a passa para um maldito subversivo. (…) Eu estou pouco me importando com a tua dor nas costas. Agora você vai sentir dor em todo o resto. (…) Devolva, devolva tudo o que você pegou. (Som de moedas sendo violentamente jogadas) Essa é por ser tão burro! (Som de moedas sendo violentamente jogadas) Esta é por achar que poderia fugir de mim. (Som de moedas sendo violentamente jogadas) Não fugiu?! Então como eu te vejo saindo de casa com tuas malas e o dinheiro?! (…) O quê, ele te ameaçou? (…) Isso não vai ficar assim. Vou te dar uma chance de se redimir. Vai limpar essa cara imunda, ou lamba tuas feridas como um cão, mão não quero te vejam com a cara assim…
DIABO-COXO (ao público): Logo vocês saberão. (Cutucando o Coveiro). Acorde!
Cena 5
Perto da praça. A carceragem. O Coveiro algemado carrega o cadáver pela algema que está presa aos pés de barro. Inspetor de Quarteirão logo atrás. O inspetor tem o peito e os braços adornados com moedas, como se fossem de prata.
INSPETOR DE QUARTEIRÃO: Abra a jaula. Por seus atos este vagabundo quer nela fazer morada.
CARCEREIRO: Que confusão é esta, senhor inspetor de quarteirão?
COVEIRO: Ele me prendeu por… (Interrompido por um tapa do Inspetor de Quarteirão).
INSPETOR DE QUARTEIRÃO: Cale a boca, preto! Ele deve ser preso porque nunca deveria ter sido livre. Ande, abra logo a jaula!
CARCEREIRO: O promotor está ciente?
INSPETOR DE QUARTEIRÃO: Nem ciente, nem consciente. Ainda dorme, doce e ternamente.
CARCEREIRO: Esse aí, é um preto fujão?
COVEIRO: Não! (Outro tapa do Inspetor de Quarteirão).
INSPETOR DE QUARTEIRÃO: Sim, é do gênero preto. Na qualidade de preto, não é do tipo fujão, e se é, não é por mérito de fugir, mas, por sorte de nascença, nasceu fugido do trabalho, que muito lhe faria bem. Mas, se faz questão de lhe atribuir alguma qualidade, digo que é vagabundo, agitador, inimigo da sociedade!
COVEIRO: Não sei o porquê de eu ser preso. Não sou vagabundo, tenho trabalho, sou coveiro. Por que me prender, se sou inimigo de um assassino de crianças?
INSPETOR DE QUARTEIRÃO: Coveiro?! (Outro tapa no Coveiro). Só se for para enterrar a decência! Você é inimigo da sociedade, preto. Olha para você!
CARCEREIRO: Senhor inspetor, chega de palmatória! Apresente a ordem de prisão do senhor Juiz de Paz, ou informe que crime o senhor o flagrou praticando.
INSPETOR DE QUARTEIRÃO: A prova está na cara dele. Foi flagrado com uma menina morta em praça pública.
CARCEREIRO: Ele a matou?
COVEIRO: Não! (Outro tapa do Inspetor de Quarteirão).
CARCEREIRO: O que eu disse sobre tapas, Inspetor?
INSPETOR DE QUARTEIRÃO: Este preto pede pra apanhar, e como sou amigo dos pretos, faço exatamente o que ele pede.
COVEIRO: Eu não… (Outro tapa do Inspetor de Quarteirão).
CARCEREIRO: Contenha-se, Inspetor! Quero ouvir o sujeito!
INSPETOR DE QUARTEIRÃO: O senhor é carcereiro ou padre para ouvir confissão?
CARCEREIRO: Eu sou alguém que ainda tem alguma consideração pela lei, e recomendo que o senhor tenha o mesmo zelo!
INSPETOR DE QUARTEIRÃO: Eu zelo pela ordem e decência na minha jurisdição!
CARCEREIRO: Coveiro, você disse que não matou a menina, mas estava com seu corpo. Você a conhece, é aparentada do senhor, me diga o nome?
COVEIRO: Senhor, não conheci esta menina em vida, mas o cuidado dela me foi confiado por Deus depois de sua morte.
CARCEREIRO: Por acaso foi o Senhor nosso Deus quem te confiou o cadáver, Coveiro? E por que razão seria designado por Ele senão para enterrar?
