Dramaturgias do Tempo

Valência

e o caráter dos átomos indomáveis

Examina-me Senhor, e prova-me; esquadrinha os meus rins e o meu coração.

Salmos 26.02

Onde adquirimos nós essa ideia ridícula e absurda de que somos tão poderosos, tão preciosos, tão necessários para a existência dos demais?

Phillip Roth

O princípio da diplomacia é dar e receber. Dar um e receber dez.
Mark Twain 

A Matéria Título 

Na química, valência é um número que indica a capacidade que um átomo de um elemento tem de se combinar com outros átomos, capacidade essa que é medida pelo número de elétrons que um átomo pode dar, receber, ou compartilhar de forma a constituir uma ligação química.

Na geografia, Valência é a terceira cidade mais populosa da Espanha, ficando atrás apenas de Madri e Barcelona, embora Barcelona não goste de pertencer à Espanha e tenha sido o único lugar do mundo onde a experiência anarquista foi verdadeiramente possível. Mas não estamos falando de Barcelona. 

Na linguística, valência é o número de argumentos com que o verbo se pode combinar. É a capacidade das palavras estabelecerem, com base em seu significado léxico, determinadas relações com outras palavras.

No teatro, Valência é uma peça para dois atores, ou não, que podem narrar tudo o que está acontecendo, ou não. Sobretudo, ou sobre nada, Valência é um jogo que pode ser performado em qualquer lugar, por quaisquer pessoas, inclusive no bairro de Turu, em São Luís do Maranhão, onde existe uma rua chamada Valência. Lá, no número 253, vive uma pessoa que ainda não sabemos quem é. 

Prólogo: Combustão Espontânea

Uma foto. Dois meninos pré-púberes usam jalecos em um laboratório escolar. Eles estão abraçados, ostentam medalhas e parecem felizes. Ao longe, uma bandeira nacional está hasteada e se move como uma biruta desgovernada pelo vento. 

Patrick: Essa é a história de uma amizade que por causa de uma sequência de acontecimentos raros e inevitáveis,

Juno: Ou não tão raros, e ainda assim, inevitáveis,

Patrick: Se deu da seguinte maneira:

Juno (corrigindo): Das seguintes maneiras:

Patrick: Um dos amigos morre, e não sou eu.

Juno: Um dos amigos morre, e não sou eu.

Patrick: Ou os dois morrem e esses dois somos nós.

Juno: Ou ninguém morre e nada acontece.

Patrick: Nada.

Juno: Absolutamente nada.

Patrick: O nada é bem mais que uma simples ausência.

Juno: O nada, na verdade, é muita coisa e compõe a maior parte do nosso corpo e é tão poderoso que pode destruir buracos negros.

Patrick: O nada é o começo e o fim do Universo.

Juno: O destino de noventa e nove ponto nove por cento de todos os organismos vivos é ser reduzido a nada.

Patrick: Nada.

Juno: Absolutamente nada.

De repente, uma explosão. A foto sofre uma combustão e pega fogo. Pegar fogo, muitas vezes, é o melhor que pode nos acontecer. 

O Berço da Civilização

Tudo começa numa janela porque a janela é um bom lugar para começar. Da janela enxergamos outras vidas, vidas que não são as nossas, vidas que admiramos sem nenhuma esperança. Patrick está na janela da sala. É dia. Em algum jardim perto dali, crianças correm segurando objetos pontiagudos e só não se cegam ou morrem porque milagres acontecem quando crianças reunidas correm de olhos fechados. A campainha toca. Patrick abre a porta porque tem que abrir a porta. É um palhaço. Patrick não gosta do que vê pois Patrick não gosta de palhaços, mas, estranhamente, o palhaço parece gostar de Patrick.

Palhaço: Surpresa!

Patrick reconhece aquela voz. O palhaço tira a máscara se tiver usando uma máscara. Ou o nariz, se tiver usando um nariz. É Juno. Tem um pacote nas mãos. 

Juno: Cadê todo mundo? Eu cheguei cedo pro chá de bebê?

Patrick: Foi ontem.

Juno: (incrédulo) Como?

Patrick: O chá de bebê foi ontem.

Juno (estupefato): Não! Mas não era no dia 15?

Patrick: Ontem foi dia 15.

Juno: De abril?

Patrick: Não, de maio.

Juno: Meu deus, onde eu estou com a cabeça?

Na sala, restos de um chá de bebê. Um berço de madeira clama para ser montado, mas é ignorado. Juno atravessa a sala sem pedir licença. Deixa o pacote em cima da mesa. Também, sem nenhuma cerimônia, abre a geladeira, pega água e se serve num copo. Se sente em casa. Incrédulo, Patrick o segue com o olhar. 

Juno: Eu perdi a noção do tempo. Quando eu vi eu já não era uma criança e tinha que cuidar do bar, e pagar as contas, e colocar o lixo para fora e a roupa para dentro, eu não sei, me confundi com as datas, eu deveria ter comprado uma agenda, mas eu esqueci. Esqueci de tudo. Eu não sei o que está acontecendo comigo, sabe, eu ando com uma sensação estranha. Me sinto gasto. Você não?

Patrick: Estou enjoado.

Juno: Esse país adoece qualquer um. Você viu o que eles estão tentando fazer agora?

Patrick: Não tenho visto as notícias, tô pesquisando sobre parto humanizado.

Juno: Eles querem acabar com tudo e estão conseguindo. Quanto você está pagando na conta de luz?

Patrick: Catarina quer parir nessa sala, dentro de uma banheira. Depois ela quer enquadrar a placenta e pendurar na parede. Não sei se estou preparado.

Juno se levanta, pega o pacote em cima da mesa e dá para Patrick. 

Juno: Trouxe um presente pra Rebeca.

Patrick: Quem?

Juno: O nome da sua filha não é Rebeca?

Patrick: Não.

Juno: E quem é Rebeca?

Patrick: Não faço a mínima ideia. Era Sofia. Descobrimos que é um menino. Apareceu um pênis de repente.

Juno: Você parece decepcionado.

Patrick: Estou tentando disfarçar.

Juno: Não fica assim. Meninos são legais.

Patrick: Em que lugar do mundo?

Patrick começa a abrir o pacote. Juno fica na expectativa. Patrick é meticuloso, não rasga o papel. Juno fica impaciente e rasga por ele. 

Juno: Pronto!

Patrick: Armas, Juno?

Juno: Eu não queria ser previsível. São pistolas de água.

Patrick: Pistolas são o quê mesmo?

Juno: Não, não, você está entendendo errado, isso não é um brinquedo violento, é inofensivo. Foi feito para brincar na piscina.

Patrick: Eu não tenho piscina.

Juno: Na banheira.

Patrick: Não gosto de banheira, abaixa a minha pressão.

Juno: Mas deveria ter, com uma casa desse tamanho. Que raios de funcionário público que ganha acima do teto é você?

Patrick: Fala baixo, a Catarina está dormindo.

Juno: Como ela tá?

Patrick: Insuportável.

Juno: E você?

Patrick: Apavorado.

Juno: Não se preocupe, você vai ser um bom pai. Você tem instinto. Desculpe pelo atraso.

Patrick: Você não se atrasou, você não veio, é diferente. Larga isso e me ajuda a montar o berço.

Se aproximam das peças do berço. Patrick pega o manual. 

