Primeiras Dramaturgias

Demolição

Nota #1: No decorrer desse texto, realizo diversas sugestões em relação à encenação e interpretação do mesmo. Essas sugestões não precisam ser necessariamente seguidas por aquelus que, porventura, vierem a trabalhar com essa dramaturgia. São apenas indicações de como imaginei essas palavras colocadas no espaço e, pensando o fazer teatral como um espaço multidisciplinar, achei pertinente colocá-las em minha escrita.

Nota #2: Acredito que uma divisão binária das personagens pela dramaturgia ou como critério para a seleção do elenco poderia reduzir os matizes e as possibilidades que o texto propõe. Por isso, optei por utilizar uma linguagem neutra na escrita dessa dramaturgia, tendo em vista que pessoas de diversos gêneros podem trazer camadas distintas e maior complexidade para as personagens. Quem ler a fala poderá adaptá-la para o gênero que se sentir mais confortável.

Nota #3: O processo de escrita desse texto foi inspirado em diversos materiais, mas principalmente na troca entre um grupo de atories e refugiades moradories da cidade de São Paulo, durante a pandemia. Dessa troca resultaram os projetos “Medo Como Fronteira”[1], “Histórias de Refúgio” e “Roda de Provérbios”, onde esse grupo trabalhou conjuntamente na criação de vídeo-peças, oficinas, etc. Agradeço e dedico esse texto a cada integrante dessa pesquisa, são elus: Hezouwe Soh Tchao, Dilynes Guanipa, Junia Larose, Cecília Schucman, Ana Vitória Prudente e Vitinho Rodrigues.

Essa performance poderá ser apresentada em uma ruína, um terreno baldio ou um canteiro de obras da cidade em que for encenada. No centro desse espaço há uma área fortemente iluminada, delimitada por  tijolos. A plateia se localiza em torno dos tijolos, formando uma arena.

Participantes dessa peça: Kem Narra, Kem Sobrevive, Kem Busca e Kem Duvida.

Prólogo

No centro do espaço cênico vemos um gravador antigo em cima de um monte de tijolos, dele podemos ouvir uma narração da última fala da peça em kabye[2], seguida por uma versão em creole[3] e castelhano.

Cena I

CORO COM TODES ES PARTICIPANTES: O fim está próximo. O fim. Disseram e disseram e disseram e eu não acredito. Disseram na virada do primeiro milênio, como eu pude conferir após uma rápida busca no Google, onde a cristandade achou que Jesus voltaria e tudo acabaria. Disseram no ano da besta em 1666, quando a peste matou um quinto da Inglaterra e um incêndio destruiu 80% da cidade de Londres. Disseram que a cauda do cometa Halley era de cianeto e iria nos sufocar. Disseram que uma galinha havia botado ovos com a frase “Cristo está voltando” em Leed. Disseram que o YK2 bug iria destruir não sei o quê. Disseram que o calendário maia iria acabar com tudo. Disseram que uma cobra gigantesca debaixo da amazônia iria destruir o mundo. Disseram que o congresso nacional estava envenenando a comida. Disseram que a pandemia. Disseram que o fim do capitalismo. Disseram que a camada de ozônio, que o Relógio do Apocalipse, que as armas nucleares, que as mudanças climáticas, que a vacina, que o plástico, que a vaca, que o, que a, que o, quea, queo, quea, queo, quea, queo… Eu não acredito.

Ouve-se o som de um avião voando ao longe. Esse som se repete. Projeta-se no espaço em letras gigantes que vão passando a frase “VOCÊ ESTÁ VIVO?” e em seguida o endereço do local da apresentação. O som do avião termina.

No escuro, Kem Duvida corre de um lado para o outro da arena, parece carregar uma sacola grande e pesada.

KEM DUVIDA: Quem está aí?

Silêncio. De súbito, as luzes se acendem. Ouve-se alguém caminhando por detrás de uma das arquibancadas, Kem Narra está com uma arma na mão, apontando-a para Kem Duvida nervosamente. Kem Duvida recua.

KEM DUVIDA: Calma, calma. Não quero o dinheiro, pode ficar. Dinheiro é o que não falta nessa cidade.

Kem Narra treme com a arma.

KEM DUVIDA: É que você é a primeira pessoa que eu encontro… E eu vi a mensagem no avião, era esse endereço, não era?

Kem Narra continua impassível.

KEM DUVIDA: Eu juro que não sei de nada, não sei. Estou completamente perdide. Pelo amor de Deus, eu não sei o que está acontecendo aqui, pelo amor de Deus abaixa essa arma. (Se ajoelha) Eu não sei o que está acontecendo aqui!

Kem Narra analisa Kem Duvida, abaixa a arma.

KEM NARRA: Sei tanto quanto você, também não encontrei ninguém desde que aconteceu aquela coisa.

