Primeiras Dramaturgias

Cabeça de Frade

Os elementos da cozinha traçam o caminho dessa história. A peça está dividida em 4 momentos, sendo o primeiro o Sal, que faz referência à travessia do Atlântico. O segundo se chama Açúcar, representa o Brasil colônia. O terceiro se chama Acidez, representa o Brasil moderno, e quarto leva o nome de Gordura, representa a contemporaneidade, todos devem ser anunciados para a plateia. O cenário é uma cozinha, há uma bancada que balança simulando movimentos do mar.

O personagem tem três posições nessa bancada, essas posições levam o nome de: “Algo Técnico”, “Algo Afetivo” e “Algo Entalado”. Nas primeiras cenas o personagem deve dizer o nome de cada posição. No “Algo Técnico” o personagem fica sob um foco de luz na ponta direita da bancada. No “Algo Afetivo” fica em um foco de luz na ponta esquerda da bancada. Por fim, “Algo Entalado” fica em um foco de luz no meio da bancada.

PERSONAGENS

PERSONAGEM 1 (CHARLES JUNIOR, menção à música de Jorge Ben), pessoa negra que aparenta entre 25 e 35.
PERSONAGEM 2, representado por um pilão quebrado.
CENÁRIO: cozinha

SAL

Charles Jr está sentado no chão em um canto escuro, ele parece estar passando mal, como se estivesse mareado. Ele respira fundo e fica um tempo de olhos fechados. Ao fundo surge a música do Cassiano, Onda:

CHARLES JR: “Não é possível, tomara que passe logo”… deve ser porque é a ­minha primeira vez, agora não tem mais volta né? Tenho que aguentar.

Blecaute.

[Algo Afetivo]

Charles Jr aparece em pé na bancada e enquanto prepara um mise en place recita o ponto de Preto-velho feito por Luiz Antonio Simas.

CHARLES JR: “Ele veio de longe
Do outro lado do mar
Ele veio de longe
Mas trouxe a terra pra cá”

[Algo Técnico]

Pedido de silêncio acompanhado da frase: “23 segundos!”
Inicia uma contagem decrescente seguido da frase “No Ar”.

Bom dia pessoal, primeiro quero agradecer o convite para participar desse programa maravilhoso, é uma alegria imensa poder compartilhar um pouco do meu trabalho com os fãs do Viaje com Sabor, aqui no canal CdC, e aqui vai uma confissão, sou um fã, é a realização de um sonho estar aqui.

Como toda boa viagem tem histórias polêmicas, aqui vai a minha…

[Algo Entalado]

Onda, foi somente onda?

Não, não são só as ondas o motivo de eu estar mareado, são as lembranças, pensamentos confinados, apertados, nem de pé nem deitado. É a lembrança da duração, dois meses, dois meses, aqui, preso, até chegar ao destino! Destino, afinal, qual é mesmo o destino?

E você, o que te deixa enjoado?

Sobe a música Onda

[Algo Afetivo]

O personagem está com um caderno na mão, a lembrança simula o jogo de perguntas e respostas, Stop ou adedanha.

Stop, Stop! Como assim, vó? É impossível achar fruta com ‘q’! (pausa, e simula uma pesquisa no celular)

Sim gente, é isso mesmo, a vó tem razão, quiabo é fruta. Como é que a senhora sabe disso vó?

É, to vendo aqui na internet… e tem uma flor linda,né? Amarelada com tons de vermelho no centro, é isso mesmo, vó?

Que difícil, vê se estou repetindo certo.

Quingombô, gombô, quibombô, quigombó, quibombó, quimbombô, quingobó, quingombó e quingombô.

Pausa.

Africano, a senhora sabe de qual região?

Tranquilo vó, eu sei, vamos ver se tem aqui na internet. Aqui fala que é da região da Etiópia, a bisa chegou a comentar algo sobre o lugar com a senhora?

Nossa que genial vó, me conta mais sobre as sementes escondidas nos penteados.

Lembrou, o que foi, quimbundo? Que é isso, vó? (risada constrangida)

Deixa eu ver (acessa o celular), aqui diz que quimbundo é uma língua de origem do noroeste da Angola, será que é de lá que a família da bisa veio?

[Algo Técnico]

Quiabo! Pois é, esse é polêmico, tem os que amam e tem os que odeiam.

Mas ao meu ver esse coitado, sofre uma perseguição injusta. O quiabo é delicioso, desde que saibam lidar com as características dele.

Para provar que se trata de uma iguaria, vou ensinar a transformarem o quiabo em um petisco.

Tem gente que não gosta devido a baba, mas para retirar a baba é simples, basta um pouco de acidez, ou se preferir pode usar bastante calor.

Nessa receita, para lidar com o quiabo, vamos precisar de muito calor. Aqui vai a dica do chef, para ficar crocante, o quiabo precisa estar bem sequinho,se puder escolher, prepare em uma chapa de ferro bem quente, ela é mais eficiente no processo de desidratação.

Charles Jr pega um pilão.

Antes de iniciar o preparo do quiabo vou ensinar o preparo do tempero base, ele pode ser preparado de maneira mais rápida usando liquidificador, mas escolhi fazer no pilão.

Socar ou moer os alimentos no pilão feito de madeira ajuda a liberar o aroma e sabor dos ingredientes. Além é claro, de me trazer uma memória de comida feita sem pressa, comungada desde o preparo até poder consumir.

Com a base pronta, você vai temperar o quiabo. Depois sele na chapa de ferro, enquanto isso coloque uma camada de sal grosso sobre uma forma. Transfira os quiabos selados para a forma e leve ao forno.

No pilão, coloque um pouco do sal grosso, acrescente um pouco de água, a ideia é ter algo parecido com água de mar

Charles Jr começa a socar o pilão.

[Algo Entalado]

Macerar
Amolecer
Algo sólido
Por meio
De um líquido

Maré
Pancadas
Amassados
Sonhos
Apartados
Apertados

Mar será
Extrair
O suco
A “saldade”
O suor

Mar foi
Caminho pra não voltar
Técnica de modificar
Onda de mortificar

Oh Mar
Na banda de cá
Seu sal pra curar
A saudade
Marcada na pele
De quem quis voltar

[Algo Afetivo]

O personagem está com um caderno na mão, o momento simula o jogo de perguntas e respostas Stop.