Juno: E como o menino vai se chamar?

Patrick: Leonel.

Juno: Não é um bom nome.

Patrick: Isso é a sua opinião.

Juno: Sim, sou seu amigo, é isso que eu posso te dar, minha opinião. Por que não coloca, sei lá, Murilo?

Patrick: Era o nome do seu cachorro!

Juno: Você adorava o Murilo.

Patrick: Ele babava muito.

Juno: E o que você acha que um bebê faz?

Patrick: Quando você tiver o seu filho, você põe o nome que você quiser.

Juno: O Edgar quer. Mas eu não. Acho uma insanidade colocar uma criança no mundo.

Patrick: Eu também acho, mas agora eu não posso voltar atrás. Tá fazendo errado, é ao contrário.

Juno: Quem disse?

Patrick: O manual. Tá tudo no manual. Custa ler o manual? Que mania de não seguir o manual!

Juno: Ok, ok, me dá isso daqui! Por você eu sigo o manual.

Juno e Patrick começam a montar o berço. Os dois seguem o manual. 

Juno: Uau! Coisa boa, madeira maciça. Quem deu?

Patrick: Meu cunhado.

Juno: Ah…

Patrick: Ah?

Juno: Ah…

Patrick: Que “ah” foi esse?

Juno: Ah…

Patrick: Para com isso. Você não gosta de ninguém.

Juno: E você gosta de todo mundo. Sabe o Josias? O porteiro do meu prédio?

Patrick: Eu gosto do Josias.

Juno: Matou a faxineira e colocou ela dentro da caixa d’água para esconder o corpo.

Patrick: Ele parecia tão… inofensivo.

Juno: Pois é. Você acha que conhece uma pessoa, mas a verdade é que uma pessoa só se revela quando está sob forte emoção.

Patrick: Catarina quer que eu corte o cordão umbilical.

Eu tenho medo de desmaiar na hora do parto.

Juno: É só fechar os olhos.

Patrick: É meu filho, não posso fechar os olhos.

Juno: Você acha que eu estou muito velho pra entrar para o Greenpeace?

Patrick: Eu acho que é mais fácil as baleias salvarem a gente.

Patrick e Juno continuam trabalhando em silêncio. Até que Juno ataca. 

Juno: Já decidiram quem vai ser o padrinho do moleque?

Eu gostaria de me candidatar.

Patrick: Você não vai querer essa responsabilidade, Juno. Você nem gosta de criança.

Juno: Mas dele eu vou gostar. Quer ouvir minhas propostas? Porque eu tenho muitas propostas para o futuro desse menino. Ele pode mudar as coisas por aqui.

Patrick: Eu não quero esse fardo para o meu filho.

Juno: Não é um fardo, é uma oportunidade.

Patrick: Nós vamos embora. Não quero viver mais nesse país.

Juno: Vai virar cidadão de segunda classe em outro lugar?

Patrick: Eu já sou cidadão de segunda classe aqui mesmo, prefiro viver em paz.

Juno: Você não pode me deixar aqui sozinho.

Patrick: Tem duzentas milhões de pessoas nesse território.

Juno: Eu quero conviver com o Murilo.

Patrick: Leonel.

Juno: Você está se deixando influenciar pelo seu cunhado. Já perguntou para se ele é a favor da pena de morte?

Patrick: Ele é médico.

Juno: E daí? Porque é médico não pode ser a favor da pena de morte?

Patrick: Seria muito contraditório.

Juno: Por quê?

Patrick: Precisa explicar? O Elias é livre-docente.

Juno: Livre ele não é. Em quem ele votou?

Patrick: Não sei.

Juno: Como não sabe? Vocês não conversam sobre isso?

Patrick: Não.

Juno: E conversam sobre o que, então?

Patrick: Sobre a vida.

Juno: A vida é uma coisa muito genérica. Seja mais específico. Em quem ele votou?

Patrick: O voto é secreto.

Juno: Em quem você votou?

Patrick: Eu não gosto de falar de política com você.

Juno: Por que não?

Patrick: Porque você se exalta!

Juno (exaltado): Eu não me exalto! (tentando se acalmar) Eu não me exalto. Ok, eu me exalto, mas é que você não pode deixar seu filho conviver com esse sujeito. Ele não deixa ninguém falar, sempre tem razão, sempre sabe mais, sempre viveu mais, sempre viu mais, sempre entende mais, nele sempre doeu mais, ele é um chato! E sobretudo: ele sempre sabe o resultado de qualquer coisa, e quando o resultado não é aquele que ele previu, ele diz que foi roubado.

Patrick: Mas ele foi roubado.

Juno: Faz parte do jogo.

Patrick: Não faz, não.

Juno: Eu sei que você também estava roubando.

Patrick: Estava coisa nenhuma.

Juno: Eu quero uma revanche. Eu sou melhor do que ele.

Patrick- Você é melhor que todo mundo.

Juno: Não, melhor que todo mundo eu não sou, mas melhor do que ele, tenho certeza. Não o escolha para ser padrinho do seu filho. Ele é um fascista.

Patrick: Pra você todo mundo é fascista. Basta não ajoelhar aos pés da sua cartilha e pronto, você tatua uma suástica na testa da pessoa sem ao menos ouvir o que ela tem a dizer.

Juno: Eu ouvi o que ele tem a dizer e são coisas no mínimo com um certo grau de psicopatia. Depois o Murilo entra na escola estrangeira com um trinta e oito na mão, dá cinco tiros na cabeça do coleguinha que o xingou porque ele é imigrante ilegal e como é que vai ficar, hein?

Patrick: É Leonel!

Juno: Que seja! E tem mais: seu cunhado é uma bicha enrustida. Já viu como ele olha pra mim? Repara! Eu só estou pedindo para você reparar.

Patrick: Eu sei que você só se sente vivo quando briga com alguém, mas vai ter que arranjar outra pessoa porque eu não estou disponível!

Juno: Ok, eu não vou falar mais nada.

Patrick: Acho bom.

Juno: Eu vou ficar quieto.

Patrick: Ótimo.

Juno: Só quero dizer uma última coisa.

Patrick: O quê?

Juno: Nada, deixa pra lá.

Patrick: Eu odeio quando você faz isso e você faz isso sem parar.

Juno: Eu estou feliz por você.

Patrick: E é assim que você demonstra?

Juno: É o meu jeito!

Patrick: Então, mude, que tal? Mude enquanto é tempo! Mude antes que seja tarde, mude alguma coisa para não envelhecer assim, mas mude, cassete, porque assim não dá mais. Você não se cansa de se repetir até o infinito?

Juno: Eu parei com tudo e você sabe. Eu estou sóbrio. Eu sei que eu tinha uma questão…

Patrick: Você não tinha uma questão, você tem uma questão, e eu não estou a fim de lidar com a sua questão, e sabe por quê? Porque ela é a sua questão. E você precisa lidar com a sua questão, porque eu não sei se você sabe, mas eu tenho a minha questão, estou tentando lidar com a minha questão, então, todo mundo por favor se mantenha ocupado com a sua própria questão.

O berço fica pronto. Eles ficam algum tempo contemplando o móvel. Patrick continua imaginando os traços de seu filho, que até ontem era filha. 

Juno: Eu preciso de um favor.

Patrick: Não posso mais te emprestar dinheiro.

Juno: Eu estou doente.