COVEIRO: Em sonho eu vi uma estátua com pés de barro, e uma pedra a atingindo. E aí eu fui acordado pelo Ismênio, que me mandava enterrar o corpo… E vi os pés de barro, não em sonho, mas na realidade. Mas o quê, ou quem, é a pedra?!
INSPETOR DE QUARTEIRÃO: Veja, não sabe se blasfema ou se delira, é uma pedra no sapato!
CARCEREIRO: E quem é este Ismênio, onde ele está?
INSPETOR DE QUARTEIRÃO: Um homem de alva candura, na compleição e na moral!
COVEIRO: Ele trabalha no cemitério, veio me oferecer parte do dinheiro que recebeu para que enterrássemos a menina de madrugada, fora das sepulturas, em cova aberta perto do muro do cemitério. Mas eu não aceitei, pois vi que a menina tinha sofrido terríveis maus tratos… E o Ismênio… (Apanha ainda mais do Inspetor de Quarteirão).
INSPETOR DE QUARTEIRÃO: Chega! Maldita hora que eu te trouxe para cá! Deveria ter dado um jeito em você na praça, à vista de todos!
CARCEREIRO: Senhor Inspetor, este caso deve ser comunicado ao Juiz de Paz, imediatamente! A lei não me permite prender este homem sem fundada razão.
INSPETOR DE QUARTEIRÃO: É o fundo do poço. Que lei é essa, que deixa vagabundo solto?
CARCEREIRO: O Código Criminal do Império do Brasil, artigo 181, diz: Ordenar a prisão de qualquer pessoa, sem ter para isso competente autoridade, ou antes da culpa formada, não rendo nos casos em que a lei o permite.
Ter o Carcereiro, sem ordem escrita de competente Autoridade, algum preso incomunicável; ou tê-lo em diversa prisão da destinada pelo Juiz.
Penas – de suspensão do emprego por um mês a um ano, e de prisão por quinze dias a quatro meses; nunca porém por menos tempo, que o da prisão do ofendido, e de mais a terça parte.
INSPETOR DE QUARTEIRÃO: Essa aí eu não conheço… Mas ele também descumpriu a lei. Artigo 128: Desobedecer ao empregado público em ato do exercício de suas funções, ou não cumprir as suas ordens legais. Penas – de prisão por seis dias a dois meses.
CARCEREIRO: Ora, senhor Inspetor, e qual ordem legal ele desrespeitou?
INSPETOR DE QUARTEIRÃO: A ordem de prisão que lhe dei!
CARCEREIRO: Isto virou uma comédia farsesca! Como pode prender um homem por se recusar a ser preso? A cela não será aberta sem ordem do Juiz de Paz, e eu vou pessoalmente em seu gabinete e relatar este abuso!
O Carcereiro sai.
INSPETOR DE QUARTEIRÃO (ao Coveiro): Se pensa que vai escapar dessa, está muito enganado. Não é porque a jaula não vai ser presa que você será solto.
Inspetor de Quarteirão solta a algema de um dos pulsos do Coveiro, e prende em uma barra de ferro.
Cena 6
Luz sobre o Juiz de Paz e o Comendador que conversavam amistosamente sobre amenidades cotidianas. Diabo-Coxo está entre eles, usando uma máscara de porco. A barriga do Juiz de Paz está à mostra e tem cor de bronze. O Comendador é um homem branco, elegante e muito simpático, e seu rosto está pintado de dourado, e qualquer adereço que usar do pescoço para cima deve ser dourado.
DIABO-COXO: “Enquanto os cadáveres dos miseráveis fermentam no seio das valas e os crimes se lavam em áureas águas, folgam os assassinos, em salões festivos, e brotam sobre as sepulturas rosas purpurinas. O dinheiro é o dinheiro”[6].
COMENDADOR: E o porco que mandei?
JUIZ DE PAZ: Estava maravilhoso. Minha mulher mandou o escravo assar na brasa…
COMENDADOR: Assar o porco ou escravo?
JUIZ DE PAZ: O porco, mas poderia ser o escravo. O senhor é cheio de gracejos!
COMENDADOR: Coração alegre; mente sã!
JUIZ DE PAZ: É verdade! Enfim, o porco, foi a estrela das bodas…
COMENDADOR: Ouro, prata, cobre ou aço?
