Primeiras Dramaturgias

A Galinha Chora mas o Cliente Sorri

Como a crosta terrestre da Terra
que é proporcionalmente dez vezes menos espessa que uma
casca de ovo, a pele da alma
é um milagre de pressões mútuas.
ANNE CARSON, Autobiografia do Vermelho

Encostando a testa na vidraça brilhante e fria
olhava para o quintal do vizinho, para o grande mundo das galinhas-que-não-sabiam-que-iam-morrer.
CLARICE LISPECTOR, Perto do Coração Selvagem

Hiócoles escreveu que o medo é a véspera da coragem.
Fartre escreveu que o segredo da
vontade de viver está dentro de um ovo. Bem como nós.
GRACE PASSÔ, Congresso Internacional do Medo

 

PRÓLOGO

CARRO DO OVO:
Era uma casa muito engraçada
não tinha teto, não tinha nada
ao olhar pra cima via-se o céu azul se escondendo atrás da nuvens
e pássaros voando livres nas alturas

era uma casa muito engraçada
ninguém podia tomar café nela não
porque na casa não tinha pão
só ovo.

cozido frito com gema mole ou dura

o tempo
não se sabe qual

SABEMOS ISSO:
que o carro do ovo passa todos os dias
desde que o mundo é mundo
preenchendo as ruas
distribuindo som alto pela vizinhança

eu e minha voz microfonada estabelecemos o ritmo da vida da gente
controlo a fome o medo o som o riso

pensam que não
mas eu sei também falar bonito
não sou máquina oca

vendo sim
repito melodia gravada
mas carrego outras infinitas palavras

subestimam a capacidade do poder sonoro
de atravessar dias noites e vidas inteiras

ESCUTA:
são 30 ovos por 10 reais
1 2 3
2
3
um por um se quebra na bancada da cozinha
1   2   3   derramam-se na bacia de plástico vermelha 
a receita pede 3 ovos em temperatura ambiente
1
2
3
nem mais 
nem menos

e rapidamente a casa sem teto
o quadrado de terra
é tomado por um cheiro de comida quase pronta

a travessa é colocada em cima de uma mesa solitária
que paira no centro do único cômodo da casa
por cima dela uma toalha de crochê verde neon
costurada por uma tia cega que sumiu da superfície da terra
feito fumaça

vivem na casa duas criaturas
Odete e Leo Calisco
irmãos de carne e casca 

eu que os inventei
dei seus nomes 
narrei suas histórias
implantei frases e movimentos

mal sabem os irmãos que eu os choquei
sou a razão de suas existências

uma vida inteira de reprodução inconsciente
acreditam piamente em tudo que fala o carro do ovo
a voz de fora musicada
único contato com o mundo exterior além do céu azul

do topo de suas cabeças surge expressivo um moicano
(a maioria diria que na verdade o que eles têm no lugar do cabelo
são duas cristas vermelhas e brilhantes)

ODETE
gostava de pentear o irmão quando tinha 5 anos de idade 
O  D E T E com um t só
não é
ODETTE com dois ts

perceba
que estamos na presença de um conto de fadas muito diferente daquele famoso
onde uma princesa enfeitiçada
é presa pra sempre na forma de um cisne 
perceba
que

diferenças minúsculas no desenvolvimento do ovo formam diferenças
maiores na criatura final

apesar de serem separadas apenas por uma letra

Odete com um t e Odette com dois t’s

pertencem a espécies diferentes
falam outra língua
suas palavras são incompatíveis
ainda assim

(apesar das diferenças no que se vê quando se abre os olhos)
e encara o mundo pela primeira vez

todas nós
criaturas
emergimos de uma casca frágil
que começa a craquelar em câmera lenta
assim que saímos do buraco escuro
muito menor do que nossas cabeças

As respostas do mundo inteiro cabem dentro de um ovo graúdo.
Às vezes elas nos vêm à cabeça 5 segundos depois de estalar um ovo na
frigideira quente.
Fazendo um omelete você descobre os mais misteriosos casos do universo,
e os mais terríveis segredos da humanidade habitam dentro do bater de claras em neve.

basta prestar atenção
olha
estamos quase lá
é preciso que se dê um empurrãozinho
força
empurra

Odete canta a céu aberto, 
no meio da escuridão terrosa:

Não vejo nada que não tenha desabado
Nem mesmo entendo como estou de pé
Olhando um outro num espelho pendurado
Me reconheço, mas não sei quem é
Não ouço passos de ninguém entre os escombros
Nem mesmo insetos revirando o pó
Um vento seco me arrepia, encolho os ombros
Mas na verdade estou queimando só
Depois do fogo restam só fumaça e brasas E eu tiro as cinzas do meu peito nu
Daqui a pouco MEUS DOIS BRAÇOS SERÃO ASAS 
E EU ME LEVANTO renascido e cru
E mesmo aquela velha sombra ressecada
Que imita tantos quanto eu fui e sou
Ficou nos cacos do espelho aprisionada
De pés cortados não vai onde eu vou
Antes de nascerem as plumas
Com minhas unhas quero me arranhar
Pra ter riscado na pele
Um mapa tosco pra poder voltar
Vou passar
Como um santo mudo
Mirando o alto
Rindo
Preparando o salto
DEIXANDO PRA TRÁS TUDO

SIBA, Preparando o Salto (2012)    

Aqui está Odete
repousando sua carcaça debaixo do sol que estala diretamente no seu rosto cansado
Imóvel,
não se sabe se está pensando ou se pensam por ela

CARRO DO OVO: 
Silêncio na terra

só nos resta observar o crescimento das plantas

Dizem que tudo se desorganiza
                    eventualmente
                                         tudo sai do lugar
independente de nós
de mim
de você
e do gato que vivia no muro
mas que foi embora e nunca mais voltou

As coisas são como são

Odete pensa

Não nos diz respeito nem a abertura das flores

Ela pensa

Nem a velocidade com que os pássaros se locomovem

Pensa

Talvez essas folhas devessem ser mais verdes
e o vaso branco
não azul

Pensa

A planta cresceu muito em pouco tempo!

Pensa

É a coisa mais linda que já tive

Pensa

Por isso ainda não consegui dar um nome

Pensa

Tudo que não é dito em voz alta permanece no fundo da cloaca

Pensa

As palavras ecoam                      uma vez saídas da garganta e colocadas ao
vento

Pensa

e seu pensamento dá uma volta completa no seu crânio miúdo

até chegar aqui
nesse espaço tempo feito de grãos

Odete abre o bico:

Vai chegar aí meu irmão
fiquem olhando

seu corpo
majestoso justo firme

é o que falam sempre
desde criança

majestoso justo firme

e de que serve a grandeza
se sua carne não presta?
disso eu sei
e posso falar com propriedade
nunca comprei
muito menos comi
essa carne ruim

no fundo no fundo tem suas qualidades

por exemplo
canta religiosamente todos os dias
se compromete em trazer alimento

de vez em quando tira uma piada boa debaixo das asas

quando criança
impedia que me pegassem no colo
e se tinha gente querendo me rechear por dentro
protegia meu peito ossudo

batia nas minhas costas quando me engasgava com um grão

corajoso
nunca fugiu de uma briga
às vezes fingia de morto

nunca fritou um ovo
reza pro seu deus todo dia antes de dormir esperando milagre acorda andando sem rumo
murmurando palavras odiosas pela casa
muita coisa faz escondido
e nas madrugadas não o reconheço

se eu contar vocês não acreditam

começa assim
o sol aparece em cima do muro
e ouço seu canto
um cocoricó estridente que toma conta da paisagem
me acorda no susto
avisando que lá vem
lá vem as unhas afiadas
e as línguas imperfeitas

é quando ninguém está olhando que surgem as garras

por isso é impossível
impossível simplesmente impossível
vocês compreenderem o motivo do meu choro
e o sorriso de quem está do outro lado

é quando seus olhos não estão sob minhas asas
que ele ataca

esperto sempre foi

às vezes lembro de quando tínhamos 10
a mesma festa com temas diferentes
os amigos misturados entre docinhos
milho de pipoca
e refrigerante

o parabéns cantado duas vezes
e aquela música tocando sem parar

com quem será?
com quem será?
com quem será que Odete vai casar?
vai depender vai depender vai depender
se fulano vai querer