De repente, o berço desmonta. Tudo que estava de pé, desmorona. 

A Disputa da narrativa

Anos 90. Patrick e Juno explicam com didatismo carismático algo muito importante. Pode haver uma lousa em algum lugar, ou um caderno. Imagens. É como se estivessem apresentando o trabalho nota 10 da feira de ciências. O jogo é: os atores precisam saber do texto inteiro. O compêndio é vivo e inédito todos os dias. Disputam quem fala mais e melhor. 

Juno e Patrick: Tudo começa com uma única célula. Essa célula divide-se em duas, as duas em quatro, as quatro em oito e assim por diante. Após 47 duplicações você, eu, todo mundo, tem dez mil trilhões de células no corpo e você está pronto para virar gente e nascer. É traumático, é, mas acontece assim. Aí você nasce e cada uma dessas células sabe exatamente o que fazer para te manter vivo. Se seu corpo fosse um país, você teria 10 mil trilhões de cidadãos lutando pelo bem estar geral da nação. Não há nada que elas não façam por você. Elas formam um exército que virá em sua defesa assim que você estiver sendo ameaçado, e morrerá por você. Esse é o propósito. Mas um dia você passa mal e acha estranho. Não é ressaca, porque você não bebeu. Você não bebe mais porque não pode beber, então você tem certeza de que não bebeu e que aquilo é um mal estar inédito. Então, você vai ao médico, faz um monte de exames e descobre uma coisa terrível: seus rins não funcionam mais. E por quê? Porque algumas dessas células decidiram se rebelar, provocando uma guerra civil dentro de você, e aquele corpo que elas tinham jurado preservar, começa a parar de funcionar. É o que se chama de doença auto imune. No meu caso, lúpus. Sim, lúpus. Nome curioso, não é? Não é marca de meia, é uma doença séria. Lúpus. Enquanto eu falo, enquanto você me observa, uma batalha campal se dá dentro de mim. Girondinos versus jacobinos, bolcheviques versus mencheviques, os do norte versus os do sul, Movimento de Libertação de Angola contra a União Nacional para a Independência Total de Angola. irmãos matando irmãos, explodindo irmãos, decapitando as mãos dos irmãos e dos meio-irmãos. Croatas, sérvios, bósnios, ucranianos, russos, mulçumanos, indonésios, coreanos, paraguaios, romanos, todos misturados com Canudos, Farrapos, Revolução Constitucionalista, Baianada, Cabanada, Guerra de Biafra, Guerra das Rosas, Revolução dos Cravos, um jardim-campo minado onde as coisas param de nascer e começam a se esgotar! Esquerda contra centro-esquerda, direita contra a centro-direita, extrema direita contra todo mundo e crescendo cada vez mais, numa sucessão de golpes parlamentares e militares até o corpo ser destruído por completo! E parece tudo muito barulhento, não parece? Mas não é. A guerra civil que está acontecendo dentro do meu corpo tem como trilha sonora o silêncio das ideias mortas. É discreta, mas é avassaladora, por isso meus rins não funcionam mais. Quando me dei conta, já era tarde.

Se Patrick Heffer se desse conta 

Casa de Patrick Heffer. Anos 2000. Berço desmontado. Patrick e Juno estão sentados. Cada um com uma pistolinha de água. Eles tentam acertar um boneco de papel até o boneco se desmanchar. 

Patrick: Por que a vida é tão curta?

Juno: Por que os gêmeos são tão parecidos?

Patrick: Será que ostras têm livre arbítrio?

Juno: Não suporto ostras.

Patrick: Por que os homens têm mamilos se eles não servem para nada?

Juno: Não é verdade. Já levou uma lambida nos mamilos? Lembra aquele dia no sítio do meu pai?

Patrick: Foram tantos dias iguais.

Juno: Eu sei, mas teve um dia marcante. Eu disse que eu faria tudo por você e eu não estava mentindo.

Patrick: Eu não estou pedindo isso pra você.

Juno: Você não pediu, eu estou oferecendo.

Patrick: Você está falando sem pensar.

Juno: Eu não preciso pensar.

Patrick: Precisa sim. Isso é muito sério.

Juno: Mas eu estou falando sério!

Patrick: Você nunca fala sério.

Juno: Eu sei que uma pessoa pode viver normalmente com um único rim. Eu tenho dois. Você precisa de um. Quem tem dois, dá um. Matemática simples.

Patrick: Não é tão simples.

Juno: É claro que é. Pensemos em laranjas. Eu tenho duas laranjas, você não tem nenhuma laranja, eu te dou uma laranja e cada um chupa sua laranja. Não te parece justo?

Patrick: Você bebeu?

Juno: É claro que não. Por quê? Eu só sou uma boa pessoa quando eu bebo?

Patrick: Eu não disse isso. Mas nada garante que sejamos compatíveis…

Juno: Não existe duas pessoas mais compatíveis do que nós dois.

Patrick: Não quero que você me ofereça algo que eu não possa recusar e que você não poderá cumprir.

Juno: Eu te dou a minha palavra se formos compatíveis um pedaço de mim é seu.

Patrick: Você não me deve nada.

Juno: Todo mundo deve alguma coisa pra alguém. Feira de ciências, 1994. Eu botei fogo na maquete e você me salvou.

Patrick e Juno se encaram. 

Patrick: Você vai ficar debilitado, e por mais que seja possível viver apenas com um rim só, você vai ter que cuidar desse rim, você não vai poder recair, nunca mais, nem um gole, nem nada. Você vai ter que mudar de hábitos, vai ter que praticamente se tornar outra pessoa.

Juno: Eu já me tornei, você é que não viu. É por isso que eu descobri que esse negócio de ser alguém é superestimado. Ninguém é nada, todo mundo está alguma coisa. Eu não tenho um “eu” definido.

Patrick: Ok, que você tenha um milhão de eus dentro de você, não interessa. O seu corpo é um só e existem sérios riscos. Você pode morrer.

Juno: Você também.

Patrick: Sim, mas eu já estou doente!

Juno: Eu quero que meu afilhado tenha um pai. Você faria isso por mim, não faria?

Patrick: Num piscar de olhos.

Juno: Então, pisca.

A luz pisca. A luz volta. Juno está olhando fixamente para um ponto. 

Patrick: O que foi?

Juno: Tem um buraco na parede.

Patrick: Não estou vendo.

Juno: Mas você verá.

Se Juno Mangue se desse conta

Laboratório Dussanti. Oito e meia da manhã. O Laboratório Dussanti parece um shopping center. Hoje tudo se parece com um shopping center, inclusive o Laboratório Dussanti. Sabe o que não se parece com um shopping center? Um shopping center. Um shopping center parece cada vez mais com um hospital. As pessoas estão muito doentes. Juno é uma delas. Ele anda de um lado para o outro. Parece ansioso. O número 253 é chamado. Juno olha para o relógio. O tempo passa. Patrick finalmente aparece. 

Juno: Já chamaram o nosso número.

Patrick: Desculpa, eu estava no trânsito.

Juno: Custava sair mais cedo? Acho que a gente já pode entrar. Eu falei com a Dra. Ellen e ela disse que se for compatível e tudo der certo, podemos marcar a cirurgia para semana que vem. Cadê?

Patrick: O quê?

Juno: O seu cocô. Você não trouxe seu cocô? Não acredito. Pega um potinho, vai fazer cocô.