KEM DUVIDA: Você viu algo?

KEM NARRA: Só vi a mensagem no avião. Estava dormindo quando aconteceu.

KEM DUVIDA: Eu não entendo. Eu vi uma luz de dentro do meu apartamento, parecia um raio. Estava no banheiro e de repente olho pela janela e vejo um clarão no horizonte. Mas nada pareceu mudar. Só percebi quando olhei pela sacada e vi os carros todos largados no meio da avenida. Viu alguém?

KEM NARRA: Ninguém.

KEM DUVIDA: Estamos vivos?

Relato I: FOME

Os participantes da performance formam um caminho com os tijolos, por onde Kem Narra caminha lentamente.

KEM NARRA:

Para cruzarlo o para no cruzarlo
Ahí está el puente
En la otra orilla alguien me espera
Con un durazno y un país
Traigo conmigo afrendas desusadas
Entre ellas un paraguas de ombligo de madera
Un libro con los pánicos en blanco
Y una guitarra que no sé abrazar
Vengo con las mejillas del insomnio
Los pañuelos del mar y de las pases
Pas tímidas pancartas del dolor
Las liturgias del beso y de la sombra
Nunca he traído tantas cosas
Nunca he venido con tan poco
Ahí está el puente
Para cruzarlo o para no cruzarlo
Yo lo voy a cruzar
Sin prevenciones
En la otra orilla alguien me espera
Con um durazno y un país.[4]

Kem Narra tropeça e cai no chão ao final do poema.

KEM NARRA (em espanhol, português ou portunhol): O arroz… O arroz… O arroz. Caraotas negras, tomate, pero arroz. O arroz… A comida de onde eu venho não é tão diferente da que vocês comem aqui. Sabe? Tipo, a gente come arroz e feijão todo dia. Só não tem farofa, que eu não gosto muito, muito seco, sabe? Até que um dia… Eu saí do meu país por causa do arroz, ou a falta dele. Não dava para comprar.

Eu trabalhava o dia todo, eu era engenheira de alimentos e meu salário não dava nem para a cesta básica. Então eu comecei a trabalhar a noite como taxista para dar uma ajuda no orçamento. Saía da fábrica e ficava rodando a cidade toda, para cima e para baixo. Foi nessa época que eu comecei a sentir fome.

TODES: Fome.

KEM NARRA: Muita fome. Uma fome estranha na verdade, eu comia, comia e ela não passava. Eu fingia que não estava com fome…

TODES: Fome.

KEM NARRA: …para guardar mais comida para minha família, mas, mesmo quando eu comia, a fome não passava. Era como se não fosse a moeda, mas o valor nutricional da comida que estivesse diminuindo dia a dia. E eu tentava ignorar, enganar a fome…

TODES: Fome.

KEM NARRA: mas ela me consumia. Até que um dia eu me olhei no espelho e eu levei um susto: eu não me reconheci. Eu achei que era outra pessoa. Eu pensei: “Ou eu faço alguma coisa, ou eu vou morrer”. Como fugir dessa sensação de vazio no estômago?

Um mapa distorcido da América Latina é projetado no chão. Kem Narra posiciona os tijolos em seu trajeto. Na parede é projetado “AmericalatinalatinaamericA”

KEM NARRA: Daí eu decidi me preparar para sair do meu país, vendi tudo que tinha, juntei todo dinheiro que eu pude, as economias da família toda, porque eu precisava fugir daquela fome que não passava e eu não aguentava mais dormir com…

TODES: Fome.

KEM NARRA: acordar com…

TODES: Fome.

KEM NARRA: trabalhar com…

TODES: Fome.

KEM NARRA: Isso me deixava louca. Eu coloquei o que podia nas costas e atravessei meu país até o limite do território. Cruzei a fronteira com a barriga doendo de tão vazia, fui de ônibus até a capital daquele estado e depois para outra capital, e para uma cidade pequena no caminho, e uma cidade que era na montanha, e outra que era na beira de um rio e era longe, passei por uma cidade portuária fedida e, por fim, me desloquei por milhares de quilômetros e cheguei aqui. Passei esse tempo todo faminta, segurando essa sensação que grunhia dentro de mim.

Quando eu desembarquei na rodoviária, uma senhora que conheci na viagem me ofereceu um quarto e eu fiquei lá quatro dias enquanto procurava emprego e casa. Na mala trazia uma escova de dentes, algumas roupas, minhas economias em dólares e a minha fome que, a essa altura, achei que nunca fosse passar. Seria como uma cicatriz interna, dentro do meu estômago, cortando do meu esôfago até o duodeno com sua marca. Um dia voltei para meu quartinho e não encontrei meu dinheiro na mala. Perguntei para a senhora se ela tinha visto o dinheiro e ela me respondeu que eu era ume ingrate, que merecia a vida que eu tinha e me expulsou de lá.