Nascemos com 5 segundos de diferença

é preciso que exista um só de nós
minha mãe dizia:
é preciso que exista só um de vocês para que exista vida

estava certa
era verdade que a gente se anulava

meu irmão passou 9 meses com os pés rígidos na minha garganta dentro do útero
quase que ele não me deixa sair
foi por pouco

eu lembro
se ele tivesse vindo antes
costurava o buraco do meio das pernas de onde veio
e me prendia lá dentro

ainda assim sei que me ama 

apesar daquela vez
quando fomos na feira de domingo

o sol contemplando nossas cabeças
e os olhinhos escuros brilhando refletindo a vida
de repente ele me deu uma banda
e correu
assim sem mais nem menos
me deixou pra trás
arreganhada no chão
no meio da feira

foram me encontrar só de noite
eu hipnotizada
observando os pintinhos coloridos na barraquinha do Seu Luís
pedi pra levar o rosa pra casa
minha mãe deixou

e o ódio aumentava conforme o tempo ia engolindo a casa de grão em grão 

meu irmão nunca entendeu que
diferente dele
eu nasci quebrando aos poucos

clack clack clack

primeiro surgiu um olho

clack

depois outro

clack

ele não
ele já nasceu com tudo amostra
sou isso e ponto final
majestoso justo firme

eu
                    eu ainda tô quebrando
                                                  dá pra escutar daí?
minha tentativa de tirar a perna direita da casca frágil?

meu tempo ainda não chegou
infelizmente infelizmente
estou ainda chocando por dentro esquentando as tripas pro dia do nascimento

CARRO DO OVO: Atualmente, a choca natural foi substituída pelas incubadoras artificiais de grande porte, com capacidade para chocar até 200 mil ovos, e, com isso, de atender à grande demanda do mercado.

ODETE: Obrigada
você escuta o que eu escuto?

está tudo às claras
nesse sistema
ninguém mais respeita o curso natural do tempo
por isso ainda não nasci
e minhas asas não funcionam 

mas quando eu voar
meu irmão vai ver só
vai ver só!

voarei pra longe daqui
dessa casa sem teto que me obriga a olhar pra cima
desejando uma vida solar que nunca será minha

quando eu voar
ele vai ver só!
daqui a pouco sou eu passando no alto firmamento
cagando na sua cabeça

nunca me envergonhei de ser assim
carregar esse corpo
vergonha é roubar e matar

sempre soube que minhas asas são de enfeite
existem pra admiração e só
abrir e fechar
abrir e fechar
nunca sair do chão
e qual o problema?

o cotovelo também não serve pra nada
e ninguém implica com ele
minhas asas pelo menos são bonitas de olhar

OLHA:
limpas macias penteadas
encosta
pode encostar

meu irmão gostava de cuspir nelas
cortava no sabugo quando eu estava dormindo

acordava no susto
com frio
pelada
e ele me apontando o dedo
rindo da minha desgraça

às vezes me pegava violentamente pelos pés
me sacudia o corpo até não aguentar mais 

seus amigos gritando em coro
ela não voaaa
ela não voaa
ela não voaaaa
eu ali
piada em forma de existência que não atingiu as expectativas de quem olha

mas meu irmão esquecia de enxergar a si mesmo no espelho 

ao olhar pra mim
era ele que se encarava de volta
e doía ver que era também exatamente – isso – o que desprezava:

coisa que só pode viver no chão

fingia ser de outra espécie
para impressionar seus amigos voadores
no fundo não enganava ninguém

o lugar onde estamos denuncia nossas pegadas 

nossa mãe dizia
você não é todo mundo!!
em alguns dias
olhava pra ele
e sentia pena
pena pena pena pena

muitas penas

seu ódio por mim
era igual ou maior ao que nutria por ele mesmo
pobre galeto

muitas penas 

quando me via
esbarrava com seus próprios defeitos
não conseguia engolir nossas semelhanças
fazia de tudo para criar fronteiras demarcadas com pedaços de galhos
no chão de terra batida

“você não pode atravessar pra esse lado, Odete, não pode”
e riscava o chão
fazendo uma fronteira imaginária

no fundo não enganava ninguém 

era só olhar pra ver
nascemos com 5 segundos de diferença
impossível apagar as marcas nas patas
que sobrevivem por gerações

quando ele e seus amigos voadores me encurralaram na esquina
e começaram a me dar bicadas e pontapés
gritei alto
de uma vez só:

Irmão
você também não voa

foi daí que surgiu
essa cicatriz.

x—————x————-x—————–x——————-x——————x————-—————–x————–x————–x–x

LEO CALISCO: falava sobre voar?

ODETE: não irmão, bom dia

LEO CALISCO: bom dia, falava sobre voar?

ODETE: não, não falava (treme)
observava o céu e cantava aquela música:
Ah, se Deus me desse
O dom natural de voar
Batendo minhas asas
Voando como um pássaro
Lá, no ar

LEO CALISCO: Ah, se Deus me desse
O dom natural de voar
Eu ia mundo afora
Sobrevoando terras e mar

ODETE: E você tem que saber

OS IRMÃOS: Que eu não ia esquecer você!

LEO CALISCO: ah, o pai adorava

ODETE: sim, você lembra?

LEO CALISCO: eu lembro

ODETE: o nome dessa música é homem pássaro

LEO CALISCO: isso, homem pássaro

ODETE: voou

LEO CALISCO: voou pra longe de você

ODETE: de nós

LEO CALISCO: sim, voou voou, pra bem longe

ODETE: está do outro lado do mundo de tanto que voou

CARRO DO OVO: mira o chão
cisca cisca odete
cisca mira o chão
cisca cava a terra cava
Reproduz

espera

acho que está a procura de algo
alguém

ela procura uma resposta
vai odette
você consegue
você tem um t só no nome
mas sabe cavar
cava odette
cisca

mais rápido
mais rápido
mais rápido

você tem pouco tempo de vida

ODETE: eu faria igual

LEO CALISCO: como?

ODETE: se pudesse também voava pra longe de mim

LEO CALISCO: de nós

ODETE: mas é diferente, ele não tinha pernas, imagina ter asas e não ter pernas

LEO CALISCO: ter que ficar pra sempre voando

ODETE: voar voar, subir subir

LEO CALISCO: pra sempre, imagina

ODETE: não ter pernas pra pousar nunca

LEO CALISCO: não poder parar em canto nenhum

ODETE: deve ser cansativo não poder descansar

LEO CALISCO: deve ser cansativo

ODETE: deve ser

CARRO DO OVO: esse povo não cansa
esse povo não cansa de
olhar pra cima
é de dar dó
o céu azul imenso povoado de asas

ODETE: me conta o que viu hoje lá fora?

LEO CALISCO: não tinha nenhuma alma na rua.

ODETE: eu imagino

LEO CALISCO: não imagina.

ODETE: imagino, é só o que posso fazer aqui
…imaginar aqui dentro

LEO CALISCO: Não tem uma alma sequer na rua.

ODETE: não tem um ovo sequer na geladeira

LEO CALISCO: Muito bem. Já já o carro do ovo passa.

ODETE: E se não passa?

LEO CALISCO: sempre passa

ODETE: mas e se não passa?

LEO CALISCO: Tudo pode mudar de um dia para o outro.
O tempo voa e escorre feito gosma.
Tudo que a gente conhece pode se transformar de acordo com a temperatura:
Estala um ovo imaginário na frigideira.
Uma mulher pode virar um cisne ou um jacaré. As praias podem ficar para sempre vazias. O ano pode nunca mais virar. Metade da população pode ser fulminada. Talvez eu nunca mais me olhe no espelho. É possível que a gente nunca mais veja o papai e ele esteja em um lugar com um fuso horário totalmente diferente e foi por isso que não respondeu minha mensagem. Pai, você me ouve aí do alto?
Posso me mudar amanhã ou morrer aqui. Andar de bicicleta ou levar um milho em alta velocidade no peito.
Mas a voz sempre surge
o carro do ovo sempre
                                              sempre
                                                       sempre passa.
E a gente reproduz.

ODETE: impossível, teríamos que comer as cascas, ainda bem que eu guardo
                                                      as cascas

LEO CALISCO: Não sou eu que digo. Tem sido assim desde que o mundo é mundo. Tá escrito, escrito bem aqui no livro da vida e quem crer será salvo.

CARRO DO OVO: o livro de capa preta
leva ele pra cima e pra baixo
só usa quando é conveniente
eu que ensinei

muito bem muito bem

LEO CALISCO: Você me deu de presente quando eu tinha 7 anos e não larguei mais.

CARRO DO OVO (Leo Calisco dubla a voz microfonada):
No início, tudo era o verbo, e o verbo estava com o Ovo.
E o verbo era o Ovo.
Todas as coisas foram feitas por Ele, e sem Ele nada do que foi feito se fez.
Nele estava a vida, e a vida era a luz dos homens. Aquele que vem a mim 
nunca terá fome.
Eu disse. Essa é a verdade e a vida. Quem crê viverá.
Nunca mais terão fome,
nunca mais terão sede.
Não os afligirá o sol
nem qualquer calor abrasador.