Patrick: Juno, espera, eu não…

Juno: Eu te mandei um e-mail com todas as instruções. Vai cagar agora! O que é isso na sua camisa?

Patrick limpa a camisa que está cheia de farelos. 

Juno: Você comeu?

Patrick: Uma bolacha.

Juno: Você comeu uma bolacha?

Patrick: Comi. Senta. Precisamos conversar.

Juno: Não, eu estou bem de pé. Fala logo. Está me deixando nervoso.

Patrick: Eu também estou nervoso.

Juno: Legal. Tá todo mundo nervoso. O que ganhamos com isso?

O número 253 é novamente chamado. 

Juno: É o nosso número.

Patrick: Eu falei com o meu médico…

Juno: Que médico?

Patrick: Meu cunhado. E eu quero deixar claro que a ideologia não está em questão aqui, Juno.

Juno: A ideologia sempre está em questão.

Patrick: Não estamos falando disso.

Juno: Exatamente, do quê estamos falando?

Patrick: Ele me explicou: tem riscos.

Juno: Sim, tem riscos, eu nunca disse que não tinha riscos, tem, mas eu estou otimista, vai dar tudo certo.

Patrick: Riscos pra mim.

Juno: Sim, mas são mínimos, você poderá voltar ao normal em pouco mais de três meses. Confie na ciência. Estatisticamente, vai dar tudo certo.

Patrick: A ciência não explica tudo, Juno.

Juno: Virou negacionista agora, Patrick?

Patrick: Não é isso. A questão é: E se não der?

Juno: Vai dar.

Patrick: Você não tem certeza disso.

Juno: Eu tenho fé. Você deveria ter também.

O número é chamado novamente. 

Patrick: Não somos uma máquina tão perfeita, porque se fôssemos, bem, se fôssemos, tudo seria diferente, e no entanto basta um vírus, uma bactéria, um trauma, e pronto, já não estamos mais aqui.

Juno: As pessoas vivem perfeitamente com um único rim.

Patrick: Não, ninguém vive perfeitamente. Estamos numa situação muito precária. Eu sei que eu tenho dois rins, mas um é o estepe. Se eu uso o meu estepe, eu fico sem estepe. É por isso que quando o pneu fura a gente vai logo no borracheiro para arrumar, porque não existe andar sem estepe. Quem tem dois, tem um. Quem tem um, não tem nada.

Juno: Um é um, nada é nada, um e zero são coisas diferentes e você sabe disso.

Patrick: Não é a matemática que resolve esse caso, Juno.

Número chamado. Patrick não se move. Depois de alguns segundos, ele se senta. 

Patrick: Eu sinto muito. Eu não posso fazer isso. E eu quero que meu filho tenha um pai, olha, eu sei que as chances são poucas, mas elas existem e eu não posso apenas ignorar esse fato. Eu tenho pavor de sangue, agulha, hospital, injeção, eu tenho medo e essa é a única vida que eu tenho. E por pior que ela pareça eu gosto de viver, eu quero viver, eu tenho que viver! Por eles, entende? Se eu te doar um rim, eu vou ficar sem conseguir limpar a minha própria bunda por meses, sendo que vai ter um bebê na minha casa, que precisa que a sua própria bunda seja limpa. Somos tão frágeis, tão frágeis… Eu não posso fazer isso com ele, eu não posso fazer isso com a Catarina, eu não posso fazer isso comigo. Eu não posso fazer isso. Eu não posso. Será que você consegue se colocar no meu lugar?

Juno: Você consegue se colocar no meu?

Juno olha profundamente para Patrick. Silêncio. O silêncio é tão profundo que ouvimos a batida acelerada de seus corações indefesos. 

Juno: Fala alguma coisa!

Patrick: Eu não sei o que te dizer.

Juno: Não sabe mesmo? Porque mesmo que você não souber, você tem que inventar, porque eu realmente preciso escutar alguma coisa, qualquer coisa, alguma coisa.

Patrick: …

Juno: Você foi abduzido. Esse não é você. É a Catarina, não é? Ela sempre teve ciúmes da nossa amizade, nunca foi com a minha cara, ela entrou no seu cérebro, Patrick! Ela virou a sua cabeça, torceu suas ideias, massacrou seus neurônios, ela fez uma lavagem cerebral em você, você não era assim, eu te conheço, e você não é assim. Agora, escreve o que eu tô falando: um dia, a Catarina vai te trair, vai te deixar, vai te afastar do seu filho e quem vai estar lá, do outro lado da mesa, te ouvindo e te consolando? Em que sofá você vai dormir, hein?

Patrick: Você está chateado, não sabe o que está dizendo.

Juno: Chateado? Você acha que eu estou chateado? Meu melhor amigo não quer me dar um rim sendo que ele tem dois, e você acha que o que eu sinto é chateação?

Patrick: Eu sinto muito.

Juno: Para de dizer que sente, você não sente nada. Sente porra nenhuma. Quem sente sou eu. Quem tá morrendo sou eu. Não é suficiente. Sentir apenas não basta. Você precisa fazer alguma coisa. Não basta ter bons sentimentos, é preciso ter boas ações. Aliás, você pode até ter maus sentimentos, ou nenhum sentimento, dane-se. No final é o que você faz ou o que deixa de fazer que vai dizer quem você é. E quem você é, Patrick? Um merda!

Patrick: Você agrediu seu corpo por décadas e a culpa é minha?

Juno: Eu sabia que um dia você iria dizer que eu sou culpado pela minha própria doença!

Patrick: Eu não estou falando de culpa, estou falando de responsabilidade!

Juno: Você é um filha da puta, Patrick.

Patrick: Eu sou um filha da puta?! Tem certeza?! Eu?! Não fui eu que atropelei um mendigo, não prestei socorro e enfiei meu carro no poste.

Os dois se olham com uma raiva ancestral. 

Juno: Eu paguei pelo que eu fiz.

Patrick: Vinte cestas básicas não é pagar.

Juno: Poderia ter sido você. Quantas vezes você não dirigiu bêbado por aí?

Patrick: Mas não fui eu.

Juno: Mas poderia ter sido.

Patrick: Mas não foi!

Juno: Numa realidade paralela, é você quem precisa de mim e eu te estendo a mão! Eu faria isso por você.

Patrick: Será? Será mesmo que faria?

Juno: Eu faria! Numa realidade paralela, eu te daria um rim. Eu te daria dois rins, eu me jogaria da ponte por você, na frente de um trem por você, ofereceria meu peito para um cartucho cheio de balas pra te defender, eu faria coisas heroicas e canalhas – assim como eu já fiz e você sabe – só pra te proteger, só para não ter o desgosto de te ver sofrer! E se eu não fosse compatível, eu iria atrás do seu pai, esse desgraçado que não foi capaz nem de te registrar, e iria abri-lo como um porco num açougue qualquer e com as minhas próprias mãos arrancaria dele o órgão que você precisa, se ele você um cretino que não quisesse doá-lo por bem. E sabe por quê? Porque é isso que os amigos fazem!