Então, fui para um albergue. Eu e minha fome, que já era mi hermana, minha única companhia e lembrança da minha terra. Não sabíamos se estaríamos segures ali, se haveria espaço para a gente, eu e uma fome tão grande. Mas minha fome me consolava.

Chegar naquele abrigo foi a melhor coisa que nos aconteceu, lá tivemos ajuda, conseguimos um trabalho, comecei a aprender a língua de vocês e achamos um apartamento pequeno para alugar. Só quando me mudei para minha casa, quando pude fazer minha comida, arroz e feijão preto do jeito que eu sei fazer e que me foi ensinado, foi que minha fome foi embora. Eu comia e chorava. As lágrimas se misturando com o caldo do feijão. E eu continuava comendo, sem reparar no gosto do sal. Coisa mais triste comer chorando. Um choro guardado que veio sem  motivo claro, assim como a fome que guardei e que sem motivo se foi. E eu me senti bem.

Cena II

Kem Duvida e Kem Narra estão sentados esperando alguém aparecer.

KEM DUVIDA: Não há mais ninguém aqui. Minto, agora parece que somos só nós dois. Os outros bilhões desapareceram como se virassem fumaça e o que restou foi apenas essas roupas pelo chão. Relógios, vestidos, sapatos estão espalhados por aí, milhares de pequenos túmulos de pertences.

KEM NARRA: Você é daqui, não é?

KEM DUVIDA: Sim, sempre vivi aqui na cidade.

KEM NARRA: Aqui é longe da prefeitura?

KEM DUVIDA: Não é longe daqui, não… (silêncio) Você reparou que os animais também parecem ter ido? Nem um cachorro caramelo fuçando o lixo… Nem mosca tem nesse calor! Você não é daqui?

KEM NARRA: Não, vim para cá faz só dois anos.

KEM DUVIDA (olhando os fios do poste): A eletricidade ainda existe, as geladeiras ainda funcionam, alguns carros ainda andam, mas até quando?

KEM NARRA: Minha família estava fora de casa quando todos sumiram.

KEM DUVIDA: Como assim?

KEM NARRA: Eles estavam trabalhando, eles trabalhavam em frente à prefeitura. Já deviam ter voltado para casa, minha mãe, meu pai e meu irmão. Mas não consegui falar com eles.

KEM DUVIDA: Eles também se mudaram para cá com você?

KEM NARRA: Eles vieram já faz uns meses morar comigo.

KEM DUVIDA: Sei… Eles vieram de avião?

KEM NARRA: O que isso importa?

KEM DUVIDA: Nada, só estou perguntando.

KEM NARRA: Tanto faz agora… Eles vieram pela fronteira. Tomaram um coiote.

Silêncio.

KEM DUVIDA: Também não sei onde está minha família…

Ouvem um barulho atrás da arquibancada e se levantam.

KEM SOBREVIVE: Olá, tem alguém aí?

KEM NARRA e KEM DUVIDA: Aqui! Aqui!

Kem Sobrevive corre até os dois e os abraça rindo.

KEM SOBREVIVE: Eu achei que eu estava sozinhe aqui. Que não ia ter mais ninguém. Daí vi lá o avião e fiquei achando que era uma visão minha, nem acreditei! Mas só tem vocês aqui? O que aconteceu? Onde estão os outros?

KEM DUVIDA: Nós não sabemos.

KEM NARRA: Nós vimos o avião e viemos para cá.

KEM DUVIDA: Quem estava no avião, então?

KEM SOBREVIVE: Como assim? Vocês não sabem?

KEM DUVIDA: Não, só seguimos o avião quando ele apareceu.

KEM NARRA: Você também é imigrante?

KEM SOBREVIVE: Sim, mas eu moro já faz tempo aqui.

KEM DUVIDA: Estamos perdides.

KEM SOBREVIVE: Eu não entendo! Parece que tudo desapareceu. (Abraça Kem Narra)

Relato II: SISMO

A luz se apaga, surge lentamente uma projeção da pintura “Bitwa in San Domingo” (1845), de January Suchodolski, que retrata a luta de libertação dos haitianos em 1808. Toca-se a música “Soleil” de Emerante de Pradines. A história contada por Kem Sobrevive a seguir é contada em creole, com legenda projetada em português. Kem Sobrevive é filmade por uma câmera, sendo sua imagem projetada ao vivo por cima da imagem da pintura.