Stop, Stop!

Ah não, melancia não é uma fruta!

Vó, a senhora tem certeza?

(Pega o celular e pesquisa) Eita melancia é prima do pepino, é uma hortaliça.­ É engraçado né (se dirige ao público, principalmente pessoas negras), pessoas que às vezes nem conhecemos vão dizendo coisas e a gente vai acreditando­ sem contestar.

A senhora sabia de tudo isso, e eu nunca parei para escutar, é como a senhora mesmo diz, casa de ferreiro espeto de pau.

Agora tá explicado porque o pai gosta de comer melancia com farinha, ou no almoço, melancia é salada. (risada)

[Algo Técnico]

Enquanto o quiabo está no forno, vamos ao preparo do porco. Seguimos com nosso amiguinho aqui (mostra o pilão). Vamos começar macerando­ um pouco de sal grosso, alguns dentes de alho, um pouco de Ukazi,­ sálvia para ressaltar o gosto da carne; semente de coentro, alecrim e pimenta.

(Com o pilão na bancada junta todos os temperos, quando vai pegá-lo deixa cair, o pilão quebra) Gente, produção! Mil desculpas, estou um pouco nervoso, ainda tem essa situação do balançar que não estou acostumado. Me perdoem, de verdade. (Enquanto se desculpa já vai querendo limpar, abaixa pega as partes do pilão e coloca em um canto).

[Algo Entalado]

Eu sempre me desculpei, mesmo quando não precisava! Sempre quis limpar, mesmo não sendo minha função. É comum eu começar me desculpando…

Neste momento acende um foco de luz onde está um pilão partido em dois, em uma das partes, como se fosse uma espécie de bandeja terão alguns brigadeiros de café com caramelo salgado.

[Algo Afetivo]

Desculpe professora, mas não é legal falar isso. Minha mãe disse pra eu nunca dizer que meu irmão é espírito de porco. Ela conta que a bisa, dizia que essa expressão surgiu por causa de um senhor que queria assustar ela e os irmãos dela.

Quando eles chegaram aqui, no lugar que eles moravam, tinha um senhor que obrigava as pessoas a matar o porco, ele se divertia com o pavor que via nos olhos dessas pessoas. O senhor achava divertido porque sabia que na cultura da bisa, as pessoas tinham receio de matar porco, porque eles acreditavam que o espírito do animal morto passava para o corpo da pessoa que matasse o bichinho.

[Algo Técnico]

Olha gente, estão vendo esse corte, Boston Butt é o nome chique, mas vocês também podem encontrar como copa lombo, ou para os mais íntimos, bumbum de porco.

No preparo dessa peça (ênfase), para que o osso saia facilmente e limpo, é importante que a carne seja preparada a partir de um método lento de preparação em lume brando.

Com o tempo prolongado e com a temperatura pouco elevada, a carne fica bem tenra, o que facilita o processo de desfiar ou cortar em pedaços.

Depois de pronta pode ser servida como recheio de um sanduíche. Para dar um toque pessoal, no meu restaurante eu acrescentei notas agridoce usando um catchup de melancia.

Minha avó quem me ensinou essa receita, ela chamava de compota, mas pra ficar mais chique e mais caro, coloquei um nome estrangeiro.

Desculpa gente, tô brincando, na verdade é porque se trata de uma técnica de preparo um pouco diferente.

Deixando de lado as sessões de graxinha, vamos ao desafio que a produção pediu pra preparar. Pergunta na tela por favor!

Ih gente, espera, desculpa, desculpa. Antes de colocar a pergunta vamos falar do prêmio.

O ganhador vai poder desfrutar de um delicioso café colonial no vale do Paraíba fluminense, na fazenda Santa Eufrásia.

Agora sim, vamos à pergunta. Ai gente, é a falta de costume

Envergonhado começa a ler a pergunta.

Quais das afirmações abaixo, a respeito da melancia estão corretas?

A) é vermelha

B) era branca

C) sem doce

D) é doce

E) comunista

F) africana

G) uma arma

H) todas as alternativas anteriores

[Algo Entalado]

Ufa, ainda bem que ninguém acertou, a Fazenda Santa Eufrásia não é aquela que resolveu achar que fazer cosplay de escravos traria uma expe­riência para os seus clientes.

A ideia de escravidão como atrativo turistico é dos mesmos criadores da melancia comunista, só pode. Vocês sabiam que teve uma época que melancia era como uma agente secreta. Eu fico imaginando a falta do que fazer dessa gente “Ai, essa africana infiltrada, com o seu vermelho aveludado, sua doçura e suas sementes pretas espalhadas em nossas terras, criam essa besteira de desigualdade, algo impossível na democracia”.

Os que defendem o meio ambiente são verdes por fora e comunistas por dentro.

Fala verdade, é muita falta do que fazer, só gente que ficou rica sem nunca ter precisado trabalhar para ter tempo de inventar uma ideia torta dessa, né não?

Parafraseando a poeta Yzalú, pessoas negras são como mantas kevlar. São preparadas pela vida para suportar o racismo, os tiros e o eurocentrismo.

Abalam, mas não deixam nossos neurônios cativos.

[Algo Afetivo]

Mãe, eu sei que a senhora acha perigoso cozinhar feijão, mas eu posso fazer, quero ajudar.

Sim, também sei que cozinhar feijão não é simples, sei como a senhora gosta, eu fico aqui sempre reparando…

Começa a descrever o trabalho da mãe, entra uma música saudosa e festiva.

Era assim que começava!

Com um som que de longe se identificava, um vai e vem sincronizado, nem forte nem fraco, a quina da pia já marcada pelo bailado, tecia o fio do sabor.

Acendia! O cheiro de pólvora, sempre me agradou, até hoje me agrada, mas o do fósforo (ênfase). O cheiro, é o tempero mais abstrato da cozinha, mas sem ele, não há concretude, o cheiro de pólvora misturado com o de ferro quente, mas só gosto na cozinha (ênfase), e tá pronto, as finas tiras de pimenta malagueta se juntam ao tintilar do óleo quente, no movimento de pinça, minha mãe pega uma pitada de colorau, limpa os dedos no pano de prato.