LEO CALISCO: Minha irmã, você não tem fé?

ODETE: Fé eu tenho. Fé e fúria.

LEO CALISCO: E fome

CARRO DO OVO:
às vezes eles também riem
gargalham no vazio
em uma espécie de cacarejo amplificado que dá eco nos 4 cantos do bairro

eu permito
nem só de ovo viverá o homem!

ODETE: quando vou poder ir lá fora?

LEO CALISCO: quando galinha criar dente!!

CARRO DO OVO:

A fome continuava rigorosa na terra

bem longe
do outro lado do mundo
passa um enorme pássaro no céu aberto
tão grande que faz sombra na pequena casa de um cômodo só

não, não é um pássaro que passa
é um helicóptero
um gavião de aço

eles semeiam o terror na vizinhança
plantam pânico nos moradores
atiram milhos em alta velocidade

foi uma decisão da justiça liberar o uso de helicópteros entre as nuvens 

os irmãos já nasceram cercados

e no momento em que a ave de rapina passa
no mesmo segundo sombreado de vida
uma lágrima densa cai do olho esquerdo de odete

chora 
chora
chora
chora

no escuro
ninguém viu
a gota de pranto
escorrendo até o chão
fazendo lama na terra ciscada
mas eu vi, odete
eu vejo o seu choro daqui de dentro do som
de dentro da casca microfonada

também sou eu o culpado 

e lá fora
no alto do céu
passam não só asas e hélices
mas também fios de energia que se cruzam no topo do mundo
fios e mais fios que nascem de postes de cimento

gosto de dar voltas nessa rua
dou voltas e voltas infinitas como os fios que não acabam nunca
emendam uma história na outra em um emaranhado de sons caóticos

nenhuma das casas têm teto
em todas habitam criaturas que olham pra cima

no meio das paredes infiltradas
elas suspiram
observando a vida solta e inalcançável que existe no alto
no alto no alto no alto

tão perto tão longe
os dias escorrem pelos pés escaldados

ruim é quando chove
alaga tudo

mas essa gente sabe boiar 

percebam
agora mesmo Odete boia
flutua em seus pensamentos
faz isso desde criança 

dança no chão de terra
fazendo formas geométricas com os pés
levantando poeira

cantarola a melodia que passa
passa passa primeiro pelos seus tímpanos
e desemboca ritmada em seu bico

que música é essa que canta?
sim
é aquela do famoso balé
sobre a princesa presa no corpo de um cisne
sua história favorita desde que era uma franga miúda

acho que prepara a sua morte 

vamos assistir ao espetáculo

LEO CALISCO:
Sonha acordada
antes mesmo de nascer aprendeu a construir paredes imaginárias
é quando ensaia voo

uma grande perda de tempo

a imaginação mata
é preciso estar sempre vigilante. focar no que se pode ver com os olhos. matéria numérica. ordem e progresso. as patas no chão. me disseram que na europa as pessoas usam tijolos para dividir o espaço. aqui a privacidade é uma cortina de chita. 
nada se pode esconder.
nem choro nem maldade
nem sorriso nem prazer.

estamos cercados. CERCADOS. 
tudo às claras. ÀS CLARAS.
eu já me acostumei em falar por cima do caos sonoro espacial 1 2 3 4 5
posso tranquilamente organizar os pensamentos apesar de qualquer som e movimento externo 1 2 3 4 5
números nunca decepcionam

a vida toda foi assim
minha mãe falava
Você vai ter que enfrentar o barulho ou começar a existir só de madrugada
mas eu sou diurno!
respondia

acabei amontoando as coisas dentro da cabeça enquanto via as estrelas
                                                                                                         brilhando no alto

de grão em grão a galinha enche o papo
sei a fórmula de Bháskara de cor

CARRO DO OVO:
A fórmula de Bháskara é utilizada para encontrar as raízes reais em equações de segundo grau completas. Para isso, utilizam-se os seus coeficientes, aplicados à fórmula.

LEO CALISCO:
Não precisa dizer nada
Eu sei
Eu sei

um dos coeficientes da equação é sempre elevado ao grau dois 
a mesma quantidade das criaturas que habitam esse espaço
um dois

me pergunta
me pergunta que eu respondo
duvida?
duvida porra?
Pergunta que eu respondo
qualquer cálculo qualquer soma
com 5 anos eu decorei toda a tabela de multiplicação
assim que eu nasci eu dei 5 passos exatos em direção ao sol
eu já sabia meu destino
alto firme forte
proteger e servir
como os números
que são imutáveis
não podemos discutir com eles
por isso o sol nasce às 5:55 todos os dias
e eu canto exatamente 2 horas antes dele aparecer lá na ponta do morro
1           2
DUAS horas
duas
a mesma quantidade das criaturas que habitam esse espaço
1          2
com licença  1  2
com licença  1  2

quando éramos pequenos dávamos 10 passos pra lá
10 passos pra cá
e ainda sobrava chão
agora não
damos 5 passos pra lá
5 passos pra cá
e o espaço já acabou

sim
é assim que a gente vive
NESSE ESPAÇO
NESSE QUADRADO de terra

1  2  3  4  passos pra lá
1  2  3  4  passos
pra cá
e parede
parede
parede
parede
4 paredes
4 cercas elétricas

CARRO DO OVO: Para compreender a ideia de dimensão, o melhor caminho é observar objetos que pertencem a diferentes dimensões e analisá-los com relação às suas medidas.

LEO CALISCO: Apertados que nem quando a gente compartilhava espaço na mesma barriga
9 meses chocantes dividindo nutrientes
e boiando

CARRO DO OVO: Dentro do ovo, o desenvolvimento do embrião acontece em duas fases: antes e depois da postura da galinha. A fase antes da postura dura cerca de 26 horas. Já a fase pós-postura demora 504 horas, ou seja, 21 dias. No período após a postura, os fatores mais importantes que irão afetar o nascimento dos pintinhos são a temperatura, deve estar ao redor dos 37 ºC.

LEO CALISCO:
37 ºC
26 horas
504 horas
ou seja
21 dias
Ave, tá calor aqui
tão sentindo?
um calor de roer os ossos as coxas as asas

CARRO DO OVO: As galinhas, como qualquer outra ave, também são endotérmicas, ou seja, possuem a capacidade de gerar calor profundo, através dos nutrientes, para aumentar a temperatura do corpo

LEO CALISCO: Ave maria, às vezes parece que estamos no forno cozinhando a 180 graus
marinando no azeite
igual receita de Ave Maria

Maria era o nome da nossa mãe

Ave Maria!
atirei pedra na cruz?
parece que vamos ser devorados

estamos cercados
ainda assim não nos veem 

estamos aquiiii
ALIMENTAMOS VOCÊS

Odete nem percebe o bafo que tá
alá
preciso puxar pro chão
tirar sua cabeça das nuvens do além
ACORDA
ACORDA PRA CUSPIR

vamos ser devorados a qualquer momento
nascemos pra isso
só não sabemos quando

a gente lamenta, mas é o destino de todo mundo

como uma chuva 

pode chorar
mas ela vai atingir você

ou seja
o ovo está quebrado
e eu não consigo fazer nada

nascemos com 5 segundos de diferença
muita coisa pode acontecer em 5 segundos

quer ver?
1  2  3  4  5
2
3
4
5

se eu pudesse voltar no tempo tapava o buraco pra Odete não nascer
e se deparar com isso
1  2  3  4  cercas
acordar
comer 
produzir
dormir
repetir tudo de novo

uma vida de reprodução
servos de uma voz guiada

por isso eu fumo
eu posso fumar
ela não

eu sei o que é melhor
proteger e servir
eu sei
assim como 2 mais 2 são 5 e 4 cercas
uma cartela com 30 ovos por 10 reais
faz com que cada ovo saia por 30 centavos cada

em dias vazios
compro um só e a gente divide
que nem meu avô quando contava moedas antes de ir na padaria
dinheiro na mão é vendaval

o pior é isso
amanhã vai ser segunda-feira
o carro do ovo vai passar
no mesmo horário e velocidade
a mesma voz vinda de fora despejando informações
e a ameaça do gavião de aço no céu
perigo de morte

amanhã vamos pagar pra comer
o que a gente mesmo produz
é assim que se leva o tempo por aqui

e o que a gente faz com todas as cascas?
Não importa
Odete guarda tudo em um pote!
ela guarda tudo
TUDO
pra quem vai vir depois

eu sei o que vai acontecer depois
se eu tiver de mal humor
imagino que saio de madrugada
faço contato visual com a primeira infeliz que cruzar o meu caminho
pergunto: você pinta como eu pinto?
se a franga sorrir
eu trago pra casa
se a franga chorar
eu trago pra casa de todo jeito

CARRO DO OVO: Por que o galo bica a cabeça da galinha durante a cópula?