Patrick: Não sei de onde você tira essas suas ideias desmembradas, talvez seja uma sequela, sei lá, você usou tanta droga, torrou tanto dinheiro com droga, enfiou droga em todos os orifícios que conseguiu, fez tanto mal pra tanta gente, inclusive pra mim, e pro coitado do seu pai, que vamos combinar, morreu de desgosto depois que você faliu a única coisa que ele conseguiu construir depois de anos de sacrifício carregando o peso desagradável e inconveniente que você se tornou! Mas ok, vamos imaginar que exista uma realidade paralela, uma outra dimensão além dessa. Você realmente acredita que lá você é uma pessoa completamente diferente? Uma pessoa melhor?

Juno: Acredito.

Patrick: Pois eu não!

Juno: Mas eu sou. Já você é previsível. Se outra situação está acontecendo nesse exato momento, numa fenda do espaço-tempo que seja, você continua sendo um egoísta por lá.

O número 253 é chamado novamente. E de novo, e de novo, e de novo. 

Como usar os talheres na última refeição

Anos 2000. Juno e Patrick usam roupas hospitalares, daquelas vexatórias que deixam a bunda de fora. Estão em um quarto de hospital com duas camas. Comem a última refeição. Patrick acha horrível. Juno está conformado. 

Patrick: Isso é peixe ou frango? Ou será papel?

Juno: Isso é “fake chicken”. Frango falso. Parece frango, mas é feito de milho.

Patrick: Por que isso?

Juno: Porque é mais barato.

Patrick: Vamos pedir um iFood?

Juno: E comprometer toda a cirurgia?

Patrick: Pode ser nossa última refeição.

Juno: Não seja dramático. A operação é simples e vai dar tudo certo.

Patrick olha para a bandeja de Juno. 

Patrick: Do que é a sua gelatina?

Juno: Abacaxi.

Patrick: Eu adoro abacaxi.

Juno: Eu também. E a sua?

Patrick: Tutti-Frutti.

Juno: Tutti-frutti são todas as frutas.

Patrick: Todas as frutas, todas as frutas… mas não são todas as frutas, é impossível que num único sabor artificial eles tenham conseguido condensar todas as frutas do mundo. O mundo é muito grande e as frutas muito diversas. Pitáia, cherimoia, uvaia, granadilha, mangostão, por um acaso tem aqui? Não, não tem.

Eu odeio tutti-frutti. Aliás eu nem sei porque existe tutti-frutti. Nada mais artificial do que tutti-frutti.

Patrick joga a gelatina no lixo. Pega o telefone.

Patrick: Olá, enfermeira, boa noite. Eu queria uma gelatina de abacaxi, por favor. Como não tem? Que merda.

Juno abre o pote de gelatina lentamente. Patrick cobiça. Preocupado e tentando ocupar sua cabeça, Patrick anda pelo quarto. Abre a gaveta da cabeceira. Acha uma bíblia. 

Patrick: Por que sempre tem uma bíblia no quarto de hospital?

Juno: As pessoas precisam de conforto para fazer a passagem.

Patrick sente um frio na espinha. 

Juno: Relaxa, eu tô brincando. Já disse que vai dar tudo certo. Não se comporte como uma bicha!

Patrick: Não fala assim comigo.

Juno: Não seja tão sensível.

Patrick: Vamos dividir, então. Me dá um pouco dessa gelatina.

Juno: Se a gente dividir, nem eu e nem você vamos sentir o gosto de nada. Não é preferível alguém ter prazer do que ninguém ter prazer? Não é nisso que você acredita?

Patrick: É claro que não! Eu acho que todo mundo merece ter prazer.

Juno: Tá, mas se o seu prazer for a gelatina de abacaxi, temos uma quantidade limitada de prazer, não dá pra todo mundo, é um fato. Eu sei que você está acostumado a ficar com a melhor parte de tudo, mas uma vez na vida você pode passar por isso. Sofrer um pouco não vai te fazer mal.

Patrick: Juno, eu estou prestes a te dar um rim, me dá a porra da gelatina de abacaxi.

Juno: Você não pode ser mimado desse jeito! Come essa sua de tutti-frutti e se conforme.

Patrick: Eu joguei no lixo.

Juno: Pega do lixo.

Patrick: Eu não vou comer comida do lixo!

Juno: Então, não come nada!

Patrick: Me dá!

Juno: Vem pegar!

Patrick: Juno, eu vou contar até três.

Juno (comendo): Hum, tá deliciosa.

Patrick: Eu posso sair por aquela porta a qualquer momento!

Juno: Você não teria coragem!

Patrick: Me testa.

Juno: Já testei. Imagina você chegando em casa e dizendo para Catarina que você desistiu de salvar a minha vida porque eu não quis te dar a minha gelatina?! Ela vai ficar muito desapontada, você não acha? E a Sofia , “papai, por que você matou o tio Juno? Ele não estava precisando de você?”. Você vai conseguir conviver com a ideia de que poderia ter feito alguma coisa por alguém e não fez? De mostrar que você é melhor do que as pessoas que você convive?

Patrick: Como é que é?

Juno: Sabe qual é o seu problema, Heffer, é que você não tem problemas. Por que se você tivesse problemas, isso já não seria um problema.

Patrick está chocado com o que acaba de ouvir. 

Patrick: Meu deus.

Juno: Você não acredita em deus.

Patrick: Meu pai.

Juno: Você não tem pai.

Patrick: Por que eu estou fazendo isso mesmo?

Juno: Porque você me ama.

Patrick: Mas você não é amável!

Patrick está nervoso. Começa a se trocar. Juno, percebendo que foi longe demais, se aproxima do amigo. Lhe abraça. 

Juno: Hey…

Patrick: Não toca em mim.

Juno: Pera aí, Patrick. Me dá um abraço, para com isso…

Patrick: Não toca em mim, já disse!

Juno se aproxima ainda mais de Patrick e tenta seduzi-lo. Eles se beijam. O beijo se intensifica. Até que Patrick empurra Juno. Juno ainda investe mais uma vez, mas Patrick se esquiva. Começa uma luta corporal. Patrick pega a mão de Juno e a torce. 

Juno: Ai, vai quebrar minha mão!

Patrick: Caguei.

Juno: Eu estava brincando. Eu estava brincando. Você me conhece. Foi só uma brincadeira. Por favor, Patrick, eu estava brincando, caralho!

Patrick: Mas eu não estou brincando! Eu não sou o seu depósito de porra.

Patrick larga a mão de Juno. Os dois se olham. 

Patrick: Mesmo que eu te dê um rim, mesmo que eu dê a minha vida, essa, a das outras encarnações e toda a eternidade, nada, absolutamente nada vai tapar esse buraco negro que você tem no meio do peito, ou da cabeça, ou de sei lá onde, que absorve tudo e que não te deixa sair dessa lama que você mergulhou! Ninguém pode te ajudar. Por que você é assim? Não faço ideia. Mas por que eu vou me ocupar em saber se você mesmo nunca deu a mínima? Procure um doador, anônimo de preferência. Eu te conheço muito bem pra continuar com isso.

Juno: Espera, Juno, toma a gelatina, pronto, ela é sua, tá legal?

Patrick: Enfia essa gelatina no seu cu e tudo o que couber dentro dele.

Juno: Você não pode fazer isso, você não é um assassino.

Patrick: Não sou. Mas você é um suicida. Adeus!

Patrick sai. Juno calmamente pega a gelatina e começa a comer. 

Juno: Eu sei que você vai voltar. Você sempre volta.