Na sequência, coisa que até hoje não aprendi, acho que mais por falta de coragem! Na mão esquerda (faz os gestos) ela apoia a cebola, e inicia a mágica, cortes, e mais cortes, em alguns instantes a panela está fritando cebola em brunoise, picada na palma da mão. Mal dá tempo de dar uma limpada no pano de prato, e o coentro é picado na ponta dos dedos (faz o gesto de cortar o tempero), e voilá, eu de boca aberta a salivar.

Eu me lembro como se fosse hoje, ela me dizendo que só me deixaria cozinhar se eu a prometesse que não iria usar panela de pressão, que ela só fazia isso pra ganhar tempo, mas a pressão é um perigo. Além do que, pro feijão ficar gostoso mesmo, ele precisa de paciência.

[Algo Técnico]

Mas claro, posso sim.

Vale ressaltar que primeiro eu me tornei cozinheiro, acompanhando principalmente o sustento da família. Só depois resolvi virar Chef, me aprofundar em algo mais técnico.

Mas lá em casa, cresci ouvindo as histórias da Preta Suzana, minha bisa. Segundo minha avó contava, a bisa dizia que através de uma receita seria possível manter a história de nossa família, que nossa comida era identidade, poderíamos reconhecer um irmão nas identidades das panelas.

Ela repetia como um mantra: Comida é afeto,que enfeitiça, muda e cria ideias! (saudosista, sorridente)

Sim, (sério) também tem isso, muito do fato de ter me tornado chef tem relação com o momento celebridade da profissão, a cozinha virou culinária, e os cozinheiros se tornaram chefes popstar, acho que isso me impressionou.

[Algo Afetivo]

Sei mãe, entendo a senhora não querer isso pra mim, mas tenho ambição, não quero ficar só nisso aqui. A gente pode ganhar muito dinheiro com a comida. Claro mãe, não é só pelo dinheiro, eu sei da importância que cozinhar tem pra nossa família, eu não vou perder isso. Só quero estudar, aprender umas técnicas, isso dá uma valorizada entende. Não, não é a mesma coisa, isso que a senhora faz aqui é diferente de trabalhar em um restaurante.

Pensa, com o que aprendi aqui em nossa família, mais um selo de uma universidade, isso vai dizer se sou só um cozinheiro ou um chef de cozinha, entende!

[Algo Técnico]

Na minha época tinham poucos estudantes de culinária como eu, segundo a minha avó, sempre fui um moleque “entrão”. Eu estava determinado, havia duas opções, me formava ou saía formado.

Passei a devorar e decorar tudo de cozinha, aprendi técnicas e mais técni­cas, mesmo assim sentia que não tava fluindo, faltava o tal punch, tinha a sensação de quanto mais chef eu me tornava mais distante da cozinha eu ficava.

[Algo Entalado]

Vocês (aponta para a plateia) sabem a diferença entre um chef e um cozinheiro?

Um tem storytelling, assina prato, o outro tem história de vida, lava prato (rindo). Desculpa gente, não é bem isso, mas vocês entendem o que quero dizer né? (pausa)

Foi ouvindo coisas como essa que me formei ou me formaram, não sei, ou sei, eis a questão. Cheguei até a ouvir que no caso de pessoas assim “como eu” só se fosse formação de quadrilha (pausa).

Nesse momento, aqui, agora (ênfase), eu consigo ver a reação de alguns, não vou expor ninguém, quem tá no erro sabe. (ênfase)

Os olhos se apertam, o peito infla, um longo suspiro a testa franze (pausa): “Mimimi! Eu trato a doméstica que cozinha lá em casa da mesma forma que trato um chef de um restaurante com estrela Michelin”

Aí que eu fui entender minha mãe, para nós cozinhar é reparação histórica, é a forma de homenagear os que vieram antes, eu não nego que quero o torro, mas não se trata apenas de dinheiro,como ela sempre me lembra “cozinhar é um ato político”.

[Algo Técnico]

Ah, você também tinha me perguntado, por que o porco né? Essa é uma resposta fácil, mas não simples, veja, o porco é um animal curioso, é um bicho incrível, possui muitas semelhanças com os humanos.

Além de tudo o porco é uma carne democrática, não se perde nada do bicho, do focinho ao rabo, as ninhadas são grandes, não precisa de muito espaço para ser criado.

Também tem uma carne saborosíssima e, é uma das mais usadas na culinária brasileira, é a base do prato mais brasileiro.

Isso, a feijoada. Assim como o quiabo, ela também é polêmica.

Não, tudo bem, não tenho problema em falar sobre isso, pelo contrário, me agrada muito essa discussão.

Veja bem, pouco importa quem inventou a feijoada, sabe por quê? A pergunta a ser feita não é quem inventou, e sim, quem cozinhava aqui no Brasil?

[Algo Entalado]

A história é muito importante para a culinária, se não fosse por causa dos temperos, os portugueses nunca teriam se lançado ao mar, por exemplo, e talvez nunca tivéssemos que fazer a discussão da feijoada, percebem.

Olha que engraçado, hoje temos uma iguaria chamada torresmo, outros chamam de pururuca. Sabiam que essa iguaria é fruto de um acidente? Tem uma história que diz que a primeira pururuca do mundo surgiu na China, dizem que havia um camponês que criava porcos e que um dia teve seu criadouro incendiado, para não morrer de fome, ele teve que tentar aproveitar a carne que havia sido queimada, e nessa, ele provou um pedaço de pururuca pela primeira vez, adorou aquilo, então passou a se dedicar como fazer aquilo de novo.

[Algo Afetivo]

Lá em casa a feijoada sempre foi um evento, lembro das conversas com o meu pai. Ele era de poucas palavras, aquele jeitão quieto que só diz o necessário, mas o que mais te ensina é o que ele não diz. Me lembro de uma conversa marcante que tivemos, um dia enquanto comíamos uma feijoada, perguntei, como pode uma comida ser tão boa?

Ele apontou pro fogão de lenha e disse “Ah, uma feijoada boa se identifica pelo pretume no tacho, tem muito feijão, preto em abundância, tipo uma plantação de algodão sabe, com aquele pretume a perder de vista.