JUIZ DE PAZ: Barro, seu Comendador. Não somos tão velhos.
COMENDADOR: Tua senhora é a própria expressão da jovialidade, mas o senhor, de experiente sabedoria!
JUIZ DE PAZ: Ora, assim o senhor me deixa sem jeito…Mas, voltando ao assunto, a carne do porco estava maravilhosa. A melhor que já comi, E posso garantir que os convidados saíram igualmente impressionados.
COMENDADOR: Ora, muito me agrada saber disso. Esse porco faz parte da criação que tenho em minha casa. Eu pessoalmente garanto que eles tenham a maior qualidade.
JUIZ DE PAZ: Então me diga, Comendador, como faz para ter porcos com uma carne tão macia e saborosa?
COMENDADOR: Ah, meu caro Juiz, isso é segredo…
JUIZ DE PAZ: Ah, por favor, estamos entre amigos!
COMENDADOR: Certo, vou lhe confidenciar na condição de amigo.
JUIZ DE PAZ: Por favor… Sigilo profissional! E de amigo.
COMENDADOR: Pois bem, no sigilo. O segredo para que o porco tenha a carne suculenta e gostosa, é aplicar a mesma filosofia que aplico à minha vida: fazer com que todos à minha volta sejam o mais felizes possível.
JUIZ DE PAZ: O porco me fez muito feliz, posso garantir!
COMENDADOR: Naturalmente, doutor.
JUIZ DE PAZ: Continue…
COMENDADOR: Eu os trato quase como se fossem da família. O quintal onde eles ficam é grande e espaçoso. Eles têm a liberdade de conviver entre as crianças, filhas das escravas, claro, e comer comida da melhor qualidade – para um porco, ou para um escravo. E é bonito de se ver, crianças e porquinhos crescendo juntos, na maior harmonia.
JUIZ DE PAZ: E você não tem dó de matá-los?
COMENDADOR: Porcos ou crianças?
JUIZ DE PAZ: Os porcos, claro!
COMENDADOR: Ah, os porcos… Tenho certa piedade, mas é o destino deles. Nasceram para o abate. Consola-me saber que apenas cumpro os desígnios de Deus.
DIABO-COXO: Amém!
Batida na porta.
JUIZ DE PAZ: Quem é?
CARCEREIRO: Sou eu, o Carcereiro.
JUIZ DE PAZ (ao Comendador): Eu disse para ele me interromper somente se for urgente. (Ao Carcereiro). É urgente?
CARCEREIRO: Não viria se não fosse, doutor Juiz de Paz!
JUIZ DE PAZ: Entre!
Carcereiro entra.
CARCEREIRO: Bom dia, doutor Juiz de Paz e senhor Comendador. Perdoe o incômodo.
COMENDADOR: Bom dia.
JUIZ DE PAZ: Vá direto ao assunto, homem!
CARCEREIRO: Sim, senhor. Venho relatar uma provável tentativa de prisão ilegal.
JUIZ DE PAZ: De algum barão, ou outro homem de importância?
CARCEREIRO: Não!
COMENDADOR: Ainda bem, sinal que a justiça corre solta neste país.
JUIZ DE PAZ: Então de quem? Quem é tão importante para que atrapalhe minha audiência com o senhor Comendador?
CARCEREIRO: É um coveiro, doutor! Foi preso pelo Inspetor de Quarteirão.
COMENDADOR: O senhor Inspetor de Quarteirão é um homem muito sério. Se o prendeu, algum motivo tem, não é doutor?!
JUIZ DE PAZ: Naturalmente, comendador. O que ele disse está dito. Por que o senhor não o prendeu, Carcereiro? Está prevaricando? O promotor está ciente?
CARCEREIRO: Nem ciente, nem consciente. Ainda dorme, doce e ternamente. Quanto a mim, de modo algum eu prevarico, douto Comendador e senhor Juiz… digo, senhor Comendador e douto Juiz.
Quando perguntei a causa da prisão, o inspetor me disse que foi por desobediência.
JUIZ DE PAZ: Desobediência a quê?
CARCEREIRO: À ordem de prisão.
JUIZ DE PAZ: E…?
CARCEREIRO: Tem mais, doutor. O coveiro foi encontrado junto de uma menina morta.