Como Patrick Heffer se equilibra com um pires na mão

Anos 2000. Tudo recomeça num bar porque o bar é um bom lugar para recomeçar. No caso, esse é o bar de Juno Mangue, Bar do Cavaco, que fica no centro de alguma cidade brasileira cercada de lixo por todos os lados. Dentro do bar, uma placa onde pode se ler a seguinte mensagem: “Não bata palma.” Outra, um pouco mais delicada e escondida dá o seguinte recado: “Alfredo não gosta de perfume”. Juno está fechando seu bar cheio de dívidas enquanto Patrick chega com a cabeça cheia de dúvidas. Juno não reconhece Patrick, que usa um capuz. 

Juno: Vá embora, estamos fechando. Estou falando sério. Eu tenho uma arma na gaveta. É melhor me obedecer, antes que seja tarde.

Patrick: Calma, Juno. Sou eu.

Os dois amigos se olham profundamente. Patrick vai ao encontro de Juno e o abraça. Juno resiste, mas logo retribui. 

Patrick entrega para Juno uma garrafa de vodca. 

Juno: Puxa, obrigado, mas eu estou fechando o bar.

Patrick: A noite é uma criança, Juno.

Juno: Não, a noite é um adulto nostálgico, bêbado e deprimido, isso é que é a noite. Faz seis anos que eu não bebo.

Patrick: Eu não sabia. Me desculpe.

Juno coloca a garrafa na prateleira. 

Patrick: Como está o Edgar?

Juno: Quem é Edgar?

Patrick: Seu namorado não se chama Edgar?

Juno: Não, é Sérgio.

Patrick: E quem é Edgar?

Juno: Não faço a mínima ideia.

Silêncio constrangedor. 

Patrick: Olha, eu sinto muito pelo seu pai.

Juno: Ele gostava muito de você.

Patrick: Eu mandei uma coroa de flores.

Juno: Estavam murchas mas valeu a intenção.

Patrick: Não tenho culpa, a culpa é do site.

Juno: Ninguém falou em culpa, eu estou falando de responsabilidade.

Patrick: Eu também não tenho responsabilidade.

Juno: Quem escolheu o site?

Patrick: A minha secretária.

Juno: E quem escolheu a sua secretária?

Patrick: Ela passou no concurso.

Juno: E quem fez o concurso?

Patrick: O Governo Federal.

Juno: E o Governo Federal é o quê? Em quem você votou?

Patrick: Eu não gosto de falar de política com você.

Juno: Por que não?

Patrick: Porque você se exalta.

Juno: Eu não me exalto mais. Diga logo, o que você quer?

Patrick: Eu sei que você tem contatos.

Juno: Tenho. Verdade. É o que eu mais tenho na vida. Contatos. Não gosto de ninguém em particular e nem profundamente, mas sim, eu tenho contatos. Você quer um contato?

Patrick: Sim, é que… veja, eu andei lendo que… a verdade é que eu… eu não, na verdade…

Juno: Patrick, eu não posso perder tempo. Aprenda a dizer em voz alta o crime que você quer cometer.

Patrick respira fundo.

Patrick: Eu preciso de um rim.

Juno: Um rim?

Patrick: Isso, um rim. Para um transplante. Um rim em bom estado.

Juno: Você está doente?

Patrick: Estou.

Juno: Não posso te doar, você sabe, eu nasci com um rim só.

Patrick: Eu sei. Pode ser de qualquer um. Desde que seja compatível.

Juno: Você sabe como se consegue esses órgãos, não sabe?

Patrick: Eu imagino.

Juno: E ainda assim, quer fazer isso?

Patrick: Eu preciso.

Juno: Catarina sabe?

Patrick: Ela que me incentivou pra vir aqui. Ela gosta muito de você.

Juno: Desde quando?

Patrick: Desde sempre.

Juno: Você tem dinheiro?

Patrick: Tenho.

Juno: E o que eu ganho com isso?

Patrick: Você ajudaria um amigo.

Juno: Você é meu amigo?

Patrick: Sim, eu sou seu amigo.

Juno: Quando é o meu aniversário?

Patrick: Você sabe que eu sou ruim com datas. Eu só preciso de um contato.

Juno: Por que não entra na fila como todo mundo? Você se acha melhor que os outros?

Patrick: Não, eu não me acho melhor do que ninguém, eu só quero viver.

Juno: Só você? Sabe, Patrick, pode não parecer pra você, mas tudo tem uma ética, até onde você acha que não há moral nenhuma, há alguma moral, mesmo que não seja bem aquela que você está acostumado. Eu tenho a minha ética e opero dentro de uma moral que é muito importante pra mim: você está fazendo do mundo um lugar melhor para as minhas filhas viverem?

Patrick: Que filhas?

Juno: Eu e o Sérgio vamos adotar. Duas irmãs.

Patrick: Que ótimo, Juno, parabéns. Eu tenho certeza que você será um bom pai.

Juno: Não faça isso.

Patrick: O que eu estou fazendo?

Juno: Me bajulando.

Patrick: Estou sendo sincero. Você mudou.

Juno: Mas você não. Continua quebrando a mão daqueles que não concordam com você?

Patrick: Eu sou uma boa pessoa, mas como toda boa pessoa, eu tenho meus defeitos. Todas as pessoas tem defeitos, as pessoas boas e as pessoas más, sendo que as más têm mais defeitos porque acham que não tem defeitos, ou porque acreditam que seus defeitos não são tão graves assim.

Juno: Uma coisa é ter defeitos, outra coisa é cometer um crime.

Patrick: E o que você faz, hein?

Juno: Eu não cometo crime algum, só tenho contatos, só isso. Por um acaso ter contatos é crime? Quem vai cometer o crime é você. Você vai pagar pelo órgão de um desconhecido que um dia saiu com uma mulher gostosa, mulher que nunca daria bola pra ele, mas ele, trouxa, acreditou e acordou dentro de uma banheira de gelo sem um rim!? Vai ter coragem de fazer isso pra se salvar?

Porque até agora eu sei que parece que eu sou um traste, mas talvez, Patrick, o traste seja você, que nunca fez nada nem de bom, nem de belo e nem de útil para humanidade, e acha que merece continuar mantendo o privilégio de estar vivo a qualquer custo! Aceita! Aceita que seu tempo acabou! Aceita que não dá mais! Aceita que você chegou no fim da linha e que talvez seja melhor assim, porque não adianta estar vivo se você só ocupa espaço. Agora saia do meu bar. Eu preciso fechar.

Patrick vai até a prateleira, pega a garrafa. Antes de sair, olha para Juno.

Patrick: Um dia, Juno, você vai estar sozinho numa cama de hospital, sem ninguém para segurar a sua mão, e a última imagem que você verá antes de ir direto para o inferno, vai ser a minha dizendo em alto e bom som: Bem feito! E eu espero estar vivo pra poder mandar uma coroa de flores que eu farei questão de escolher pessoalmente.

Patrick sai. Juno pega uma cadeira e arremessa na parede. 

O poder das palavras

Juno está deitado na cama de hospital. Parece que está sozinho. Até que a luz revela Patrick, que, nervoso, anda de um lado para o outro olhando para a tela do celular. 

Juno: Patrick, para, você tá me deixando tonto.

Patrick: Me desculpa.

Juno: Vai pra casa.

Patrick: Não.

Juno: Vai pra casa, tô te pedindo.