Depois tem que ter bastante carne, não precisa se preocupar com preços, pois não tem precisão de ser uma carne nobre, pode ser aquela carne mais barata do mercado, tipo orelha, pé, nariz, joelho, até o rabo dá pra aproveitar”.

Aí ele foi até o fogão, pegou uma lenha que estava queimando, assoprou a ponta acesa e disse, isso aqui é muito importante, o fogo, calor, muito calor, me mostrou aquela madeira com um vermelho incandescente.

“O segredo para uma boa brasa está na lenha, tem que ser uma lenha daqueles troncos bem fortes, pesados e grossos o tipo da madeira ajuda a alimentar o fogo”.

Então ele ficou ali por uns instantes olhando para brasa. Eu perguntei se estava tudo bem, ele só assentiu com a cabeça que sim. Respirou fundo, e disse:

“Isso aqui carrega muita história, sabia que vermelho-brasa é marca da riqueza desse país, eu mesmo já usei essa cor para espalhar a riqueza por essas terras. Na fazenda que comecei a trabalhar, eu devia ter uns 7 para 8 anos, uma das minhas primeiras funções como vaqueiro foi esquentar ferrete para marcar o gado do patrão. Era como um espeto, só que na ponta carregava as iniciais do nome e sobrenome do senhor, servia para ajudar a encontrar animal fujão ou para que as peças não fossem confundidas com o rebanho de outro senhor”.

[Algo Entalado]

“Alguns anos vivi em Itabira.
Principalmente nasci em Itabira.
Por isso sou triste, orgulhoso: de FERRO (grita)
Noventa por cento de ferro nas calçadas.
Oitenta por cento de ferro nas almas.”

Cem por cento de ferro na pele.

[Algo Técnico]

Porque digo isso, porque é preciso parar para pensar que portugueses e franceses que estiveram nessas terras durante aquele período, não iam para a cozinha, no muito as sinhás diziam o que queriam comer, e as pessoas escravizadas é que iam para a cozinha e se viravam para fazer o que foi pedido.

A pergunta de quem inventou a feijoada tem a mesma relevância de quem veio primeiro, o ovo ou a galinha?

Assim como dizer que a feijoada foi inventada na senzala, também é um equívoco.

Numa feijoada, assim como os negros o feijão tinha que ser em abundância, mas também como os negros e a comida da senzala, era sempre magro e pobre. Não se tem registro conhecido a respeito de uma humilde e pobre feijoada, elaborada no interior das senzalas.

Pensem! Mesmo que usadas as partes consideradas menos nobres do porco, com a enorme quantidade de pessoas que foram escravizadas, imaginem a quantidade de carne nobre que teria que ser consumida para que alguém tivesse a nobreza de dar algumas sobras aos escravizados?

A comida que se fazia na senzala era uma comida de oportunidade, era o que tinha! Então aqui eles comiam e procuravam fazer o que dava. (percebe que se empolgou e brinca.) Desculpa, fugi do assunto, tudo bem né, vamos retomar…

[Algo Entalado]

Basicamente
No dia-a-dia
Só comiam farinha
De milho ou mandioca
Feita com água
Era um angu
Sem sal
BRANCO (grita)
Branco como?
Tipo fome?
Não, a fome é amarela.
Branco quanto, então?
Branco, tipo sal.
Sal, mas pra nós?
Nós, não vale o sal que comem.
Pra nós, só tem sol.
Pra nós, não tem soldo.}
Só soldado!
Que recebe um salário.
Nada salgado.
Pra pôr pra correr.
De “saldade”.
No rosto do sol queimado.
Uma fervente água salgada.

[Algo Afetivo]

Sei que tem aqueles que vão dizer que embora as negras é que cozinhavam, tinha a questão da técnica, que elas precisavam ter aprendido com alguém.

E aqui vai uma curiosidade, sabiam que as comidas de origem africanas são caldosas, com muitas ervas, hortaliças, temperos e carnes em sua maioria defumada.

Rai ai, cozinhar com fogo baixo e devagar pertence a humanidade. A tal técnica para o preparo da feijoada não era nenhuma novidade, o que era diferente eram as condições, pois a escravidão limitava os ingredientes, os improvisos eram a saída.

Lembro de minha avó contar que minha bisa, mais conhecida como preta Suzana, dizia:

“como a comida que tínhamos era sempre pouca, a saída era improvisar, a única forma de fazer uma comida saborosa e com sustância, era tendo paciência, boa parte do sabor está no tempo, é preciso cozinhar devagar, mesmo que fosse trabalhar no campo, deixava o que tinha apurando devagar, depois fazia um pirão”.

Elas me ensinaram que o ato de cozinhar também pode ser uma forma de homenagear os que vieram antes, os primeiros alquimistas da nossa culinária. Eles e, principalmente elas, cortaram, picaram, fritaram e assaram, e mesmo com raiva, com ódio, ainda assim construíram o que chamamos de culinária brasileira.

[Algo Entalado]

Sim, nesse angu, sempre que dava tinha muito caroço, e independente se o bucho estivesse cheio ou não, na comida comungada na senzala ninguém levava meia tigela.

Vocês com certeza já ouviram expressões populares com algumas frases como essas, mas também tenho certeza que muitos não pararam para pensar quais as suas origens.

Pois bem, como já disse, a cozinha também ensina, e a comida tem grande função quando se quer contar a história de um povo.

Para quem não sabe, a expressão nesse angu tem caroço, significa que alguém estaria escondendo algo, tem sua origem em um truque realizado pelos escravizados para melhor se alimentarem, a cozinheira que lhes servia por vezes conseguia dar um jeito de esconder um pedaço de carne ou alguns torresmos embaixo de um angu.

Isso é alta gastronomia, culinária, inventividade, e acima de tudo, é o princípio mais básico da cozinha, alimentar, dar sustância aos que têm fome.

Quanto às demais expressões, sugiro que pesquisem, não quero ficar bancando o wikipreto.

[Algo Técnico]

Eba, adoro esse momento das perguntas dos internautas, confesso que ensaie algumas respostas em casa. (pausa)

Essa é fácil, se não tivesse me tornado chef, queria muito ter sido jogador de futebol. (pausa)

Putz, agora me pegou. (pensativo) Eu acho que é tatuagem, tem uma história na cozinha que, além das marcas de queimadura, um bom cozinheiro precisa carregar uma tatuagem.