JUIZ DE PAZ: Por que não me disse logo? Você sabe se há suspeita de assassinato…
COMENDADOR (interrompendo, desconfortável): Diga-me uma coisa: você viu o corpo da escrava? Digo, da menina? Se ela estava como coveiro é para que fosse enterrada, não?!
CARCEREIRO: Sim, sim, era uma pretinha. Não sei dizer se era escrava.
COMENDADOR (impaciente): Naturalmente era!
CARCEREIRO: Uma escrava, senhor Comendador. Mas não vi seu corpo, que estava coberto, apenas com os pés sujos de barro para fora. Quanto ao enterro, o coveiro tem uma conversa um tanto delirante, sobre sonhos, estátua, pedra, Deus… Mas algo me chamou atenção: ele teria visto sinais de sevícias.
JUIZ DE PAZ: Sevícias?
COMENDADOR: Ora, doutor, o pobre coitado deve ter se chocado com marcas no corpo da criança, provindas de brincadeiras, já que as crianças caem muito, ou corretivos, já que derrubam coisas quando caem.
JUIZ DE PAZ: Naturalmente. Se o senhor diz, tendo em conta a vasta experiência que tem, devo considerar. Mas o meu dever me obriga a olhar o corpo e dar um encaminhamento legal para a situação.
COMENDADOR: Não queira afetar o teu apetite vendo uma carne tão indigesta antes do almoço…
Inspetor de Quarteirão entra bruscamente, puxando Ismênio pelo braço. Ismênio tem marcas de agressão, mas está limpo, como se tivesse sido jogado num lava a jato. Ismênio não tem mais moedas nas pernas.
INSPETOR DE QUARTEIRÃO: Senhor Inspetor, meus cumprimentos. Seu Juiz, bom dia. Eu suponho que este prevaricador que cuida da carceragem esteja falando do caso do coveiro. Enquanto ele estava no lenga-lenga eu resolvi o caso. Encontrei aqui uma testemunha que conhece o coveiro. Ele decidiu vir testemunhar por livre expressão de vontade, pelo bem do cumprimento da justiça. Fale, Ismênio.
ISMÊNIO (como se lesse um texto): Bom dia, senhores. Eu venho aqui de livre e expressa vontade dizer que o Coveiro se recusou a enterrar a escravinha que, pelo que me contaram, morreu de causas naturais, de doença na barriga. E digo que quando eu o alertei sobre a importância sanitária do enterro, a fim de evitar a proliferação de moléstia, fui ameaçado por ele. O motivo da recusa é uso do corpo para ritual macabro, feitiçaria negra. O relato é verdade, e eu o confirmo diante de Deus.
COMENDADOR: Virgem Maria, que relato perturbador.
JUIZ DE PAZ: Ismênio, me permita fazer um sucinto interrogatório para esclarecer a situação.
O Inspetor de Quarteirão olha incisivamente para o Ismênio, antes dele dar cada resposta.
ISMÊNIO: Pois não, doutor.
JUIZ DE PAZ: Você sabe do quê a menina morreu?
ISMÊNIO: Pelo que me contaram, morreu de causas naturais, de doença na barriga
JUIZ DE PAZ: E porque mandou enterrar a menina?
ISMÊNIO: Por conta da importância sanitária do enterro a fim de evitar a proliferação de moléstias.
JUIZ DE PAZ: E o que o coveiro fez?
ISMÊNIO: Ele me ameaçou.
JUIZ DE PAZ: É verdade o que o senhor diz?
ISMÊNIO: O relato é verdade, e eu o confirmo diante de Deus.
COMENDADOR: Bom, se ele confirma perante Deus, creio que o caso está resolvido.
JUIZ DE PAZ: Sim, determine-se o enterro da escrava e a prisão do coveiro por ameaça e crime de desobediência. Está certo, Inspetor?
INSPETOR DE QUARTEIRÃO: Está certo, doutor. Se me permite, sugiro que responda pelo crime do art. 280.
DIABO-COXO: Código Criminal do Império do Brasil. Art. 280: Praticar qualquer ação, que na opinião pública seja considerada como evidentemente ofensiva da moral, e bons costumes; sendo em lugar público. Penas – de prisão por dez a quarenta dias; e de multa correspondente à metade do tempo.
JUIZ DE PAZ: Muito bem lembrado Inspetor, é realmente demasiado ofensivo à moral deixar um cadáver em praça pública, à vista das senhoras. Então estão todos dispensados. Exceto o senhor, Comendador. Tenho confissões quentíssimas que são de teu interesse,.