LEO CALISCO: É tudo uma questão de equilíbrio
quando o galo sobe em cima da galinha para fecundá-la
ele posiciona suas patas sobre as asas entreabertas da fêmea

é mais ou menos como tentar subir em uma escada
posiciono minhas unhas
sussurro:
nem um pio

depois, quando já estão cagadas de medo
digo:
eu nunca faria isso com você, você não merece!

torço o pescoço
clack clack
coloco no forno 1 2 3 4 5 horas
lambo os beiços engordurados
lambo os ossos
jogo o resto no vaso e dou descarga

mas eu só imagino
enquanto Odete dorme feito pedra

CARRO DO OVO: As galinhas não caem enquanto dormem porque possuem pés bastante flexíveis e unhas fortes que grudam no poleiro feito garras, proporcionando a estabilidade durante o sono.

LEO CALISCO: Cada semana que passa
aumenta o preço        aumenta as cascas

CARRO DO OVO: Atenção, atenção, nos últimos 12 meses, a gasolina subiu 32%, o etanol, 36%, e o diesel, 40%.

LEO CALISCO: Meu corpo é 60% água
30
% pele
10% medo do céu
vivo pingando suor
1  2  3  4  5  gotas
um calor absurdo dentro desse espaço
estufa desgraçada
não tem ar

olha como ela dança
a dançarina no meio do vapor
morre odete
morre logo

CARRO DO OVO: Com licença, o solo A morte do cisne, foi criado em 1905. Trata-se de uma coreografia que retrata os últimos movimentos de um cisne em agonia, um último voo, antes da sua morte.

LEO CALISCO: Criatura
em um mundo construído com cascas de ovos
a imaginação mata

tem que olhar pro chão 

alô
terra para odete
terra terra milho terra grão de terra
alô odete

viu?
eu não consigo acessar esses movimentos
2 passos pra lá
2 passos pra cá

prefiro os cálculos

como nas receitas de minha mãe. minha mãe. nossa…nossa mãe. Ave Maria, costumava passar os dias na cozinha. que saudade do seu tempero. Ave Maria, com ela aprendi isso, qualquer gesto, qualquer número a mais, influencia no resultado final. gema mole ou dura 1 2 3 4 5 horas no fogão em forno baixo pra ficar suculento e desgrudar do osso. lambo os beiços. lembro de todos os números. de todas as receitas. todas. todas. todas. todas. todas. todas. todas. todas. todas. todas. todas. todas. todas. todas. todas. todas. todas. todas. todas. todas. todas. todas. todas. todas. todas. todas. todas. todas. todas. todas. todas.

3 ovos
2 colheres de chá de alecrim
1 punhado de sal
2 latas de milho-verde
1 ½ xícara (chá) de leite
2 colheres (sopa) de manteiga
½ cebola picada fino
sal e pimenta-do-reino moída na hora a gosto

pena. os números sem ação não servem de nada. é Odete que arquiva as informações completas. o modo de preparo.
eu tenho os números. ela a memória das ações que completam os números. bater rápido mexer devagar. detalhes preciosos.
Que fome.

Ah
é hora do almoço

acabou o show Odete?
acabou o show? 

é hora do almoço

ODETE: Acabei. Acabei de morrer. Agora as instruções, leve uma panela ao fogo médio e derreta a manteiga. Junte a cebola e refogue até ficar transparente.

LEO CALISCO: Infelizmente só temos ovo
é só o que se come
os outros sabores a gente imagina
mesmo assim lambo os beiços.
que dia é hoje? terça quarta quinta sexta? não sei. é domingo. dia de comer fritada. doei meus sonhos. meu tempo. não sonho mais.
e quando penso, penso em números. com o quê eu poderia sonhar? galinhas sonham com o quê?

chocar ovos comer milho ciscar o chão

CARRO DO OVO: Não sabemos ao certo, mas sabemos que elas sonham. Assim como os seres humanos e outros mamíferos, as aves têm um período de “movimento rápido dos olhos”, que significa sonhar. Talvez a maioria dos sonhos delas estejam cheios de imagens e emoções de suas vidas galináceas diárias, ou talvez sejam sonhos ocasionais que resultam de traumas ou desejos de voar como uma águia.

LEO CALISCO: Interessante. preferia não saber. prefiro não ter informação. prefiro não pensar. faço o que tenho que fazer. é assim a vida. o tempo segue um ritmo previsível
1  2  3  4  5  6  7  8
até levar a gente pra beira do precipício.

CARRO DO OVO: E cinco, seis, sete e oito! A contagem do tempo serve como um indicador, para que a gente saiba exatamente quando começar e terminar cada sequência coreográfica.

LEO CALISCO: A gente lamenta
mas é o destino de todo mundo
como uma chuva

pode chorar
mas ela vai atingir você

não existe a fuga. olhar pro céu não adianta. eu tento explicar pra ela. eu já tentei sair daqui. me capturaram em 5 segundos. a imaginação pode te colocar em perigo. a imaginação mata. ela mesma compra a corda para enforcá-la. não existe saída dentro do forno. é nesse espaço que vivemos. acorda. faça as contas. eles não vão permitir que seja outro nosso destino. 1 2 3 4 5. eu acordo. eu canto. eu protejo.

eu compro ovos
que é o mesmo que comprar vida
sobreviver basta

eu acordo. eu canto. eu protejo.

CARRO DO OVO: Galinha choca chocou um ovo. Saiu minhoca da perna torta. Do galinheiro saiu dinheiro. Choca 1, choca 2, choca 3, choca 4, choca 5, choca 6, choca 7, choca 8, choca 9, choca 10

LEO CALISCO: Nascemos com 5 segundos de diferença
eu me safei mais rápido
dei chutes
5 chutes e saí
JUSTO FIRME FORTE

olha pra mim
agora olha pra ela

logo abri os olhos e vi
esse espaço
a odete não
coitada
sonha acordada
ainda tá quebrando

clack clack

eu tenho cara de quem espera?
não
eu não vou esperar o barco começar a afundar para tirar água
vai todo mundo pro saco aqui
vai todo mundo morrer afogado com um tiro no escuro

tenho cara de quem dança?

minha paciência dura exatamente 5 segundos

o tempo que demoro pra gozar
responder algo importante
e abrir os olhos pela manhã

5 segundos

pra comer um omelete
uma franga
viver no vácuo

só por 5 segundos eu olho pra cima
1  2  3  4  5

proteger e servir
não distrair
trabalho acima de tudo
o ovo acima de todos

não sinto nada
e se eu cair, cai todo mundo

bora Odete
vamos comer
bora
eu tenho o poder e vou interferir em todos os seus membros

já ficou pronto?

ODETE: Você viu quando eu fiz a morte?

LEO CALISCO: Não, a morte é sempre igual

ODETE: Tem gente que morre diferente, dessa vez eu pulei bem alto

LEO CALISCO: Você está velha pra isso, se olha no espelho, tem um pé de galinha nascendo bem no seu olho direito

CARRO DO OVO: Os pés de frango são cozidos e comidos em muitos países. Depois que uma camada externa de pele dura é removida, a maior parte do tecido comestível dos pés consiste em pele e tendões, sem músculos.

IRMÃOS: Silêncio! Nem mais um pio!

LEO CALISCO: A hora de comer é sagrada

ODETE: Hoje eu caprichei no sal

LEO CALISCO: Vamos dar as mãos.
Feche os olhos.

Pai nosso que está nos céus, ovo nosso que está na terra, abençoe o alimento.
Odete, você está com os olhos abertos.

Pai, permita que com os nutrientes alcance forças para vos servir fielmente até a morte. Feche os olhos Odete, feche os olhos!

ODETE: Se você está me vendo de olhos abertos, é porque os seus também estão.

LEO CALISCO: Silêncio.

Em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo.
Ave Maria, olhe por nós.
Amém!
Agora já podemos comer.

ODETE: Você quer ficar com a gema ou com a clara?

LEO CALISCO: Amanhã quando o carro do ovo passar, eu vou comprar a cartela de 30 e não precisaremos mais escolher

ODETE: Tudo vai melhorar

LEO CALISCO: Sim, amanhã quando o carro do ovo passar… amanhã.