KEM SOBREVIVE (falando em creole): Havia uma menina nas montanhas haitianas que se chamava Arélia. Ela era muito maltratada por todos só por ser bonita, do jeito dela. Arélia caminhava todos os dias para pegar água no rio e todos os dias era observada por um homem meio peixe, meio gente, que vivia nas águas do rio. Um dia o homem-peixe apareceu à ela e os dois conversaram muito, muito mesmo, tornando-se amigos. Um verdadeiro amigo. Entretanto, a família de Arélia descobriu sua amizade e, com medo que ela se apaixonasse por alguém diferente, mataram o homem-peixe. Arélia ficou tão triste, mas tão triste que gritou muito alto sua dor. Assim que gritou, o chão em volta dela começou a tremer, se abriu de repente e ela e todo seu país foi engolido pelas entranhas da terra. Desaparecendo para sempre. E dizem que ela reapareceu em outras terras, muito distantes, e lá viveu longe de seu passado.

TODES: Corta!

As luzes se acendem.

REPÓRTER 1: Bravo!

REPÓRTER 2 (maquiando Kem Sobrevive): Foi ótimo, queride.

REPÓRTER 3 (falando para a câmera): Boa noite, estamos ao vivo falando com ê únique sobrevivente do maior terremoto já registrado na história, que engoliu de uma só vez grande parte da… (chiado) …Central. Assim como os refugiados climáticos da ilha de Tuvalu, no… (chiado) … o governo aceita já há oito anos pedidos de refúgio de desastres naturais graves causados pelas mudanças climáticas. Vamos falar aqui com elu, com licença, com licença!

REPÓRTER 1: Como você se sente tendo sobrevivido?

REPÓRTER 1: Onde você estava quando aconteceu o incidente?

REPÓRTER 2: Você sente que seu país desapareceu mesmo?

REPÓRTER 3: Uma palavra sobre as expectativas que você tinha com o nosso país?

KEM SOBREVIVE: O que eu pensava daqui?

REPÓRTER 2: Isso, conte para a…

REPÓRTER 1 e 3: shhhh! Deixa elu falar!

KEM SOBREVIVE: Aí, eu pensava tanta coisa. Quando eu era criança, né? Eu imaginava várias coisas do país de vocês, tipo, que aqui as pessoas falavam alemão.

Repórteres riem.

KEM SOBREVIVE: Eu não sei o porquê, mas eu achava que todo mundo falava alemão aqui. Verdade! E eu falava para os meus amigos que eu ia aprender alemão para vir para cá. Mas eu nunca pensei que eu realmente fosse morar aqui, não, nunca.

Es repórteres realizam uma coreografia enquanto colocam tijolos em uma linha no meio do palco e fazem uma fila, como se estivessem entrando em um avião.

KEM SOBREVIVE: No avião eu fiquei imaginando várias coisas, como seriam as pessoas aqui? Eu já sabia que vocês não falavam alemão, mas eu nunca tinha ouvido alguém daqui falando. Era parecido com o francês? Com o inglês? Eu fiquei imaginando na minha cabeça o que ia acontecer. Quando eu cheguei no aeroporto, eu fiquei encantade, porque o moço que viu meu passaporte…

REPÓRTER 1 (pegando o passaporte): Guten Tag!

KEM SOBREVIVE: …Parecia um anjinho branco e ele me perguntou algumas coisas e eu fiquei meio sem saber o que dizer porque era tudo muito diferente. Pra mim todo mundo parecia anjo. Até que eu comecei a estudar aqui, daí eu vi como esses anjos eram de verdade. Quando eu imaginava como ia ser aqui, eu nunca imaginei que vocês imaginassem tanta coisa ruim de mim, do meu país. Diziam que nós éramos animais, eu ouvia isso todo dia na escola. Que a gente comia ração e que eu deveria era ter afundado de vez com o terremoto. Essas coisas me deixavam muito mal. Você está filmando? Pode filmar isso, que eu quero falar. Como vocês podem imaginar coisas tão ruins dos outros?

REPÓRTER 2: Você, como únique sobrevivente, se sente sozinhe?

KEM SOBREVIVE: É claro que eu me sinto…

REPÓRTER 1: Como é a vida pós-terremoto?

KEM SOBREVIVE: Eu agradeço por morar aqui, mas não é tão…

REPÓRTER 3: Tem alguma coisa que você sente falta do seu país?

KEM SOBREVIVE: Tem tanta coisa que foi destruída, que…

Repórteres começam a brigar entre elus.

REPÓRTER 2: O que você acha da nossa política para refugiados?

REPÓRTER 1: Você acha que o mundo está preparado para essa nova leva de refugiados da guerra?

REPÓRTER 3: Você gostaria de mandar um beijo para alguém?

REPÓRTER 1: Você já ouviu falar no seguro desastre? Ele cobre terremotos, furacões…

REPÓRTER 3: Sem propagandas aqui, por favor.

REPÓRTER 1 (continuando): Com o aumento das mudanças climáticas é necessário estar protegido, não acha?

REPÓRTER 3: Uma pergunta absurda!

REPÓRTER 2: Silêncio aí atrás! Quais foram os traumas que te marcaram?