Todos estão a caminho da saída, quando são interrompidos pelo Carcereiro.
CARCEREIRO: Um instante doutor. Com todo respeito.
Todos param.
INSPETOR DE QUARTEIRÃO/JUIZ DE PAZ: O que é agora?
CARCEREIRO: Não seria o caso de mandar o corpo da menina para a perícia, para descartar a questão de assassinato?
INSPETOR DE QUARTEIRÃO: Isto é um absurdo, nós temos testemunha que testemunhou alguém dizer que a menina morreu de causas naturais.
CARCEREIRO: Não entendo o teu nervosismo, Inspetor.
INSPETOR DE QUARTEIRÃO: Se fosse o senhor não iria querer entender o meu nervosismo. Para o teu bem.
COMENDADOR: Calma, calma, senhores. Eu entendo o excesso de zelo do carcereiro. São tempos de crise e todo mundo quer se apegar ao emprego que ainda tem. Nem todos são como o coveiro que se nega a cumprir seu ofício. Entretanto, é apenas um excesso escusável de zelo. Caro carcereiro, fizeste um bom e zeloso trabalho. Vá em paz.
CARCEREIRO: Senhor juiz…
JUIZ DE PAZ: Vocês me deixam confusos. Concordo com o Inspetor e com o senhor Comendador. E senti muita verdade nas palavras do Ismênio. Mas, que que custa mandar o corpo para os legistas, antes de enterrar, né não?
Sem que o Juiz de Paz perceba, o Comendador faz um gesto brusco em sua direção, mas é contido discretamente pelo Inspetor de Quarteirão.
COMENDADOR: Claro, o senhor é o Juiz de Paz. Você que manda. Os legistas são conhecidos meus, são homens muito sérios, e certamente vão apontar se houver qualquer problema.
JUIZ DE PAZ: Ótimo. Providenciem a entrega do corpo e depois, finalmente, o enterro. Enquanto isso, o coveiro fica na carceragem. Dispensado todos. Comendador, vamos ao nosso assunto?
COMENDADOR: Sinto muito, mas devo voltar aos meus afazeres. Com licença.
Cena 7
DIABO-COXO: Todos acham que conhecem demais sobre os pretos. Mas vou chamar dois verdadeiros especialistas, doutores, experts no assunto. Pessoas estudadas. Mediciners. Médicos na empresa “medicina”. Medicina por amor. Seis anos de estudos intensos na faculdade de medicina. Não sei quantos anos de residência médica. Especialistas nas ciências necroscópicas. Membros das melhores famílias. Pessoas honestas e de bem. BRA-SI-LEI-ROS! E eles, somente eles vão determinar a causa da morte da menina dos pés de barro. Com honestidade e ciência. E para provar a seriedade da coisa, vão jurar com a mão sobre a Constituição. Venham, venham, nobres doutores.
Os legistas devem ser representados por pessoas brancas ou representar pessoas brancas. O Diabo-Coxo leva à cena uma enorme constituição, cuja capa seja a mesma que Ulysses Guimarães usou em seu discurso de encerramento da Constituinte. Todas as perguntas devem ser respondidas com a palavra “juro”.
DIABO-COXO (em tom solene):
Doutores, botem a mão sobre a Constituição e respondam às minhas perguntas apenas com a verdade.
Você jura que é brasileiro nato, sem uma gota de sangue negro, indígena ou cubano?
Você jura não tomar nenhuma atitude que prejudique seus semelhantes? (Neste momento, os Diabo-Coxo deverá fazer gestos que dê a entender que se trate da semelhança de classe e raça).
Você jura não se deixar influenciar ou intimidar por qualquer ideologia que venha a se sobrepor à sua razão, tais como comunismo, socialismo, haitianismo, gayzismo, feminismo, globalismo, vitimismo negro, cultura do cancelamento, lacração, mimimi ou ideologia de gênero?
Você jura zelar pela paz social, estabilidade das instituições deste país, não produzindo nenhum laudo que possa ser usado para criar qualquer tipo de contestação política ou tumulto social?
Promete seguir à risca o juramento de HIPÓCRITA?