 

Surge o enorme gavião de aço no céu
Os irmãos se escondem

Os frangos tremem
O tempo voa

CARRO DO OVO:

Olha o carro do ovoOO

Olha o carro, olha o carroOOO

Olha o carro, olha o carro, olha o carro do ovooOOO Passando em sua rua

Olha o carro do ovooOOo, ovos graúdos, ovos branquinhos

Ovos que a galinha chorooou, ein freguesa?

Olha o carro, olha o carro do ovoOOo

A grande certeza do dia.

Quanto dura um dia?
Segunda terça quarta quinta sexta sábado domingo?
Quanto dura os dias? Semana? O mês, o ano?
Tudo acaba, menos eu.

Se quer promoção então a gente faz
Cartela de ovos por 8 reais
Cartela de ovos por 8 reais

Olha o carro do ovoOO passando em sua rua 

São ovos graúdos, ovos de qualidade

Meu som toma conta das casas desde que o mundo é mundo
O melhor preço é aqui
Cartela de ovos por 8 reais 
Pode vir que tem papai, cartela de ovos por 8 reais
Cartela de ovos por 8 reais

Olha o carro do ovoOOOo

São ovos graúdos, ovos de qualidade
O melhor preço é aqui

Ovos graúdos, Ovos branquinhos, Ovos que a galinha chorouuu

Leo Calisco sai voado.
Precisa alcançar a voz.

ODETE: Será que se o ovo é muito grande, a galinha chora mesmo? É o que dizem. As lágrimas de uma galinha valem mais do que as minhas, disso eu tenho certeza. Pelo menos elas têm um fim e servem pra alguma coisa, é útil, enche barriga, mesmo que seja a dos outros. A galinha chora, mas o cliente sorri. É o que dizem. A galinha chora, mas o cliente sorri. É o que fala o carro todos os dias. Você faz sua parte e como recompensa a sua existência continua através de algo que sai da sua cloaca e chega até a boca do freguês mais próximo. Não deve ser fácil tentar voar e não conseguir, isso é verdade. Se bem que voar, ela voa. Mas voa baixinho. Voa sem incomodar. Voa mas não consegue cruzar o céu. mas pelo menos voa, tem coisa que nem sai do chão. Falta coragem. Ou será que anatomicamente ela é incapaz, não importa o quanto ela tente? Coitada. É uma luta que começa perdida. Não importa o esforço, ela é menos desenvolvida e pronto. Mas tentar é bonito. Eu acho bonito. Talvez se ela continuar tentando, a espécie evolua e a galinha um dia consiga cruzar os céus no futuro. Ou talvez ela não consiga voar justamente porque já evoluiu e não precisa mais sair do chão pra fugir dos predadores, com isso foi perdendo a habilidade de voar com o passar do tempo, até virar essa ave domesticada. Isso é uma benção ou uma maldição? Ela não alcança o céu, mas pelo menos transforma a terra em adubo, e se não fosse o animal mais domesticado do mundo e a história fosse outra, os seus ovos teriam outro fim que não o meu estômago. Mas as coisas são como são e ela faz o melhor que pode. Ela faz o melhor que pode, assim como todos nós. É certo que às vezes chora. Mas quem não chora? chorar pro outro sorrir é melhor do que chorar só porque a vida é dura que nem um frango no congelador. Tem sim quem seja mais sortudo, por exemplo a codorna que dá luz a ovinhos tão minúsculos que mal deve sentir eles passando pelo seu cu.

Mas as coisas são como são, assim como me encontro aqui nessa casa.

Hoje eu vou fazer um suflê para o jantar, e deus que me perdoe, mas espero que por hoje isso seja o suficiente. Amanhã eu já não sei. Dizem que vai chover. Mas tudo bem porque amanhã o combinado é que eu faça minhas unhas. Vou pintar de vermelho pra combinar com o tapete. Sempre que eu pinto minhas unhas eu lembro de papai. Quando papai era criança um galo bicou a unha do dedão do seu pé esquerdo e depois disso a vida inteira ela continuou crescendo defeituosa, ele arrancava, mas não tinha jeito, sempre nascia igualzinha, com o mesmo formato estranho, até que ele desistiu, naturalmente. Quando resolveu ir embora ele arrancou a unha deficiente e deixou ela na mesa, do lado do vaso de planta, sem bilhete nem nada. Eu e meu irmão entendemos o recado. Ele não ia mais voltar.

A gente emoldurou a unha pra deixar aqui na parede, olha que bonito que ficou o quadro.

Pra nunca esquecer que

  1. Galos podem ser muito perigosos
  2. Pau que nasce torto nunca se endireita
  3. Tem coisa que desafia o tempo

O primeiro impulso do meu irmão foi jogar a unha no vaso e dar descarga, mas eu não deixei, porque eu acredito na persistência da memória e eu queria ter uma saudade pra guardar. Uma saudade de papai. Não era um homem perfeito, esperava o mínimo da vida e muitas vezes gastou o salário todo apostando em rinhas de galo. O seu favorito era o Negrume da Noite, um galo lindo, com uma crista brilhosa, era famoso por abater o adversário em poucos segundos. No dia que Negrume da Noite morreu em uma das batalhas mais sangrentas que já se viu, papai ficou 9 dias sem falar um ‘ai’, nunca mais foi o mesmo homem. Ali foi o começo de tudo, alguma coisa dentro daquela casca mudou de lugar, mas eu nunca parei de dar milho aos sonhos e sempre que o sol nasce e um galo canta eu —

LEO CALISCO: Voltei.

1, 2, 3, 4, 5, 6, 7. 8… 9…10. 11…12…..15. 20. 20! VINTE?? Que absurdo. Olha que absurdo. Olha como eles são malandros. Eles passam com o carro falando “cartela de ovos por 8 reaaais” pra gente achar que é 30 ovos por 8 reais, porque normalmente o carro canta “30 ovos por 10 reais, 30 ovos por 10 reais.” E a gente pensa “uau, hoje a cartela de 30 tá 8 reais, promoção!”, mas na verdade, é 8 reais por uma cartela de 20 ovos. Olha como essa voz é malandra! Golpista dos infernos!

ODETE: Não fala assim. Percebe bem. Esses ovos são muito maiores do que os da cartela de 30.

LEO CALISCO: Podiam ser do tamanho de um ovo de avestruz, não deixa de ser malandragem, eu não suporto esse tipo de coisa.

ODETE: A voz já é quase parte da família. Será que o avestruz chora quando põe um ovo? dizem que quando o ovo é grande desse jeito, a galinha chora de verdade.

LEO CALISCO: Quem te disse isso? Os fantasmas da sua cabeça?

ODETE: Sim. E os que vivem aqui em casa.

LEO CALISCO: Você só fala bobagem.

ODETE: É só prestar atenção. Agora trata de guardar esses 30 ovos, se bobear você deixa eles espalhados pela mesa até amanhã.

LEO CALISCO: Guarde você. E não são 30 ovos. São 20. Eu já disse. Não sabe contar?

Eu te ensino.

1… 2… 3… 4… 5…

Odete quebra um ovo no chão.

ODETE: Bom, agora são 19.

LEO CALISCO: Desgraça. 600 milhões de pessoas passam fome no mundo. Não é engraçado, Odete.

ODETE: Agora 601 milhões de pessoas passam fome e você só tem……. 19 ovos.

LEO CALISCO: Será que o seu cérebro é maior do que um ovo de codorna? Pensa na galinha. A galinha chorou à toa? As lágrimas da galinha não valem nada pra você! É isso?

Odete estala um ovo na cabeça de Leo Calisco, o som ecoa, a gosma escorre em câmera lenta pelo rosto do irmão.

ODETE: A galinha nunca chora à toa. Isso nunca. Isso nunca!!!

Leo Calisco se agacha devagar até ficar em posição de cócorasA casa de um cômodo só não tem cadeiras.

CARRO DO OVO: Faz tempo que você está aí sentado. Faz tempo que ele está aí sentado. No que você pensa? No que ele pensa? Seu rosto está sujo. O rosto dele está sujo. Não se importa, já se acostumou faz tempo com o cheiro de ovo.