Patrick: Eu não quero ir pra casa.

Juno: Cadê meu afilhado? Não nasceu ainda?

Patrick: Ainda não. Mas logo, logo ele está aqui. Como você está se sentindo?

Juno: Tô meio dopado. Tá uma brisa boa.

Patrick: Se você sentir dor, a dra. Ellen disse que a gente pode aumentar a dose.

Juno: Não, eu não quero ficar inconsciente. Quero sentir tudo até o fim. Tenho a eternidade inteira para não sentir absolutamente nada. Cadê o Edgar?

Patrick: Ele… é… ele tá na cafeteria.

Juno: Não mente pra mim. Você mente muito mal.

Patrick: Ele te ama.

Juno: Ama coisa nenhuma. Eu já me conformei. Mas estou tranquilo. Mas não quero falar de amor. É muito óbvio. Que tal falar mal do seu cunhado, aquele filha da puta fascista, hein? Ele já saiu do armário?

Patrick: Foi ele que te conseguiu esse quarto.

Juno: Caguei. Tô a beira da morte, posso falar mal de quem eu quiser.

Patrick continua aflito, andando de um lado para o outro. 

Patrick: Eu queria ter feito mais, você sabe que eu gostaria de ter feito mais.

Juno: Nada disso é culpa sua.

Patrick: Talvez seja.

Juno: Isso não é sobre você!

Patrick: Mas eu preciso te dizer antes que seja tarde.

Juno: Deixa pra lá, Patrick. Tanto faz. Quer que eu peça um calmante pra você, hein? Você quer o que eu to tomando? É muito bom. Eu tô ótimo. Você deveria ficar também.

Patrick: Eu não me conformo.

Juno: Chegou ao fim. Tudo bem. Isso tem que acabar em algum momento.

Patrick: Eu não quero te perder.

Juno: Mas eu vou perder todo mundo. Quem tá morrendo sou eu e eu não posso te consolar agora.

Patrick: Tem razão, me desculpe.

Juno: Se acalme. Por favor.

Patrick: Ok.

Juno: Não fique histérico. Respira.

Patrick: Tá bom, tô respirando, tô respirando.

Juno: Morrer não tá sendo fácil, que seja pelo menos, tranquilo. Acha que consegue ficar sem falar durante um tempo? Quero aproveitar meus últimos instantes. Vou fechar os olhos.

Patrick: Claro, claro. Me desculpe. Eu vou ficar quieto.

Juno: Ótimo. Apenas segure a minha mão, pode ser?

Patrick fica em silêncio e segura na mão de Juno. 

Patrick: No dia que saiu o resultado do exame eu torci para que não fôssemos compatíveis. Não, torci não é a palavra, eu desejei, eu projetei, eu mentalizei para que o transplante não fosse possível e agora você está aí!

E de alguma forma estranha, quase surreal, eu acho, eu sinto, eu acho, não, na verdade eu sinto, que isso influiu no resultado.

Juno: Tudo bem, você estava com medo de tomar uma decisão. Mas no fim eu sei que você faria a coisa certa.

Patrick: Será?

Juno: É claro que sim. Você sempre faz a coisa certa.

Patrick: E qual seria a coisa certa?

Juno: A coisa certa teria sido inevitável.

Se Patrick Heffer precisasse de um rim e Juno Mangue não fosse compatível 

Casa de Patrick Heffer. Patrick está acabado, deitado no sofá, de pijamas, doente. Sente dor. Geme. De dentro do cooler tira mais uma cerveja. A televisão está ligada em um documentário sobre os malefícios do chumbo. 

“Entre os muitos sintomas associados a superexposição ao chumbo estão cegueira, insônia, perda de audição, câncer, paralisia, convulsões e insuficiência renal. Mesmo sabendo disso, as indústrias não deixaram de utilizar o chumbo. Ao invés de desistirem dele, mudaram-lhe o nome para algo mais poético e inofensivo e passaram a chamar o chumbo de ETILO. No começo, os trabalhadores que extraíam o chumbo passaram a apresentar um comportamento perturbador, andavam de maneira estranha como se estivessem bêbados, não falavam coisa com coisa como se estivessem loucos, mas não estavam nem bêbados e nem loucos, estavam apenas intoxicados.” 

A campainha toca. 

É Juno. Ele está com um cooler nas mãos. Vê a casa revirada. 

Juno: O que está fazendo? Você não pode beber! Está maluco?

Patrick: Completamente. Dá pra notar?

Juno: Calma, a dra. Ellen disse que isso poderia acontecer, você está deprimido. Mas isso vai mudar. Por que não atendeu meus telefonemas?

Patrick: Roubaram meu celular. Eu não quero mais viver.

Juno: Por causa de um celular?

Patrick: Pra mim, chega.

Juno: Cadê a Catarina?

Patrick: Foi embora.

Juno: Como assim?

Patrick: Não é fácil conviver com um doente, convenhamos. Ela me abandonou. Disse que conheceu uma pessoa.

Juno: Que pessoa?

Patrick: Uma pessoa. Sorte a dela.

Juno: Filha da puta!

Patrick: Não fala assim. Eu a amo.

Juno: Mas ela pelo visto, não te ama.

Patrick: A culpa é minha.

Juno: Como assim?

Patrick: Eu xinguei a Catarina.

Juno: Por quê?

Patrick: Sei lá, porque eu tô puto. Estava. Agora me conformei. Tudo perdeu o sentido. Dizem que o amor une, mas ele também quebra, não quebra?

Juno: Não temos tempo pra isso. Levanta daí! Vai se trocar. Nós vamos para o hospital.

Patrick: Não vou mais fazer hemodiálise. Foda-se! Me deixa em paz.

Juno: Eu achei seu pai.

Pausa. 

Patrick: Onde?

Juno: Interessa?

Patrick: Eu nem sabia que você estava procurando.

Juno: Rua Valência, 253, no bairro de Turu, São Luís do Maranhão.

Patrick: Como você…

Juno: Eu tenho contatos.

Patrick: E como ele é?

Juno: Ele não se parece com você. Fique tranquilo.

Patrick repara no cooler. 

Patrick: O que tem dentro desse cooler?

Juno: …

Patrick: O que foi que você fez?

Juno: …

Patrick: Se eu abrir isso daqui, o que é que eu vou encontrar?

Juno: Uma chance.

Patrick: Juno!

Juno: Não se preocupe. Ele vai sobreviver. O cara que fez o serviço é profissional. Talvez ele precise de um transplante, mas quem não tá precisando, não é mesmo? Você quer viver, não quer? Pois eu disse que eu faria tudo que estivesse ao meu alcance, e isso estava, então pronto. Agora coloque uma roupa e vamos para o hospital!

O vasto oceano do amor fraterno

Uma foto. Dois meninos adolescentes vestem trajes de banho. Estão fazendo uma acrobacia na areia, enquanto as traças devoram a foto com uma fome ancestral. Antes da foto ser inteira carcomida pelo tempo, ou pelas traças, ou pelas traças através do tempo, ou pelo tempo através das traças, vemos no fundo do oceano um animal marinho não identificado. Talvez seja uma baleia.