(Para a plateia) Muito bem, vimos que são dois doutores muito comprometidos com a verdade. Acho que eles serão úteis para determinar a causa mortis desta infeliz criança. Ou reforçar minha tese de acusação contra esta gente.
(Para os médicos, apresentando o corpo) Por favor, doutores. Aqui está o corpo. Vocês devem apontar quais foram as causas da morte dela, e depois, apresentar para a sociedade o que ceifou a vida desta pobre criaturinha.
Diabo-Coxo sai.
LEGISTA 1 (olhando com nojo): Bom, vamos ver o que temos aqui.
LEGISTA 2: Quer que eu leia a ficha?
LEGISTA 1: Sim, sim. Por favor.
LEGISTA 2: Corpo sem identificação. Idade provável: no máximo 9 anos. Sexo feminino. Crioula. Escrava. Não consta o nome de seu senhor, mas consta que estava alocada num palacete localizado na Rua São Bento, São Paulo. Se for onde estou pensando que é, é de um sujeito muito boa-praça, garboso e galante. Enfim… Data da morte: novembro de 1880.
LEGISTA 1: Essas pestinhas, preferem morrer a trabalhar! E tem gente por aí que apoia a vadiagem infantil.
LEGISTA 2: Não é? Esses dias eu estava conversando com um sujeito, que não é médico, mas entende muito de medicina, e a gente estava falando sobre isso mesmo. E ele falou uma coisa que me fez pensar: “Deixa o moleque trabalhar. Eu trabalhei, aprendi a dirigir com 12 anos. Molecada quer trabalhar, trabalha. Hoje, se está na Cracolândia, ninguém faz nada com o moleque”. Eu tenho que concordar.
LEGISTA 1: Mas é isso aí mesmo. Olha essas aqui, poderiam estar trabalhando uma hora dessas. Mas está nos dando trabalho.
LEGISTA 2: Bom, vamos ver o que aconteceu.
LEGISTA 1: Mas vamos abrir o corpo?
LEGISTA 2: Ah, por dentro não deve ser nada agradável de se olhar.
LEGISTA 1: Os ossos são tão evidentes, que talvez nem seja preciso. Olhar por fora é como olhar por dentro.
LEGISTA 2: Concordo. Vamos dar uma boa olhada, mas sem revirar suas vísceras, para que isso não revire mais o nosso estômago.
Seus gestos devem representar um exame minucioso do corpo, mas sem nunca mostrá-lo ao público.
LEGISTA 1: Essa aqui devia ser bem rebelde. Talvez do tipo haitianista, ou que se junta com gente de quilombo.
LEGISTA 2: Pois é, deve ter obrigado seu senhor a aplicar um corretivo nela.
LEGISTA 1: Pois é, mas não viveu para aprender a lição. Espero que outro preto tenha aprendido com o exemplo.
LEGISTA 2: É, mas se a gente colocar isso no laudo da autópsia pode dar uma merda grande para o dono.
LEGISTA 1: O patrão certamente ficará bem melindrado.
LEGISTA 2: Nem me fale… Vamos olhar com mais atenção para não colocar nada errado.
LEGISTA 1:Não disseram que um tal do Ismênio falou sobre um sujeito que disse que falaram para ele a causa da morte?
LEGISTA 2: Algo sobre causas naturais, problemas de barriga, quem sabe uma lesão interna.
LEGISTA 1: Prudente, nobre colega. Depois daquele porco que comemos nas bodas do doutor, fica claro o estrago que uma má digestão pode causar.
Repetem os gestos, por um pouco mais de tempo.
LEGISTA 1: Certamente esta aqui morreu de gastrite. As úlceras espalhadas pela periferia do cadáver atestam tal enfermidade.
LEGISTA 2: Uma gastrorragia-vergalhosa.
LEGISTA 1: Muito bem, nobre colega. Acho que agora ela poderá ser enterrada.
LEGISTA 2: Vamos chamar aquele diabo, entregar o documento e dar o fora daqui.
LEGISTA 1: É melhor. Sinto uma energia estranha aqui, como se estivesse sendo julgado. Não estou acostumado com esse tipo de sensação.
LEGISTA 2: Sim, estou até arrepiado, veja. Vamos fazer o seguinte: deixamos o atestado de óbito aqui na mesa e vamos embora.
LEGISTA 1: Ótimo. Tem caneta para assinar?
LEGISTA 2: Não, não tenho.