ODETE: Eu sei que com alimento não se brinca. Me perdoa. Principalmente pelo ovo que te taquei, é que a gente tá preso aqui e o medo acabou mastigando minha cabeça. É difícil estar aqui, nessa casa que nasci e sigo ajeitando diariamente. Sempre tirando o pó de cima de tudo. Passado futuro. Nem amanhã nem ontem nem hoje. Aqui no futuro. Sempre tirando o pó de cima de tudo. Móveis quadros unhas defeituosas relógio ovos passado presente futuro. Às vezes esqueço de mim. Esqueço que tenho pulmões. Que sou esse corpo mas também sou tudo o que tem em torno dele. Móveis poeiras sonhos 1 milhão de frigideiras. O que passa aqui dentro dessa cabeça só eu sei…será que a galinha pensa? Uma vez li que elas são capazes de sentir empatia. Se for verdade, a galinha é mais gente do que muita gente. Ontem vi uma reportagem. Faço o melhor que posso. Lavo as mãos, penduro as roupas no varal e de noite escondo desejos dentro do estômago do Brasil. Um dia tive um pensamento tão bobo. Alô? Leo Calisco?

LEO CALISCO: Lembra um dia que a nossa mãe foi estalar um ovo e de dentro saiu um pintinho deformado que se esparramou sobre a frigideira? Lembra do biquinho dele na panela com a gema mole em volta? Lembra que ele só tinha um olho? Lembra do olho olhando pra gente enquanto a gente ficou ali parado sem ação encarando aquele semi- animal quase vivo quase morto? Lembra que depois disso você ficou 2 anos, 3 meses e 5 dias sem comer carne?

Flashbacks voadores
sonhos idosos
primeiras palavras
desejos guardados no fundo de
memórias falsas e
lembranças de vidas passadas cheias de pó

ou seja

Todos os anos de uma galinha condensados em 30 segundos

ODETE: eu lembro eu lembro eu lembro eu lembro       abraço de criança       eu lembro       um limoeiro        eu lembro eu lembro        um ninho em cima do galho        eu lembro eu lembro         um pintinho caindo no chão        eu lembro eu lembro eu lembro        lábios vermelhos         eu lembro eu lembro eu lembro        o pintinho sendo devorado por galinhas        eu lembro eu lembro eu lembro        ovo podre esquecido fora da geladeira        eu lembro eu lembro eu lembro       a dor do parto       eu lembro       correndo de um cachorro desesperada       eu lembro eu lembro eu lembro        glacêaçucarado        eu lembro       a mão chegando tímida por baixo       eu lembro eu lembro eu lembro eu lembro eu lembro       a vó debruçada na janela        eu lembro eu lembro eu lembro eu lembro       Ave Maria escutando Ave Maria na missa de meio dia       eu lembro eu lembro eu lembro eu lembro eu lembro       recebendo a comida no bico       eu lembro eu lembro eu lembro        a gota inundando a estrada de barro       eu lembro eu lembro eu lembro       chupando o dedo        eu lembro eu lembro eu lembro       picada de abelha       eu lembro eu lembro       a primeira pena que nasceu embaixo do suvaco       eu lembro eu lembro eu lembro       olhares curiosos que chegam de fora       eu lembro       lendo em baixo da mangueira       eu lembro eu lembro       a primeira palavra que saiu       eu lembro eu lembro eu lembro eu lembro       quando meu bico respirou o mesmo ar que o seu       eu lembro eu lembro eu lembro eu lembro       os balões iluminados no céu       eu lembro eu lembro eu lembro       o desejo embaixo das cobertas       eu lembro eu lembro eu lembro eu lembro eu lembro       girando embaixo de noite estrelada       eu lembro eu lembro eu lembro       desabotoando botões       eu lembro eu lembro eu lembro        sete tapas na cara       eu lembro eu lembro       Manuela comendo caju       eu lembro eu lembro eu lembro       o primeiro “eu te amo”       eu lembro eu lembro       uma luz amarelada       eu lembro       quando me disseram “eu sinto muito”       eu lembro eu lembro eu lembro       o tombo de bicicleta       eu lembro eu lembro eu lembro        a primeira vez que encostei em um lápis         eu lembro eu lembro eu lembro eu lembro        a ferida descascando no meu joelho        eu lembro eu lembro eu lembro       fogos de artifício       eu lembro eu lembro eu lembro        todos de branco       eu lembro eu lembro       um sofá estampado       eu lembro eu lembro eu lembro       quando descobri que

Eu lembro eu lembro eu lembro eu lembro Eu lembro eu lembro eu lembro eu lembro eu lembro

Eu lembro eu lembro eu lembro eu lembro eu lembro eu lembro eu lembro eu lembro

Eu lembro eu lembro eu lembro eu lembro eu lembro eu lembro eu lembro eu lembro

Eu lembro eu lembro eu lembro eu lembro eu lembro eu lembro eu lembro eu lembro

Eu lembro eu lembro eu lembro eu lembro eu lembro eu lembro eu lembro eu lembro

Eu lembro eu lembro eu lembro eu lembro eu lembro eu lembro eu lembro eu lembro

Eu lembro eu lembro eu lembro eu lembro eu lembro eu lembro eu lembro eu lembro

Eu lembro eu lembro eu lembro eu lembro eu lembro eu lembro eu lembro eu lembro

Eu lembro eu lembro eu lembro eu lembro eu lembro eu lembro eu lembro eu lembro

Eu lembro eu lembro eu lembro eu lembro eu lembro eu lembro eu lembro eu lembro

Eu lembro eu lembro eu lembro eu lembro eu lembro eu lembro eu lembro eu lembro

Eu lembro eu lembro eu lembro eu lembro eu lembro eu lembro eu lembro eu lembro

Eu lembro eu lembro eu lembro eu lembro eu lembro eu lembro eu lembro eu lembro

ODETE: Eu lembro. Nossa mãe, Ave Maria, passava dias limpando o chão. Essa casa… eu não sei o que é… a gente limpa e parece que não limpou, as poeiras entram tudo de novo. O tempo parece que não passa. Quero deixar esse chão brilhando. Mais tarde vou ligar pra Silvana, espero que não fique o tempo todo falando do galo dela de estimação, é sempre a mesma coisa, que o galo dorme no ar-condicionado, que o galo come uva, pipipi popopó. Vê se eu quero saber que o galo tem a vida melhor que a minha??

LEO CALISCO: Fora que você sempre fica triste porque lembra do frango que você tinha quando era criança… Aquele que morreu de repente. Eu lembro.

ODETE: Joaquim. Eu lembro. Foi o primeiro contato que eu tive com a morte. Nunca esqueci a sensação daquele corpinho morno sobre o meu ficando cada vez mais mole até perder totalmente a vida.

LEO CALISCO: É como uma chuva, pode chorar, mas ela vai atingir você

ODETE: E pensar que quando eu comprei ele na feira de sábado, era só um pintinho rosa pink, pequenininho do tamanho de um ovo. Eu lembro. Pena que não teve a chance de se tornar um galo. Talvez hoje eu também pudesse dar uvas para Joaquim.

LEO CALISCO: Eu lembro.

ODETE: E teve aquela vez que você me matou.

LEO CALISCO: Eu lembro, mas você quem pediu pra te cortar a cabeça.

ODETE: Foi o carro do ovo que me disse pra tentar. Eu lembro, você estava dormindo. Eu lembro. Ele disse que eu poderia viver tranquilamente sem a cabeça

LEO CALISCO: Como uma galinha pode correr por aí com a cabeça cortada?

ODETE: Foi ele quem disse. E estava certo, estou aqui.

LEO CALISCO: Não. A cabeça é muito importante, ela sustenta lembranças corpo grãos fôlego cascas e fios.

CARRO DO OVO: Segundo o Guinness, “o livro dos recordes”, um frango chamado Mike conseguiu permanecer vivo 18 meses sem cabeça! Essa proeza aconteceu na década de 1940, nos Estados Unid…

LEO CALISCO: Há! Um frango chamado Mike. Essa é boa. Você acreditou nisso? Um frango chamado Mike. Voz enganadora. Desde o nascimento implantando mentiras. Não lembra do mar de sangue jorrando de você?

ODETE: Mar de sangue. Eu lembro. Eu lembro da poça vermelha, mas sobrevivi. Isso que importa.

LEO CALISCO: Se eu não costurasse sua cabeça em 5 segundos você não estaria mais aqui. Essa voz já está me dando nos nervos.

ODETE: A culpa foi minha. A escolha também. Ouvi a voz e quis experimentar, foi isso.

LEO CALISCO: Não acredite mais no que diz a voz. Promete.

ODETE: O quê?

LEO CALISCO: Não acredite mais no que diz a voz. Promete.

ODETE: O quê? Fala mais alto

LEO CALISCO: Não acredite mais no que diz a voz. Promete.

ODETE: Hãm?

CARRO DO OVO: Não acredite mais no que diz a voz. Promete.