Essa (aponta para o antebraço com 3F), você quer a história ou a storytelling? O legal é que até hoje quase ninguém sabe disso. Assim que entrei numa cozinha profissional, eu ainda trabalhava lavando louça, para me enturmar contei para os meus colegas o sonho de ser chefe, inclusive já tinha minha tatuagem que significava: Fogo, Ferro e Fome.

Mas aí tem a história real oficial, quando moleque, queria ter uma tatuagem, fiz essa para homenagear as três coisas que mais amo na vida: Futebol, Flamengo e Festa.

Bom, agora meus amigos que ouviram discursos sobre essa tatuagem, Ferro, Fogo e Fome, três ingredientes essenciais para a revolução da culinária, saberão que sou uma fraude. (risos)

[Algo Entalado]

Fogo, Ferro e Fome
Fogo na mata
Ferro no encalço
Fome na raça

Fujão, ganhei a primeira
Fujão, ganhei a segunda
Fugindo de novo
Fome me mate, antes que ganhe a terceira

AÇÚCAR

[Algo Afetivo]

Charles Jr está em pé na bancada, enquanto descasca laranjas cantarola a música Laranja Madura de Ataulfo Alves.

CHARLES JR: “Boa vida e dinheiro prá gastar
O que é que há, minha gente o que é que há
Tanta bondade que me faz desconfiar
Laranja madura na beira da estrada
Tá bichada Zé ou tem marimbondo no pé”

[Algo Técnico]

Que pena, estamos chegando ao final. Para fechar a minha vinda ao programa quero compartilhar uma receita de família, um delicioso doce de laranja Bahia em calda.

Para essa receita vocês vão precisar de 6 laranjas, podem utilizar a pera caso não encontrem a Bahia. O mesmo peso das cascas será a quantidade necessária de açúcar, acrescente cravo e canela em pau a gosto.

[Algo Entalado]

Eu devia deixar pra lá, mas não dá. Eu tenho mil coisas aqui dentro tá ligado,elas simplesmente saltam da boca… Tipo, lei de terras, quem aqui já ouviu falar?

Toda vez que vou falar de comida, não sei o que acontece, mas ela surge na minha cabeça, como se fosse um alarme, na de vocês não?

Não né, pelas caras, posso ver que muitos nem fazem ideia do que estou falando.

No Brasil colonial, em 1850, Dom Pedro II, isso, esse mesmo, o pai da princesa da assinatura a lápis, ele assinou, dessa vez com tinta, a Lei de Terras, medida que instaurou oficialmente a divisão das terras de zona rural dividida em latifúndios (ênfase), e não em pequenas propriedades.

Latifúndio! (ênfase) Suas consequências confundem-se com os primórdios da agricultura.

Basicamente é assim.

Uma propriedade agrícola de grande extensão pertencente a uma única pessoa, uma família ou empresa, com forte presença de trabalho escravo, com o cultivo de uma monocultura, no caso desse país, cana-de-açúcar (ênfase).

A decisão foi realizada em prol de argumentos desta natureza: “Isso de repartir terras em pequenos bocados não é exequível. Só quem nunca foi lavrador é que pode julgar o contrário. São utopias. Ninguém vai para lá, para o interior do país. Ninguém se quer arriscar.”

Isso foi dito por um deputado, alguém que tinha terras e riqueza sem nunca ter trabalhado, seria cômico se não fosse uma estratégia de extermínio.

Segundo eles, pequenos camponeses não tinham força para expulsar os indígenas e que, por isso, era natural que a terra fosse para os grandes senhores.

Em um único papel e com um pouco de tinta, eles matam milhares de pessoas!

[Algo Técnico]

Aqui vai uma dica do chef, se puderem fazer esse doce em um tacho de cobre em um fogão de lenha, além da experiência, vão perceber que o sabor é outro, o defumado do fogo a lenha faz uma diferença enorme.

Eu indico o uso do tacho de cobre porque o cobre permite distribuir igualmente o calor pelo tacho, o que dá à doceira a certeza de que o cozimento será feito de forma homogênea, isso é um processo extremamente importante para derreter o açúcar e ter uma boa consistência de doce.

[Algo Afetivo]

Nossa vó, como dá trabalho esse doce. Eu não entendo porque a senhora me fez lavar esse tacho aqui todo enferrujado.

Ela me olhou e com toda paciência do mundo me explicou o porquê do tacho. Lá em casa tudo que envolvia comida virava uma aula, não me lembro de preparar nada sem aprender algo novo.

Minha avó fazia questão do tacho e fogão de lenha por conta da chapa de ferro fundido da boca do fogão, e do cobre do tacho. Ela dizia que a junção dos dois era o casamento perfeito, ferro e cobre ajudam na condução do calor e são bons controladores do trabalho com açúcar.

O calor tem tudo a ver com comida, sua principal fonte de alimentação é o fogo, a primeira tecnologia da história. A tecnologia é a arte de dominar uma técnica, isso me leva para  culinária, vocês não? (incrédulo).

A culinária nada mais é que a técnica de cozinhar, logo quem domina a cozinha faz arte, já que cozinhar é preparar alimentos através da ação do fogo.

[Algo Entalado]

Espera, aguenta mais um pouco, não muda de canal não, lembram do que disse minha avó, um bom cozinheiro tem paciência, o avexado come cru.

Deixa eu contar uma coisinha sobre o ferro aqui em off.

Graças ao domínio dele, os povos da era dos metais chegaram ao que hoje conhecemos como cultura, que a princípio era só uma forma de designar uma parcela de terra cultivada.

Pelo poder dele, os bárbaros cultos, isso esses mesmo, aquele povo que jogava fezes pela janela, chegaram em lugares que não conheciam e decidiram que tudo que não conheciam era selvagem, sendo a única forma de salvar a alma daqueles selvagens a domesticação!

Então com o passar do tempo, o que era cultura virou agricultura, e a cultura virou uma desculpa para produção de categorias. Assim os povos de diferentes culturas ajudaram os bárbaros cultos a desenvolverem sua agricultura tornando-a mundialmente conhecida, o famoso plantation.