LEGISTA 1: Bom, acho que ninguém vai se importar. É uma mera formalidade. Vamos.
LEGISTA 2: Vamos, detesto este lugar. Vamos para algum teatro de qualidade, que nos faça esquecer essa negatividade toda que a gente viu aqui.
LEGISTA 1: Boa. Um velho me deu uma revista com peças grátis. Vamos ver o que é que tem de bom lá. Talvez uma boa comédia com atrizes bonitas.
Legistas saem. Diabo-Coxo lê o atestado.
DIABO-COXO: “Os médicos, os fidelíssimos auxiliares científicos da polícia, olharam para o cadáver como uma donzela delicada para um copo de jalapa; viram-no por fora; e, parece que enojados, escreveram uma indigesta dissertação, repleta de insinuações malévolas, embrulhadas em retórica cediça e concluíram apelando a opinião de terceiro, não presente, que a morte resultara de lesão interna!”[7]
Cena 8
Carceragem. Coveiro na cela, Carcereiro do lado de fora. Diabo-Coxo tem livre trânsito, não podendo ser contido por grades.
CARCEREIRO: O resultado do exame saiu. Deu que ela morreu de problemas gástricos, exatamente como o tal Ismênio havia dito. Tua rebeldia não serviu para nada, pelo visto. A menina está enterrada. Você está aqui, respondendo por três crimes, e ainda nem é hora do almoço.
DIABO-COXO: “A prova oral, que poderá encerrar perigos, será inutilizada pela deficiência dos exames”[8].
COVEIRO: E você acredita nos médicos?
CARCEREIRO: Eles aprenderam medicina; eu só prendo pessoas.
COVEIRO: Eu sei que você viu a menina, e sabe que o que eles escreveram não é verdade. As marcas do sofrimento dela estavam visíveis, bastava olhar. Onde já se viu problemas gástricos deixarem no corpo vergões semelhantes a chicotadas?!
CARCEREIRO: O que me importa acreditar em você, ou mesmo no que meus olhos viram? A verdade pode até ser filha do tempo, mas nestas bandas foi raptada pelas autoridades. Olha, eu tenho família, e não posso terminar assim como você. Eu tentei te ajudar, você viu. Mas no fim das contas, percebemos que o escravo só conhece a lei se for como réu, nunca como vítima. Mesmo que seja uma criança. Nós, que somos livres, estamos sempre tentando provar que não somos escravos, mesmo que façamos o mesmo ofício ou que tenhamos a mesma cor. Eu não quero acabar assim como você, tendo uma liberdade que só serve para ser perdida.
COVEIRO: Há uma mãe que chora por esta menina, igual a muitas outras mães que enterram seus filhos, invertendo a ordem natural da vida. Aí está uma lei que não poderia ser quebrada de jeito nenhum. E essa mãe, que não vimos, se importa. E ela não está presa por lutar pela justiça porque já está presa pela escravidão. Deus sabe o que ela está passando na propriedade de seu senhor. Talvez ela esteja planejando matá-lo, e se estiver, espero que consiga, e eu tenha a sorte de encontrá-la nesta carceragem, se ela tiver a sorte de escapar com vida e o azar de não conseguir escapar das autoridades. Então, meu caro carcereiro, não importa o quão rebelde nós sejamos, e quantas dores nos inflijam, jamais vão conseguir fazer sofrer como sofre a mãe desta menina. E isto me dá coragem.
CARCEREIRO: Corajoso ou louco, eu não sei. Mas eu tenho uma dúvida. Você realmente acredita que cumpre um dever divino?
COVEIRO: Se é divino ou não, eu não sei. Mas uma coisa é certa: eu tive um sonho. E quando vi, acordado, os mesmos pés que vi dormindo, eu tive certeza que algum significado tinha. Bem, não sei o que acontecerá agora. Dias difíceis virão. Mas não me importa. Eu não temo homem algum.
CARCEREIRO: Você fala como um profeta, ou um agoureiro. Mas tua coragem me inspira. Eu conheço uma pessoa, que conhece uma pessoa, que pode te ajudar.
O Carcereiro sai.