KEM SOBREVIVE: Eu ainda sinto, de noite quando eu deito, um tremor no joelho, o mesmo que eu senti quando eu estava no meio de tudo. Eu estava dentro de casa e saí, saí correndo, não sei, senti uma coisa estranha e corri. Eu corri, corri, até que uma hora eu não conseguia mais, era como se eu não tivesse mais chão. Eu mexia minhas pernas, mas não corria. A terra era quem corria embaixo de mim. Quando eu sinto o medo escondido no meu joelho, me falta ar, o chão também desaparece, as placas tectônicas se separam. Daí eu lembro de várias outras pessoas que me deixaram. Algumas pessoas saíram da minha vida por que quiseram, outras foram levadas. Muita coisa foi levada na verdade. O que me deixa assim, não sei dizer bem, eu me sinto estrangeire. Não só aqui, mas em qualquer lugar que eu vou, sabe? Vocês já sentiram isso? Quando você se sente estrangeira no seu país? Parece que eu vivo em uma fenda entre as placas e na separação parece que a gente se desfaz… E vira outra coisa. Um buraco muito grande e fundo se abriu no chão e levou nossas memórias, amores, pensamentos e tudo aquilo que a gente era. Não conseguiria morar mais na minha terra nem se ela existisse. Parece que o desastre natural me transformou em outre, a minha realidade é definida pelos outros, minhas identidades são criadas pelos outros, e a minha história é criada em relação ao outro, aqueles que sabem quem são. E eu só sou ê “outre” para sempre.

REPÓRTER 3: Você acha que o terremoto pode chegar até aqui?

KEM SOBREVIVE (rindo): Um terremoto pode acontecer a qualquer momento.

É projetado ao fundo um vídeo do terremoto  ocorrido no Haiti em 2010.

Cena III

Kem Duvida e Sobreviventes preparam uma refeição, vestem roupas chiques que pilharam pela cidade. Ao fundo toca-se uma música disco em espanhol.

KEM DUVIDA (para a plateia): Os que sobraram são dones de tudo, ou talvez não faça mais sentido entender as coisas como posse. Tudo agora se pertence a si mesmo, já que não há ninguém para vigiar as fronteiras. Países não existem, territórios, delimitações, especulação imobiliária, estacionamentos, ocupações, nada mais faz sentido. (Enquanto ele fala, es sobreviventes desfilam em uma passarela de tijolos com suas roupas, trazendo uma mesa. Se divertem.) Es sobreviventes escolhem o hotel mais chique da cidade, se vestem com as roupas mais caras de marcas inalcançáveis que nunca sonhariam em pôr as mãos e preparam o seu jantar com o que acham nas geladeiras: champanhe, caviar, lagosta e chocolate belga para sobremesa. A humanidade se extinguir acabou com a desigualdade.

KEM SOBREVIVE: Como assim? Não é assim que se prepara. Deixa que eu faço.

KEM DUVIDA: Ok, faça como quiser, eu vou abrir mais um champanhe.

KEM NARRA (cantando) – Yo no sé qué hacer, pero voy a bailar!

KEM DUVIDA: Servida?

KEM NARRA: Por favor.

KEM DUVIDA: Nunca pensei que viria jantar neste hotel um dia.

KEM SOBREVIVE: Nem eu que cozinharia nele.

KEM DUVIDA: Melhor aproveitar enquanto isso ainda existe…

KEM NARRA: Sabe de uma coisa que eu estava me perguntando, nós somos, ou melhor, éramos refugiades no nosso mundo que aparentemente acabou. Mas você é daqui, não é? Por que será que dues refugiades sobreviveram a essa catástrofe? É uma coincidência?

KEM DUVIDA: Não sei. Qual a diferença entre nós que éramos daqui e quem veio de fora?

Ouvem um barulho, se assustam. Kem Sobrevive desliga a música. Kem Duvida se esconde embaixo da mesa. Kem Narra pega a arma. Entra Kem Busca com os braços para cima.

KEM BUSCA: Desculpe atrapalhar. Mas ouvi a música aqui, vi que tinha gente, não quero atrapalhar, só estou perdide.

Todes se recompõem.

KEM NARRA: Sim, nós vimos o avião e viemos para cá.

KEM BUSCA: O avião deu certo! Eu sabia!

KEM DUVIDA (saindo debaixo da mesa): Você sabia do avião? Quem pilotava ele?

KEM BUSCA: Eu mesme, senhore. Achei que era o melhor jeito de ver se alguém estava vivo, além de mim, depois que isso aconteceu.

KEM DUVIDA: Estamos salvos! Você sabe o que foi aquilo?

KEM BUSCA: Não tenho ideia. Mas, desde que aconteceu, fui atrás da minha família, meus amigos e todos desapareceram.

KEM SOBREVIVE: Eu sinto muito.

KEM NARRA: Nós também não achamos ninguém.

KEM DUVIDA: Então você não sabe de nada?