Patrick Heffer interage com a enfermeira loira de filmes estrangeiros 

Patrick: Enfermeira, ele está com dor. Ele está com dor, ele está com dor, ele está com dor, você precisa fazer alguma coisa, porque ele está com dor. A dra. Ellen precisa fazer alguma coisa, alguém precisa fazer alguma coisa já que eu não fui capaz de fazer alguma coisa, e agora ele está com dor, alguém, faça alguma coisa! Eu quero falar com alguém que esteja disposto a fazer alguma coisa, alguma coisa diferente do que está sendo feito, porque nada está sendo feito, e alguém precisa fazer alguma coisa, alguém por favor faça alguma coisa diferente dessa, escreva algo diferente desse texto, porque ele está com dor, esse fim é muito triste, eu não vou aceitar! Ele está com dor, faça alguma coisa, enfermeira. Enfermeira! Um minuto da sua atenção. Um minuto da sua atenção. Enfermeira, um minu… Eu não tô nervoso, você está me deixando nervoso, você ouviu o que eu disse? Ele está com dor, eu não estou aguentando os gemidos dele, eu não quero ouvir ele gemendo desse jeito, é horrível, por favor! Enfermeira! Presta atenção em mim, sua puta! Você sabe com quem está falando? Você sabe quem é o meu cunhado? Então, tira a cara desse celular e faça a porra do seu trabalho!

Juno Mangue interage com a enfermeira loira de filmes estrangeiros

Juno: Você não é uma puta. Você não é. Eu sou um babaca e você é apenas uma profissional, muito bonita aliás, desculpa, você não é bonita. Desculpa, você é bonita, mas isso não tem nada a ver com o assunto, você é uma profissional, uma puta profissional, puta como advérbio, no sentido de competente, no sentido de perspicaz, e ser perspicaz é sinônimo de ser capaz! Então, use toda sua capacidade e competência para me ajudar. Ele tá sentindo dor. Você precisa fazer alguma coisa. Eu amo esse homem. E você deve amar alguém também. E se não, eu vou te mostrar o que é o amor. Quer que eu te mostre? Você vai se assustar e vai cair de joelhos quando amor arrebentar na sua cara. Eu vou mostrar o que é amor, sua puta enfermeira gostosa cruel do caralho! Faça alguma coisa! Porque eu já morri, só falta ele!

 A despedida 

Patrick está deitado numa cama de hospital. Juno está ao seu lado, sentado, em silêncio. Juno abre a gaveta. De lá, tira uma bíblia. Patrick olha para o livro. 

Patrick: Meu filho já nasceu?

Juno: Ainda não.

Patrick: Acho que não vou conseguir esperar.

Juno: Vai sim. A Catarina está com seis centímetros de dilatação. Aguenta firme.

Patrick: Por que sempre tem uma bíblia no quarto de hospital?

Juno: Você queria o quê? A Constituição Federal?

Patrick: “A Origem das Espécies”. Você tinha um telescópio, não tinha? Onde foi parar?

Juno: No quartinho. Tudo vai parar no quartinho.

Patrick: Eu queria ter arrumado o quartinho.
Eu queria tanta coisa e agora que e sei que não vai dar mais tempo eu quero muito mais. Como meu corpo pode fazer isso comigo? Tentei tratá-lo bem todos esses anos, você é testemunha, bebi apenas socialmente, não fumei, mal me droguei, acordei cedo, paguei meus impostos, nunca anulei um voto, controlei o colesterol, e ele me traiu calado, dissimulado, enquanto tramava contra mim, me deixando sem saúde no momento mais importante da minha vida! O que eu fiz pra merecer isso?

Juno: Nada. Você não fez nada. Você é uma das melhores pessoas que eu conheço. Eu queria te dizer que o mundo é justo e todo mundo tem o que merece, mas a verdade é que eu estou com raiva porque não é assim. As coisas simplesmente acontecem de uma forma aleatória e quase sem sentido. Eu queria ter feito mais por você. Eu torci tanto para que fôssemos compatíveis, para que eu pudesse te salvar, porque se eu te salvasse, eu poderia dizer para todo mundo que me acha um completo imbecil: tá vendo, seus otários, eu salvei uma pessoa! Eu fui capaz!

Patrick: Eu não tenho dúvida que você seria.

Juno: Mas eu não fui. Tentei encontrar seu pai. Não consegui. Eu deveria estar no seu lugar. Eu atropelei um homem, eu tirei dele a única coisa que não posso devolver, não importa que ele tenha matado a faxineira e tenha escondido o corpo dela na caixa-d’água do edifício, não importa… Mas foi. Eu estava bêbado, eu assumi o risco…

Patrick: Se outra situação está acontecendo nesse exato momento, numa fenda do espaço-tempo que seja, essa peça é sobre você e você é um herói por lá.

Juno: Será?

Patrick: Não importa. Narre apenas o quê importa. As crianças precisam de histórias. Histórias com algum sentido. Histórias bonitas e horríveis para aprender que as pessoas são assim: bonitas e horríveis ao mesmo tempo.

Juno pega na mão do amigo, emocionado. 

Patrick: Por que tem um buraco na parede?

Juno: Você está vendo um buraco? Onde?

Patrick: Ali. Ele está se abrindo.

Juno: Eu vou chamar a enfermeira.

Patrick: Não se mexe, por favor.

Juno percebe que o amigo está delirando. Segura sua mão fortemente. 

Patrick: Pra onde eu vou? Não precisa ser sincero. Basta ser generoso. Você acha que tudo acaba aqui, não é? Você não acredita em Deus. Nem eu acredito, embora tenha tentado. Não sabemos qual é a verdade. Nunca saberemos.

Alguma coisa está me chamando. É pra lá que eu tenho que ir?

Juno: Espera mais um pouco.

Patrick: Diga para a Rebeca que o pai dela tentou.

Juno: Patrick, fica comigo!

Patrick: Não vou conseguir. É irresistível. Ali. Bem ali. Eu estou vendo…

Juno: O quê? O quê você está vendo?

Juno tenta entender. 

Juno: Fala comigo.

Patrick: Nada. E é tão bonito… O nada. Pela primeira vez eu não vejo nada. Nada. Eu não consigo calcular, não posso identificar, sinto sem entender. Agora eu vejo. Nada. Absolutamente nada. Não é massa, não é energia, não é gravidade, não é movimento, não é mudança e nem tempo. Não é nada. Vou ser reduzido a nada, é esse o meu destino, nada, absolutamente nada, mas isso não é ruim, tão pouco é bom, não é nada. E que beleza, Juno, se você pudesse ver que o nada está sempre tentando se tornar alguma coisa. E por sempre tentar se tornar alguma coisa ele tem uma força extraordinária. Me beija como se fosse nada.

Juno, com paixão, beija a boca de Patrick ainda viva. Uma linha num monitor indica que Patrick não está mais ali. O ideal agora, são cinco minutos de silêncio. Cinco minutos num teatro vazio. Cinco minutos num teatro quase vazio. Cinco minutos num teatro lotado. Cinco minutos num teatro quase lotado. Cinco minutos no teatro, uma eternidade. A eternidade. A história não terminou. Amanhã ela começa outra vez. 

Epílogo – Soldadinhos de chumbo 

Anos 90. Sítio do pai de Juno Mangue. Bêbados, dois garotos ensaiam uma coreografia. Os garotos crescem, viram atores, viram amigos e fazem essa peça. Perguntam se isso faz sentindo. Não encontrando nenhuma resposta satisfatória, continuam a procurar até o infinito.

Fim.