Para quem não sabe, plantation é um sistema de produção agrícola utilizado pelas nações europeias em suas colônias. Foi trazido para o Brasil para o cultivo da cana-de-açúcar. Seu sucesso se deve ao latifúndio, monocultura, e principalmente à cultura, ou melhor, a suposta falta dela.

Não é possível que vocês ainda não consigam enxergar que isso tem tudo a ver com culinária.

Eu sei que ninguém quer saber o gosto do sangue, mas o vermelho ainda é a cor que incita a fome, depende da hora e da cor, depende da hora, da hora, da cor e do cheiro.

[Algo Afetivo]

E daí quem inventou, foda-se a propriedade!

Os negros não querem ser donos, querem ser livres, livres para criar, para que o único preto no fogo seja o feijão, para juntarem todos os ingredientes que quiserem no tacho e por pra cozinhar nas brasas dos troncos. Que a fumaça, defume tudo à sua volta enquanto espalha o aroma dos ingredientes fritando, que a água de mar e os temperos não sejam os do Atlântico, que o balanço não seja de navio mas sim da colher que mexe o caldo preto na cadência dos batuques da cozinha ancestral.

Os negros contribuíram sim com a feijoada, foram os negros que deram cor, sabor, acrescentaram o tempero do afeto, de a partilharem sempre juntos em um bom samba de roda.

[Algo Técnico]

O tempo do cozinheiro e da cozinheira escravizados, foi marcado pela imposição de terem que reproduzir o cardápio basicamente português, mas já eram chefs e iam experimentando coisas novas, substituindo, trocando ingredientes, colorindo os ensopados com o vermelho do dendê, inventando variedades de moquecas; usando o inhame, a banana cozida ou frita no azeite; recriando o caruru, o vatapá, e até mesmo a feijoada.

Criaram pratos novos com um sabor antigo, que eram os seus, e um gosto novo que aprendiam.

Isso é ótimo, porque me faz o tempo todo lembrar que só posso dar o passo de me dizer chef, porque outros vieram antes, caminharam, e às vezes até sem querer, lutaram para que essa história fosse possível, nossos passos vêm de longe.

Respondendo sua pergunta sobre minhas escolhas, de maneira bem sucinta, a história me fez ter certeza que queria trabalhar na cozinha.

É lindo, porque no final, tudo é histórico, e a minha escolha é só uma parte de uma história que precisa ser contada. E eu posso fazer isso através de uma carne, por exemplo, que exige de mim não só técnica, afinal o que é a técnica?

[Algo Entalado]

“Técnica é arte ou maneira de realizar uma ação ou conjunto de ações, uma técnica é um esforço para reduzir o esforço, vem do grego téchnē.”

O defumado, por exemplo, é uma técnica de apurar carne, geralmente atribuída principalmente aos franceses, que tinham sim uma técnica que usava fumaça para reduzir esforços, a enfumade. A técnica consistia em forçar prisioneiros a entrar em uma caverna e eram asfixiados pela fumaça das fogueiras que os soldados franceses faziam à entrada, alguém aqui já os viu reivindicarem essa técnica?

[Algo Afetivo]

Professora meu ingrediente preferido é bacon, se existir céu, só quero ir pra lá se tiver certeza que tem bacon, ou melhor se tiver porco, eu amo carne de porco.

Ainda bem que superamos o mito do porco ser uma carne amaldiçoada, pelo contrário, tá aí um animal que pode ser totalmente aproveitado, e sempre esteve no lar dos mais necessitados, ajudou a escrever muitas histórias, criou muitas famílias.

[Algo Entalado]

“Ontem eu ganhei metade de uma cabeça de porco no frigorífico. Comemos a carne e guardei os ossos. E hoje puis os ossos para ferver. E com o caldo fiz as batatas. Os meus filhos estão sempre com fome. Quando eles passam muita fome eles não são exigentes no paladar”.

Este trecho é da Maria Carolina de Jesus.

A propriedade é um roubo! Assinado: a Melancia.

AMARGO/ACIDEZ

[Algo Técnico]

Agora que já deixei a receita do doce, gostaria de encerrar minha participação seguindo a tradição de recepcionar visitas em minha família, depois de comer, depois da sobremesa, antes de ir embora, a visita precisa tomar um café.

E aqui vai um alerta: engana-se quem acha que fazer um café é simples, pelo contrário uma boa técnica é que vai garantir a qualidade do café.

Primeiro passo para um bom café, é preciso entendermos sobre sua acidez, e aqui vai mais uma dica: acidez não é um conceito fácil de se definir, também não se pode confundi-la com amargor. As duas são sensações completamente diferentes,a acidez é detectável nas laterais ao final da língua, já o amargor no topo ao final da língua.

Quando se aplica a técnica correta temos um café brilhante, isso quer dizer que a acidez contribuiu para o sabor do café, já quando não usamos a técnica correta temos o café avinagrado. Fato é que a acidez pode ser o herói ou o vilão do café. Nessa conversa não dá pra ficar em cima do muro!

[Algo Entalado]

Café, quando ele chegou no Brasil já na segunda década do século 18, seu cultivo só foi possível por conta do uso de mão-de-obra escrava. Era comprada, pelos cafeicultores, por meio do tráfico negreiro, ou adquirida no comércio interno: os escravizados originários de engenhos e fazendas em processo decadente no Nordeste após o período do Ciclo do Açúcar.

O latifúndio que antes usava a escravidão para o cultivo de cana agora se estabelecia a partir de um novo produto que sustentava uma nova oligarquia, os barões do café.

Estão vendo, toda vez que tento falar de comida a palavra latifúndio aparece para me atormentar.

Tanto no ciclo do ouro branco quanto no ciclo do ouro verde, foram as mãos negras que fizeram fortuna, embora nunca tenham usufruído dela.

O mais impressionante é que vivemos em um passado que insiste em não passar.

Agora é chique os descendentes da riqueza do café abandonarem a dita cidade grande e voltarem para o campo, para plantar café de maneira sustentável e que respeite a natureza. Dizem que a vida imita a arte, logo a culinária também imita a vida, já que cozinhar é uma arte.