KEM SOBREVIVE: Quer jantar com a gente?

KEM BUSCA: Se tiver comida para mim, eu aceito.

KEM SOBREVIVE: Temos toda a comida do mundo.

Todes se sentam à mesa. Barulho de pratos.

KEM NARRA: Você é daqui?

KEM BUSCA: Não, eu sou refugiade. Vim há mais de três anos, quase que por acidente.

KEM SOBREVIVE: Como assim?

KEM BUSCA: Não era bem para eu terminar aqui nesse país.

KEM DUVIDA: Bom, agora não existe mais país nenhum. Champanhe?

Kem Busca acena que sim com a cabeça.

KEM NARRA: Somos já três refugiades, três que sobreviveram sem nenhum motivo. Não entendo. (para Kem Duvida) Tem certeza que você não é ume refugiade também?

KEM DUVIDA: Hum, depende. O que é ser refugiado afinal? Depende de que lado você está da fronteira ou do continente. Ou às vezes não seja só isso…

KEM SOBREVIVE: Só isso o que?

KEM DUVIDA: Não seja só isso que signifique ser refugiado.

KEM NARRA: Ao mesmo tempo que não existem mais as fronteiras, também não há mais pátria e, não sei, o que parece agora é que somos refugiades do mundo todo.

KEM BUSCA: Bom, pelo menos não seremos barrades em nenhum lugar.

KEM DUVIDA: A minha pergunta é se teremos algum lugar para ir…

KEM SOBREVIVE: Algum lugar teremos e devem existir outros sobreviventes, não é possível. Eu não consigo entender como isso tudo está acontecendo, você viu algo?

KEM BUSCA: Não, não vi. Talvez isso tudo seja um aviso…

KEM DUVIDA: Aviso de quem? Deus?

KEM BUSCA: Não sei, cada um acredita no que quiser.

KEM SOBREVIVE: Eu não consigo entender… Eu não consigo entender.

KEM BUSCA: Só nos resta a lembrança do que foi.

Relato III: Limbo

Es participantes continuam na mesa comendo, sussurram a palavra “passado” em diferentes idiomas, em espanhol, kabyé, creole etc. Uma imagem de um barco de refugiados atravessando o Mediterrâneo é projetada lentamente ao fundo. Kem Busca sobe na mesa e espera.

VOZ EM OFF: Passageiros com destino para… (chiado) …favor se apresentarem no balcão de embarque imediatamente.

TODES ES PARTICIPANTES: Chegou o seu avião, senhore.

KEM BUSCA: Hum? Mas eu não vou voltar.

TODES ES PARTICIPANTES: Você não pode ficar aqui, nem ir para lá, tem que voltar.

KEM BUSCA: Onde está a minha bagagem?

Silêncio.

KEM BUSCA: Eu saí do meu país para estudar, não vou voltar.

TODES ES PARTICIPANTES: É a lei, senhore.

KEM BUSCA: De onde vem essa voz? (Silêncio) Hein? (Silêncio) Você ainda está aí?

TODES ES PARTICIPANTES: Estou.

KEM BUSCA: Então me responde, que lei é essa?

TODES: A lei da soberania nacional, precisamos zelar pelas nossas fronteiras.

KEM BUSCA: Mas eu já atravessei a fronteira.

TODES: Tecnicamente o senhor não está em nosso país, senhore.

KEM BUSCA: E onde eu estou, então? Olha, eu vim do meu país e estou indo para outro, essa é só uma conexão. E outra, não tem uma lei que proteja quem chegue?

Silêncio.

TODES: Senhore, posso lhe fazer uma pergunta?

KEM BUSCA: Fala.

TODES: Há quanto tempo ê senhore está aqui?

KEM BUSCA: Como assim? Eu cheguei aqui ontem, quando eu perdi meu voo por conta dessa burocracia.

TODES: Tem certeza?

KEM BUSCA: claro que tenho.

TODES: Ok.

KEM BUSCA: Ontem foi (fala data do dia anterior à apresentação)

TODES: Não, senhore. Isso foi há uma semana.

KEM BUSCA: Não! (a luz da mesa se apaga)

Kem Busca deita na mesa. Um vídeo simulando um raio X é projetado em cima de Kem Busca.

KEM BUSCA: Quando um bebê nasce, é muito importante que ele tenha algum tipo de proteção. Porque os bebês têm uma ligação muito grande com o lugar de onde eles vieram e quase nenhuma ligação com esse mundo aqui, por isso mesmo é importante fazer alguma coisa para que ele não queira voltar com os outros irmãos dele. Na terra onde eu nasci, as mães fazem uma marca, um sinal na cabeça da criança, uma marca que protege ela de ser levada embora. Até os sete anos é como se o bebê estivesse em um limbo, um espaço entre duas realidades distintas e as duas disputam a sua presença.