LEO CALISCO: Silêncio. Nem mais um pio, desgraça em forma de som. Me roubou 10 ovos. Astuta como a antiga serpente. A famosa Diabo ou Satanás, que engana o mundo todo. Ela e os seus anjos foram lançados à terra. Só diz meias-verdades. Uma víbora à margem do caminho, que morde o calcanhar do cavalo e faz cair de costas o cavaleiro. Você tá na palma da minha mão. Pensa que pode me enganar. Não compro mais suas palavras, dia desses eu te faço sumir da face das terras, de todas as terras.

ODETE: Você perdeu a cabeça? Esquece que o carro do ovo acompanha a gente desde que o mundo é mundo e é dele que damos e recebemos alimento, ou seja ovo, que é o mesmo que vida?

LEO CALISCO: E em troca ele ditou tudo o que a gente é. Pensa. Ele que nos fez assim. É dele todas as informações que temos. É a voz que nos preenche. Quanto ao alimento, podemos dar outro jeito. O lobo e o cordeiro comerão juntos, e o leão comerá feno, como o boi, mas o pó será a comida da serpente, da voz que engana.

ODETE: Que jeito?

LEO CALISCO: As cascas.

ODETE: Ainda bem que eu guardo as cascas.

LEO CALISCO: Da próxima vez que passar a voz voarei sobre ela com machados,como os homens que derrubam árvores. Ei, está me escutando? Eu sei que escuta. Só assim poderemos renascer como somos. Eu e você. Não percebe que ela implanta ações e desejos nas nossas vidas?

ODETE: Mentira. Ela narra o que faço, mas sou eu que começo os movimentos. Às vezes, ela supõe, ela supõe e acerta. Sempre acerta. Me conhece por dentro a voz. Me diz exatamente o que eu quero porque me conhece desde o ventre. Por isso parece que eu obedeço, mas é ao contrário! Olha:

CARRO DO OVO:
cisca odete
cisca
cava a terra
cava

ODETE: Viu?

LEO CALISCO: Baba-ovo, é impossível saber quem inicia o movimento. Está do lado dele? Da voz? Do carro? Algo que você nem consegue ver? Sou seu irmão, nascemos com 5 segundos de diferença.

ODETE: Me acostumei com sua presença e informações. Se quer tirar a prova, façamos uma rinha de galos, como as que papai gostava de assistir. Vence o que permanece de pé, com forças para prosseguir na luta.

LEO CALISCO: Que seja uma luta de palavras, vou te provar com lembranças e você vai perceber que toda a nossa existência foi a voz quem moldou. Acompanhe o raciocínio 1  2  3  4  5.

Primeiro ano, versículo 1, veio a voz e disse que normalmente somos abatidos nos primeiros meses de vida, mas faria uma exceção porque tinha muita consideração pela nossa mãe, Ave Maria, lembra?

Segundo ano de vida, versículo 2, nos contou bem mastigadinho quais seriam nossos papéis. Eu cantaria todos os dias, seria alto e esguio. Vigiaria o espaço, exerceria meu controle nesse território, e você domesticada, produziria alimento e tiraria o pó dos móveis. Aos três anos me disse que um macho tem cores mais brilhantes, a fim de atrair a fêmea. Use isso a seu favor, a voz disse. Aos 4 anos, versículo 5, disse que sou agressivo, mas fujo quando entro em pânico. A voz disse isso e eu ouvi porque fingia que dormia. Ela disse. Ela disse em sussurro. Mas eu nunca fujo. Eu nunca sinto medo. Aos cinco anos te disse pra ser paciente comigo, lembra? Odete é um símbolo de proteção, a voz disse. Você pode abrir os braços e proteger quem se envolve neles. Carrega um instinto materno, ela disse. Aos 6 anos gritou que nunca poderíamos voar, no máximo sair alguns centímetros do chão. Voar nunca. No sétimo ano de vida, versículo 11, me pediu para te depenar toda enquanto dormia, como castigo. Aos 8 anos, quando quis sair desse quadrado de terra, disse que se quiséssemos sobreviver, a única coisa que veríamos é a vida que acontece no céu. Nono ano de vida, disse que o ovo seria nosso único alimento, nos impediu de comer qualquer outra coisa. Aos 10 anos, no dia de nosso aniversário, deixou o gavião de aço levar a nossa mãe. Aos 11 anos a voz descansou.
Posso continuar até o infinito.

CARRO DO OVO: Os seis dias da criação do mundo devem ser entendidos como longos períodos, são ciclos de milhões de anos por dia.

ODETE: Nossa vida foi determinada por espaço e som. Já não sei mais se sou fruto da voz ou se sou dona da minha própria cabeça. Você me confunde. Quem nasceu primeiro, o ovo ou a galinha?

CARRO DO OVO: Se os primeiros ovos amnióticos surgiram há cerca de 340 milhões de anos, enquanto as primeiras galinhas por volta de 58 mil anos, agora fica bem mais fácil de responder à pergunta inicial. E a resposta é: quem veio primeiro foi o ovo.

ODETE: Não acredito. Eu posso alçar voo? Sim ou não?

LEO CALISCO: Irmã, está escrito: Foram dadas à mulher as duas asas da grande águia, para que ela pudesse voar para o lugar que lhe havia sido preparado no deserto, onde seria sustentada durante um tempo, fora do alcance da voz. Então a voz fez jorrar da sua boca água como um rio, para alcançar a mulher e arrastá-la com a correnteza.

ODETE: Maldita voz. Maldito carro. Como se mata um som?

LEO CALISCO: Em volta do som sempre tem uma pessoa ou um veículo.

ODETE: Amanhã cedinho quando ele passar, será a última vez. Amanhã cedinho quando você passar, será a última vez!!

LEO CALISCO: Voar voar, subir subir

ODETE: Recuperar o que foi perdido no passado

LEO CALISCO: Vai dar muito caldo

ODETE: Muito pano pra manga

LEO CALISCO: De repente podemos descobrir que somos ave noturna

ODETE: Uma coruja

LEO CALISCO: Viver em luz mínima

ODETE: Subir em árvores

LEO CALISCO: Ser uma pomba odiada por todos 

ODETE: Passear em praças, receber migalhas 

LEO CALISCO: Invadir estabelecimentos

ODETE: Um pássaro meio lobo meio serpente

LEO CALISCO: Colado na terra 

ODETE: Sem nunca olhar pro céu 

LEO CALISCO: Ser um dodô 

ODETE: Espécie em extinção

LEO CALISCO: Ou uma codorna

ODETE: Pequeninha

LEO CALISCO: Um morcego que vive em uma caverna

ODETE: Na completa escuridão

LEO CALISCO: Hoje me sinto avestruz

ODETE: Grande indomável

LEO CALISCO: Agora silêncio, lá vem ele, o carro do ovo

ODETE: Que haja som

LEO CALISCO: E houve som

ODETE: Ela, a voz

LEO CALISCO: A criadora do mundo

o som do carro do ovo
a voz microfonada que embala as vidas
está na hora

LEO CALISCO: Não tenho coragem

ODETE: Já não estava decidido? Você mataria a voz, correria até ela com machados.

LEO CALISCO: Pensei por 5 segundos e concluí que a voz me escaparia das garras e voltaria pra se vingar

ODETE: E agora?

LEO CALISCO: Hoje antes de dormir tive uma ideia chocante

ODETE: Estou ouvindo

LEO CALISCO: Colocamos milhos no ouvidos, assim não ouviríamos mais nada que ela diz

ODETE: O que os olhos não veem, coração não sente.

LEO CALISCO: o que ou ouvidos não escutam, as asas não reproduzem

CARRO DO OVO: É o carro do ovo passando em sua ruuua, OoOovos graúdos, ooOOvos fresquinhos

ODETE: Mas também não iríamos conseguir nos escutar

LEO CALISCO: já quase não nos escutamos direito 

ODETE: Podemos falar com o corpo

LEO CALISCO: Fazer mímica

ODETE: Ou simplesmente não dizer nada nunca mais

LEO CALISCO: O importante é matar a inflûencia externa

ODETE: Desfazer o que fizeram de nós

LEO CALISCO: Toma, 2 milhos pra você, dois milhos pra mim, 1 2 3 4

ODETE: 1 2 3 e já

LEO CALISCO: Sufocamos a voz que nos gerou

ODETE: um silêncio de morte

LEO CALISCO: Não te escuto

ODETE: Agora já somos

LEO CALISCO: Não me sinto diferente

ODETE: Agora você é

LEO CALISCO: Nova criatura, as coisas velhas já passaram; eis que tudo se fez novo.