[Algo Afetivo]

O único café que realmente tenho prazer em tomar é o do meu pai. E olha que tenho experimentado muitos cafés ao longo da minha carreira, até café cultivado em bosta já tomei, mas não supera o dele, e o mais impressionante disso tudo é que todo lugar que vou, antes de tomar um café é quase um evento, são técnicas e mais técnicas,aqui segundo os entendidos não é possível fazer um bom café sem compreender as nuances do Ph, acidez, são anos e anos de aprimoramento, e quando conto isso pro meu pai só consigo lembrar dele rindo da minha cara, e daquele jeito dele dizendo:

“Para passar um bom café não tem segredo, basta pegar um pó bem preto e colocar em um coador de pano alvo, depois basta vir aquele líquido fervente, que é marcado por não ter sabor, para que enfim o tenha, o resultado é, café coado, a técnica é simples, infusão, processo de absorver o que é do outro para si, seria a infusão uma técnica Antropofágica?”

Vou confessar uma coisa a vocês, não sei se é isso que ele fala, mas é exatamente assim que entendo. Meu pai é pastor, ele adquiriu o hábito de explicar as coisas por parábolas, e aí eu não sei se sei ou não sei, eis a questão.

De repente ele parou, olhou fixamente para mim, e me fez uma pergunta existencial.

Tá bom, ou quer mais açúcar?

[Algo Técnico]

Produção, mil desculpas, mas histórias de cozinha me empolgam, e há tanto a ser dito que só um programa como esse não dá conta.

Com relação a sua pergunta, tem sim, o café dá pra ser usado de muitas maneiras, dá pra fazer pratos salgados, dá pra fazer drinks e até sobremesas, por exemplo um doce muito famoso no brasil e que leva café é o tiramisu, é um doce com origem na culinária mediterrânea e que veio para o Brasil com os imigrantes que vieram para cá justamente para trabalhar nas lavouras de café.

[Algo Entalado]

Também houveram outros que sofreram as agruras do café, embora esses estivessem aqui por motivos de imigração e não por sequestro. Pareceu importante na época acrescentar notas de brancura do leite, para fazer um bom machiatto…

Chega de digressão, vamos ao que dá Ibope, cozinha mediterrânea, quisera eu tivéssemos tempo para contar a história dessa cozinha que surge lá no norte da África, isso até gera interesse, mas não é receita para Ibope. Para isso escolhi apresentar o tiramisù, não tem erro, se quer impressionar, esse clássico resolve. Alguém aqui sabe a origem do doce ou de seu nome? Trata-se de um doce típico, com sabor de casa, tudo bem que só pode sentir esse sabor aqueles que têm condição de traçar sua descendência, também conhecida na culinária como assinatura do chef.

Tiramisu pode ser traduzido como tirar do chão, levantar, pode dizer que é um doce pra dar energia, embora tenha sofrido várias adaptações aqui no Brasil, por vezes estando bem distante da receita original, sempre haverá alguém pra comentar a descendência desse doce e como ele é a ligação de um povo com sua origem. Mas não confundam alhos com bugalhos, eu disse descendência, não ancestralidade. Descendência é mito, é o filtro utilizado para tornar o café mais saboroso, o famoso macchiato, também conhecido mundialmente como latino. Já a ancestralidade não é mito, podem até tentar inventar, tem muito corante pra isso hoje em dia, mas ela é como sabor, existe o artificial e o natural e quem já provou do natural não se deixa enganar por artimanhas e artifícios. Hoje posso dizer que esse tem sido um dos maiores ensinamentos que a cozinha me deu, sabor não se faz, sabor se sente, é química, minha gente.

[Algo Afetivo]

Vamos a um exemplo prático, toda pessoa metida a bom cozinheiro vai defender a teoria da importância de olhar a acidez do azeite quando for comprá-lo, mas essa mesma pessoa não é capaz de te fazer notar a diferença entre um mais ou menos ácido.

Isso não é possível porque estamos falando de sabor, e sabor não se observa, se sente, alguém aqui consegue me dizer a forma do sabor, mas se eu te vendar e te der um pedaço de doce, com certeza você vai conseguir dizer o que sentiu quando provou, Isso é arte no seu estado bruto, e se despir da forma da estrutura, do preconcebido, é romper com a linha do visível, é experimentar o experimental, e a partir de agora entre o seu ser e o ser alheio a linha de fronteira se rompeu. Câmara de ácidos!

O tiramisù embora seja um clássico, é sempre moderno, antropofágico, bebe da origem de si mesmo para fazer do outro algo que agora é. Pra quem não sabe o queijo dessa receita original não existia aqui, então para homenagear os que vieram para ajudar na realização do processo de modernização do Brasil adaptaram os queijos locais para que lembrassem as terras além mar, e para dar mais sabor a tudo isso recorreram a muito café coado.

GORDURA

[Algo Entalado]

CHARLES JR: Não dá para viver sabendo de tudo isso e se dizer bem, tudo isso é angustiante, e como se estivesse o tempo todo em alto mar, balançando de uma onda para outra, a sensação nauseante nunca passa, preciso fazer algo.

Pega um caderno e começa a escrever.

Após um dia de trabalho procure comer em casa, é sempre mais saudável quando preparamos nossa comida.

É importante que evite comer coisas gordurosas ou muito doces, café nem pensar, isso vai atrapalhar seu sono.

No meu caso, minha médica me fez garantir que a ingestão das 10 mg de ISRSN seja tomada religiosamente após o jantar.

[Algo Técnico]

“A duloxetina é um novo antidepressivo, criado pelo laboratório estadunidense Eli Lilly.”

[Algo Afetivo]

Façam sempre como eu, consumam seus alimentos e medicações sempre nos horários recomendados pelos profissionais, em seguida busque algo para terminar a noite de forma tranquila.

Eu costumo, e adoro deitar no chão, de frente para a TV, saco o controle e vou em busca da minha paixão, a última representação sacra do nosso tempo, o rito profundo e também evasão, esse é com certeza um dos meus ingredientes prediletos.

Naquele dia eu tentei fazer isso, mas a receita desandou

Bancada balança mais forte e as coisas começam a cair.

Blecaute.

Acende-se o foco do Pilão e toca a música Charles Junior do Jorge Ben Jor)

PILÃO: Bad, vocês também ouviram bad? Finalmente chegou a hora de eu entrar em cena e brilhar.