Kem Busca sobe novamente na mesa, a luz acende.

TODES ES PARTICIPANTES: Chegou o seu avião, senhore.

KEM BUSCA: Eu já disse, eu não volto.

TODES: Você deve retornar, senhore.

KEM BUSCA: Mas aqui não é meu destino.

Silêncio.

KEM BUSCA: Onde está a minha bagagem?

Silêncio.

TODES: Senhore?

KEM BUSCA: Que é?

TODES: Posso lhe fazer uma pergunta?

SOBREVIVENTE 3: Hum.

TODES: Ê senhore lembra para onde vai?

KEM BUSCA: É claro que eu lembro, eu estou indo para… Eu vou…

TODES: Você se recorda de onde veio?

KEM BUSCA: O que está acontecendo? O que é isso?

TODES: Você sabe quanto tempo está aqui, senhore?

KEM BUSCA: Eu estou há uma semana aqui.

TODES: Ê senhore está aqui há três anos, senhore. Ê senhore deve retornar.

KEM BUSCA: Escuta, eu vim pra cá por engano, aqui não era o meu destino final, não, aqui definitivamente não é o meu destino final! Eu estava indo para outro país estudar e eu fiz muito sacrifício para conseguir arrumar tudo. Se eu não for, pelo menos me deixa sair dessa sala.

TODES ES PARTICIPANTES: Aqui não é possível, aqui não tem espaço para você.

KEM BUSCA:  Não!

A luz se apaga. Kem Busca deita na mesa, nele são projetadas chamas.

KEM BUSCA: Minha mãe dizia que havia um pássaro muito perigoso que tinha um grito forte, tão forte que às vezes podia matar a criança. Por isso, assim que eu nasci, ela saiu correndo para marcar a minha cabeça, com medo que eu fosse embora. Que eu não conseguisse ficar na terra. Acontece que, mesmo com a marca na cabeça, os meus irmãos do outro mundo, como minha mãe chamava, pareciam me puxar de volta para o limbo. Eu fiquei muito doente, muito mesmo e nenhum remédio curava minha febre.

Kem Narra começa a cantar uma canção de ninar.

KEM BUSCA: Eu delirava na fronteira da vida e da morte. Minha mãe fez de tudo para eu melhorar, mas chegou um momento que era comigo, só eu poderia me salvar e, eu não sei, eu já vi muita coisa que se vocês vissem vocês não acreditariam, mas eu vi a fronteira, o limiar entre o país dos vivos e o território dos mortos. E eu fiz uma escolha.

A luz acende.

TODES ES PARTICIPANTES: Chegou o seu avião, senhore.

Kem Busca grita.

KEM BUSCA: Por que eu não lembro para onde eu vou? Por que eu esqueci de onde eu vim? Por que eu não posso ficar aqui? Vamos, me responde, eu quero saber, você que fala quem entra e quem sai. Você que diz com essa voz suave que eu não pertenço a nada! Apaga, apaga, apaga! Para ver alguém como eu sair do seu país, é porque a pessoa tá carregando um sonho, a pessoa tá correndo atrás, ela tem um ideal a chegar. Na verdade não foi fácil. Para qualquer pessoa como eu que você veja aqui, para sair de lá, chegar aqui, é um caminho de guerreire, um caminho de sobrevivência… Vocês têm que me deixar ir, voltar, ficar, lembrar, fugir, o que for! Eu exijo que me deixem sair!

Pega um tijolo e bate em sua cabeça. Uma luz vermelha incide sobre a mesa.

TODES: Chegou o seu avião, senhore.

Silêncio.

TODES: Senhore?

Silêncio.

TODES: Senhore?  (chiado)

Cena IV

Es Sobreviventes e Kem Duvida acendem uma fogueira e sentam-se em volta dela, enrolades em mantas.

KEM DUVIDA: Vocês podem vir mais perto? Um pouco? Para a gente poder conversar mais próximos.

KEM SOBREVIVE: Alguém aceita uma manta para o frio?

KEM BUSCA (oferecendo taças para a plateia): Quem quer vinho?

KEM NARRA: Eu não consigo me lembrar exatamente do que aconteceu. Eu lembro de ter notado o silêncio, um silêncio estranho, silêncio demais. Eu senti o silêncio tão forte que era insuportável.

KEM SOBREVIVE: Eu estava dormindo quando todos sumiram, acordei porque ouvi um som agudo e longo, desses que se formam com o vento cortando uma fresta da casa. Levantei e segui o caminho do som até a sala, minha avó deixou a janela aberta para ventilar. Fechei a janela.

KEM NARRA: Daí lembro de não ter encontrado ninguém em casa, ir para a rua e depois apagar, como se eu também tivesse desaparecido. Entrei em uma escuridão que eu não entendi de onde era, eu acho que desmaiei.