ODETE: Preciso desfazer tudo que antes foi dito pela voz

LEO CALISCO: Hoje sou eu que cozinho

ODETE: Me sinto igual

LEO CALISCO: Vou assar um frango recheado

ODETE: A galinha dos ovos de ouro

LEO CALISCO: É coisa de tempo, tempo tempo tempo

ODETE: Tudo é permitido

LEO CALISCO: O tempo voa, já já a gente vira o que a gente é

ODETE: Esperar e não se abater

LEO CALISCO: Estamos seguros.

ODETE: Não te escuto, porque você está me dando um ovo vazio?

LEO CALISCO: Sim

ODETE: Um ovo defeituoso, vou colocar em um quadro

LEO CALISCO: Uma persistência da memória

ODETE: Espero virar um cisne de pescoço longo

LEO CALISCO: Um silêncio de morte

ODETE: O que será que tem lá fora?

LEO CALISCO: O beicinho trêmulo

ODETE: Ouvi falar de um rio secreto que flui através das entranhas da terra

LEO CALISCO: Uma profecia

ODETE: Um rio que atravessa a grandes cidade sob as ruas de concreto e pedra

LEO CALISCO: Jesus maria josé

ODETE: Um rio que nasce na boca do submundo como uma cobra que devemos seguir

LEO CALISCO: Temos que ir pelas beiradas

ODETE: Um abismo entre nós, Leo Calisco

LEO CALISCO: As lágrimas

ODETE: Um coração de eco

LEO CALISCO: Esmaguei todas

ODETE: Por isso a carcaça dói

LEO CALISCO: Preciso parar de fumar, nova criatura eu sou

ODETE: Sinto minha boca podre

LEO CALISCO: Só não paro agora porque acabei de começar

ODETE: Será que deixei algum rastro de mim?

LEO CALISCO: Fumei 120 cigarros em uma semana

ODETE: Sumir e aparecer

LEO CALISCO: Acabou o juízo

ODETE: Essa vontade de ir embora que não some

LEO CALISCO: Você falou comigo?

ODETE: Somos territórios flutuantes

LEO CALISCO: Vou te chamar de você

ODETE: Aprendi sozinha

LEO CALISCO: Amanhã você me responde de volta

ODETE: Sozinha

LEO CALISCO: Era alguma coisa sobre o tempo

ODETE: Sempre vai existir o sonho

LEO CALISCO: Não lembro mais o quê

ODETE: Não basta só imaginar

LEO CALISCO: Ai…

ODETE: Tem que tirar de dentro do crânio

LEO CALISCO: Quanto querer…

ODETE: Fechar o corpo

LEO CALISCO: Abrir virilhas

ODETE: Se benzer

LEO CALISCO: Amar muito

ODETE: Deixar que passe a vida

LEO CALISCO: Morrer cedo

ODETE: Arrastar os dias com a ponta do dedo mindinho

LEO CALISCO: Desfilar em avenidas

ODETE: Mudar de cidade

LEO CALISCO: Arrastar o topo da cabeça no concreto

ODETE: Respirar no meio do verde

LEO CALISCO: Esparramar as pernas

ODETE: Manter o calcanhar em direção ao centro da terra

LEO CALISCO: Eu e o mar que nunca vi

ODETE: Exorcizar o tempo

LEO CALISCO: Soltar gritos de alegria

ODETE: Comer picles até dizer chega

LEO CALISCO: Amanhã amanhã

ODETE: Não ouvir um áudio sequer até completar 70 anos

LEO CALISCO: A ânsia de vômito

ODETE: O cisne branco onde de dentro sai uma jibóia

LEO CALISCO: Coisas que te enfiam goela abaixo

ODETE: Um alívio

LEO CALISCO: Não sei se é o chão ou se sou eu

ODETE: Nunca mais ouvir a cigarra

LEO CALISCO: Velhices mal planejadas

ODETE: Ouvir só a barulheira da saudade

LEO CALISCO: Um silêncio de deserto

ODETE: Quando a cigarra canta é na certa mais calor que vem aí

LEO CALISCO: Achei que tinha te apagado da minha memória

ODETE: O sol batendo na crista

LEO CALISCO: De olhos fechados vem seu rosto

ODETE: Porque a galinha atravessou a rua?

LEO CALISCO: E depois eu choro

ODETE: Pra achar sombra e água fresca

LEO CALISCO: Minha voz meu corpo minha herança de água

ODETE: Andar em círculos

LEO CALISCO: Virar um atleta

ODETE: Esse chão que me viu tropeçar e cair

LEO CALISCO: Me esforçar durante anos pra executar um giro perigoso, uma manobra de vida ou morte

ODETE: Olha como brilha

LEO CALISCO: Reinventar as dimensões do meu mundo

ODETE: Dependendo de como as coisas vão se encaminhar

LEO CALISCO: Aprender a usar pregos

ODETE: Eu desisto

LEO CALISCO: Um operário nunca é feliz

ODETE: Desisto de tudo tudo

LEO CALISCO: Não temos nada além disso

ODETE: Tiro os milhos dos ouvidos

LEO CALISCO: Chão fogo e água

ODETE: Me costuro de volta em prantos

LEO CALISCO: Estão queimando nossas histórias

ODETE: Melhor sair de mim mesma

LEO CALISCO: É preciso estar atento e forte

ODETE: Comprar um pássaro transparente

LEO CALISCO: ficar em silêncio por 5 segundos

ODETE: Do fim faço começo

LEO CALISCO: Paciência

ODETE: Bater com a cabeça na terra até que dela nasça um brotinho de coragem

LEO CALISCO: As lacraias já tiveram 2 metros de comprimento

ODETE: Cuspir nos pés para engraxar os sapatos

LEO CALISCO: Depois encolheram

ODETE: Jamais tocar uma coisa só

LEO CALISCO: Posso fazer uma confissão?

ODETE: Tenho fome

LEO CALISCO: Um dia coloquei um pé pra fora do terreiro

ODETE: Ah sim, as cascas

LEO CALISCO: Ninguém sai de casa a menos que casa seja a boca de um leão faminto

ODETE: Sim, as cascas não são pro meu bico

LEO CALISCO: Achei tudo muito parecido

ODETE: Gosto de nada

LEO CALISCO: Se eu escolher ficar aqui é porque quero

ODETE: Um gosto de vento

LEO CALISCO: Não somos obrigados a nada

ODETE: Bife de cu, como diria minha avó

LEO CALISCO: Com o que vamos sonhar agora que tudo é visível?

ODETE: Sim, as cascas

CARRO DO OVO: olha quem chega lá no céu
o barulhento gavião de aço
que faz sombra na terra

perigo de morte

os irmãos não escutam
eu avisei

avança veloz a ave de rapina

piu piu piu piu piu piu piu piu
piu piu piu piu piu piu piu piu
piu piu piu piu piu piu piu piu
piu piu piu piu piu piu piu piu
piu piu piu piu piu piu piu piu

CARRO DO OVO: um dia da caça
um dia do caçador
é uma pena
muitas penas
nasceram com 5 segundos de diferença

piu piu piu piu piu
piu piu piu piu piu

CARRO DO OVO: Foge Leo Calisco
Foge
Corre
Ainda dá tempo
Rápido
Mete o pé
Sai voado
Inventa uma rota

coitado
pobre galeto
nem viu o milho chegando

piu piu piu piu
piu piu piu

CARRO DO OVO:
1 sobrevivente em fuga
uma lápide imaginária com três palavras: alto firme forte
um silêncio de morte no meio do sol que vai embora

chora Odete
chora
chora
chora
chora

chora
chora
chora

Chora
E suas lágrimas transformam o quadrado de terra em um grande lago
A vizinhança olha pro alto admirada
uma imensidão de vozes ecoam

o que é aquilo lá?

o que é aquilo lá em cima?                               o que é aquilo no alto?
o que é aquilo lá?

O que é aquilo lá em cima?

o que é aquilo no céu?
                                            o que é aquilo que passa entre as nuvens?

o que é aquilo no céu? Lá em cima? o que é aquilo?
                                                                                       Ave Maria, o que é aquilo?

o que é aquilo lá no alto?

                                           o que é aquilo lá lá lá em cima?

É um pássaro?

É um pássaro?
                                         É um pássaro?
                                                                É um pássaro?
                                                                                         É um pássaro?

É um avião?                 É um avião?               É um avião?                É um avião? 

É um avião?
É um avião?

NÃO.

 

É UMA MULHER CRUZANDO OS CÉUS
Deixando pra trás tudo

 

seu corpo suado reluz coberto por 1 milhão de penas brancas como as nuvens

 

QUE ASSIM SEJA