E aí Charles, você não vai contar a real?

Acende foco em Charles jr sentado perto da Plateia.

CHARLES JR: Não, não, já falei demais, tô cansado, já que você tá aí cheio de marra, toca o barco!

PILÃO: então tá, desce o som aí que vou contar como que o menino que estava se julgando a nata, talhou.

Foi mais ou menos assim, Charles! Fica a vontade se quiser me interromper, não quero ser acusado de apropriação indébita.

Ele chegou na festa se sentindo o verdadeiro super herói, de fato a fantasia dele era maneira, essas paradas aí de hérois negros.

E tenho que confessar que perto de uma galerinha lá ele tava um verdadeiro cosplay. Tinha um povo bem mal ajambrado, um cavaleiro medieval que mais parecia um membro da KKK.

Eu acho foda, vocês não, a pessoa não saber diferenciar um cavaleiro medieval de um membro da Ku Klux Klan, aí quebra as perna né.  Acho que é por isso que eu simpatizo com o Charles e acho importante contar a história dele. Pensem vocês, fechem os olhos, vamos fazer o exercício de empatia.

CHARLES JR: Ô arremedo de Louro José, vai devagar com o andor aí nesse­ papo de coach motivacional, é óbvio que sei o meu valor, não preciso de você para me lembrar disso, mas é que cansa ficar provando o seu valor o tempo todo, eu achei que quando me tornasse um chef conhecido isso ia melhorar, falando em cansaço, vou ficar na minha, continua seu showzinho aí vai. 

PILÃO: Tu acreditava mesmo que o fato de ser o cozinheiro chefe te daria uma pulseirinha vip?  Desculpa te falar, mas viajou grandão, estava se enganando mano, como é que vocês dizem, tem que saber chegar. Foi meter o loco, ir pro salão buscar aplauso, deu no que deu.Cê tá ligado que o fato de você ascender dá justamente o argumento pra eles dizerem que tá tudo bem? Eles precisam que alguns estejam lá…

Bom voltando:

Vamos começar pelos olhares, tem alguns de vocês aqui que sabem o que tô falando… lembram daqueles joguinhos de criança? em livro didático: identifique o que não pertence ao conjunto, então… Naquela noite ele avistou um senhor vestido de frade, ele estava acompanhado do cavaleiro medieval da KKK, não bastasse todos esses sinais, ele no alto de sua petulância quis ir falar com o santo homem, era uma figura conhecida que não vou citar o nome. O senhor pediu com o olhar  que o cavaleiro não o deixasse chegar até ele, inocente que é, o Junior ainda argumentou, “senhor sou o chef responsável pelo buffet”. Não precisou­ palavra… Sem titubear, ele apontou uma porta lateral, “entrada de serviços”.

Aí veio aquela sensação de impotência, que eu acredito que aqui alguns já vivenciaram. Algo nas pernas, no estômago. Algo mexe dentro…

Adiantou você estudar tanto e não entender o básico?

E desde lá sempre vem aquela ideia, aquele mantra:

Ambos falam ao mesmo tempo:

PILÃO/CHARLES JR: “eu fui um covarde, eu não devia ter deixado ele fazer isso, tinha que enfrentá-lo. Eu não aguentei tudo aquilo para passar por isso, eu sou um chef renomado!”

PILÃO: Mas aí que tá o erro: você deveria ter respondido, (enfatiza) apesar de ser um chef renomado. Você é você e isso basta.

CHARLES JR: Mas como sempre acontece, a gente fica paralisado nessas horas, e tem sempre um silêncio… um silêncio que vem depois, do que não foi dito… um silêncio como esse:

Ruído do mar…Longa pausa, luz fria, acende plateia. Charles Junior chega ao proscênio e exibe uma imagem de uma planta, a cabeça de frade.

Ao chegar em casa, a cama do merecido descanso me espetava por todos os lados. Era como se deitasse numa cama… de cabeças de frade. Espinhos, e mais espinhos, cada lembrança de situação semelhante , cada olhar recebido por não ser o que “se espera”. Cada dia em que o mundo demonstrava , de diversas formas, ditas ou por gestos ao redor, que eu não era o que se esperava, que eu estava no lugar errado.

Eu tentava me esquecer de quem era, e era mais fácil assim.

[Algo Afetivo]

Charles Jr levanta, vai até o balcão, pega sua faca e começa a amolar como sua mãe fazia. Em seguida pega uma cabeça de frade e começa a descascar, em off Charles Jr lê: 

O ingrediente inicial dessa receita é a paciência, é um doce de preparo longo, e com algumas dificuldades, mas o sabor final recompensa a trabalheira.

Começa pela colheita, é preciso caminhar até o lajedo, enfrentar o sol quente, e as dores de alguns furos de espinhos. A cabeça de frade não é fácil de encontrar nem de lidar.

Enfrentando a dureza da colheita é preciso cuidado ao lavar e descascar a cabeça de frade. Com o tempo aprendemos a lidar e, essa tarefa embora dolorida fica mais fácil.

Vai precisar de 3 cabeças de frade médias descascadas, 2,5 kg de açúcar, manteiga, cravo e erva-doce à gosto.

Corte em pedaços e depois escalde; em seguida, antes de levar ao fogo, rale os cactos e volte a lavá-los em água corrente; aperte, tire o máximo de caldo que puder, quanto mais do leite tirar melhor será o resultado. Em seguida  cozinhe o cacto por aproximadamente 3 horas com o açúcar; coloque a manteiga, o cravo e a erva-doce e espere dar o ponto; espere esfriar e sirva gelado ou em temperatura ambiente.

Você vai sentir o ponto quando perceber que a brancura dos ingredientes no tacho está se dissolvendo dando cor ao doce, você vai sentir que está pronto ao longo do tempo, o tempo é essencial, pois enquanto ele corre você vai lembrar que pra encarar essa receita você teve que superar o medo, sua coragem vai ferver a medida que enxergar a luta que foi pra que chegasse no ponto, e quando der o ponto, você vai se cuidar, enquanto a receita apura, quando voltar vai ver que está preparado e que aquele preparo te deu experiências para ser compartilhadas com os seus.

Blecaute.

FIM