DIABO-COXO: O profeta se diferencia dos adivinhos por que não se limita a predizer o futuro, mas alerta para as terríveis consequências que a sociedade enfrentará pela violação das leis. A legalidade do Império do Brasil reinava nas bases escravistas e ilegais da escrevidão. A exceção é a Lei. O Coveiro é profeta? Ora, ele não conhece os códigos, mas é capaz de ver a justiça sendo violada, e aponta para o futuro que é o vosso presente. Um império em ruínas.
O Corvo entra e fica de frente à cela, olhando para o Coveiro.
COVEIRO: Olá, meu amigo corvo. Será que foi você que eu vi voando com o urubu que há dias me rodeia? Eu sei que você é uma ave esperta, e pode voar para longe daqui. Quanto a mim, não sei se ficarei aqui para sempre ou serei comido por teu colega urubu. Então eu vou te contar um negócio, que não sei se poderei contar para mais alguém. Tenho certeza que vai entender. Eu vi uma grande estátua de ouro, prata, bronze e ferro caindo. Ela foi atingida em seus pés de barro. Mas agora eu sei o que acontece, depois. Seus preciosos metais, caídos por terra, serão repartidos entre os filhos daqueles que a erigiram, garantindo-lhes muitas riquezas. Os pés de barro serão dissolvidos em lágrimas, sangue e suor, e moldarão os descendentes dos escravos de senhores que cultuavam a poderosa estátua. Os filhos não serão mais escravos, mas deverão continuar lutando pela liberdade, garantindo que a estátua nunca seja erguida novamente. Eu sei que ainda há muito sofrimento pela frente, que os metais precisam ser transformados em pó, e misturados ao barro, mas este império de escravos está para ruir. Voa ave, espalha no vento o que eu te disse,
O Diabo-Coxo vai para junto do Corvo.
DIABO-COXO: Meu sábio e agourento corvo. Fico feliz que tenha voltado para este derradeiro momento. Queria que todos os ouvidos pudessem compreender o teu testemunho. Empreste-me em um abraço a tuas asas para me lembrar dos meus tempos angelicais.
CORVO: Diabólico narrador, meu testemunho está a serviço de tua acusação, que denuncia os crimes esquecidos. Tome minhas asas, para que a coragem do Coveiro contagie os ventos e inspire pulmões e mentes, para que todos tenham fôlego da justiça.
O Corvo fica atrás do Diabo-Coxo, fazendo parecer que este tem asas.
DIABO-COXO (virando-se de costas para o público): Como vocês já sabem, sou também um anjo. Meu rosto está dirigido para o passado. Eu vejo uma catástrofe única. Vocês assistem a uma peça, com uma cadeia de ações. Eu vejo uma catástrofe; ruína sobre ruína. Eu acuso; eu narro, eu espalho a ruína sobre os vossos pés. Eu gostaria de acordar a menina morta. Eu gostaria de juntar os fragmentos da estátua que ruiu e fazer tudo melhorado. (Virando-se ao público) O olhar de vocês é uma grande tempestade. É a tempestade cujo vento tem força para lançar sobre a imperial estátua a grande pedra.
Ao fundo se ouve uma conversa entre o Carcereiro e um Advogado, que não deverá aparecer.
O Coveiro fica de prontidão nas grades.
ADVOGADO: O promotor está ciente dessas violações?
CARCEREIRO: Quando perguntei, disseram que nem ciente, nem consciente. Ainda dormia, doce e ternamente. Mas soube que já acordou, e está cumprindo diligências contra uma escrava que tentou matar seu senhor.
Advogado aparece nas sombras, sem que seu rosto seja visto.
ADVOGADO: “Que durma em paz a infeliz ingênua, cujas carnes, em vida, foram disputadas pelo azorrague e pelos porcos esfomeados; e agora, na sepultura, pelos vermes, e não perturbe a paz dos ricos, que têm por si a ciência e criaram os tribunais”. Eu sou seu advogado, senhor. Meu nome é Luiz Gama.
FIM.
[1] Adaptação dos versos 1 a 12 d’A Divina Comédia – Inferno, Canto IV.
[2] A Divina Comédia – Inferno, Canto IV, 13.
[3] Luiz Gama, Obras Completas – Liberdade, p. 249.
[4] Luiz Gama, Obras Completas – Liberdade.
[5] Luiz Gama, idem.
[6] Luiz Gama, idem, p. 244.
[7] Luiz Gama, idem, p. 245.
[8] Luiz Gama, idem.
[9] Luiz Gama, idem, p. 246.
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