KEM SOBREVIVE: Na sala, a TV estava ligada no mudo, mas minha vó não estava no sofá dormindo, como ela fazia. Achei as roupas dela jogadas pelo chão. Fiquei em pânico. Eu segurava a touca que ela usava, cheirando ela para ver se ela voltava. Aquele som da janela não saia da minha cabeça, como se fosse o jeito dela se comunicar comigo depois de sumir.

KEM NARRA: Acordei com o barulho do avião. Parecia que muito tempo havia passado, eu estava fraca, com fome, sede. Mas o avião me deu esperança de encontrar minha família, talvez fossem eles. Peguei uma arma que achei nas roupas de um policial no chão, faria de tudo para ver eles. E vim para cá.

KEM SOBREVIVE: Não sai de casa até que vi o avião. Só nesse momento consegui soltar as roupas da minha vó.  Mas ainda não consigo entender.

KEM BUSCA: Eu ainda não acredito no que está acontecendo. Eu vi tudo desaparecer de repente, totalmente apagado do mundo.

KEM DUVIDA: Você foi inteligente de ter usado o avião.

KEM BUSCA: Era a opção mais rápida para encontrar outras pessoas… Mas eu quase parti sem deixar nenhum sinal.

KEM DUVIDA: Partir para onde?

KEM BUSCA: Para a Europa.

KEM DUVIDA: Europa? Fazer o quê?

KEM BUSCA: Procurar respostas, pegar de volta o que eles nos roubaram, ocupar um lugar do mundo que tivesse mais comida, munição, tecnologia. Não sei…

KEM DUVIDA: Ocupar o lugar que sempre nos expulsou?

Sobrevivente 3: Isso não existe mais. Agora a Europa é um monte de pedras empilhadas. Se eles tivessem sobrevivido já teríamos notícias deles, pode ter certeza…

KEM DUVIDA: Mas será que a resposta está na Europa? O mundo é tão grande, pode ter sido alguma coisa na Ásia, ou na América Latina, quem sabe na África.

KEM BUSCA: Tenho certeza que tudo isso começou ou na Europa ou na América do Norte. É lá que nossos problemas começaram e é lá que vão acabar.

KEM SOBREVIVE: Você fala com tanta certeza…

KEM DUVIDA: Acho que deveríamos sobrevoar mais a nossa região, já somos quatro, é possível que existam outros vagando por aí.

KEM BUSCA: De qualquer forma, o avião é o melhor jeito das pessoas nos verem.

KEM NARRA (levantando-se) – Vamos para a Europa! Faz sentido começar por lá a explorar o que restou do mundo, não é possível que não haja uma resposta.

KEM SOBREVIVE: E talvez para a América do Norte depois.

KEM NARRA: Eu também queria voltar ao meu país, para ver se sobrou algo.

KEM DUVIDA: Para mim isso não faz sentido algum, é arriscado demais.

KEM BUSCA: Você não precisa ir se não quiser.

KEM SOBREVIVE: E ficar aqui sozinhe?

KEM NARRA: Temos que ir todes.

KEM BUSCA: Eu tenho que buscar a resposta disso tudo, não é possível ficar aqui esperando.

KEM DUVIDA: Calma! É bom alguém ficar por aqui também caso alguém apareça. E eu me recuso a sair de novo do meu país. Eu não consigo. Eu fico.

Relato IV: Deportado

Kem Duvida começa a empilhar os tijolos na tentativa de construir uma parede. Ouve-se uma voz de rádio com relatos de repórteres sobre brasileires deportades.

RÁDIO: 70 deportados dos (chiados) chegaram hoje ao (chiado). O avião fretado pelo governo (chiado) pousou de madrugada no aeroporto… 50 pessoas deportadas dos (chiado) chegaram no… o voo saiu do (chiado) e foi autorizado pelo governo federal… um fretado pelo governo (chiado) com 130 deportados… esse é o terceiro voo de deportados autorizados… desde o fim do ano passado desembarcaram em (chiado), totalizando 679 deportados… chega hoje em (chiado) um vôo com mais de 100 (chiado) deportados dos Estados… é o primeiro do governo (chiado) mas o 23º desde o ano de 2019… mais um vôo dos (chiado)… passamos a receber dois voos de deportados por semana, antes era apenas um… (gravação de Bolsonaro falando) olha o que eu falar aqui vai dar polêmica, eu acho que em qualquer país as suas leis tem que ser respeitadas… onde pessoas estão lá de forma clandestina é um direito daquele chefe de estado usando da lei devolver esses nacionais…

KEM DUVIDA: Como se adentra o mundo civilizado?

Uma apresentação de power point é projetada mostrando alguns tópicos e Kem Duvida discorre sobre eles.

nº1 – Desilusão.

Primeiro, se desiluda completamente com o lugar onde você está. Tudo o que existe aqui não é nada comparado ao mundo que eles tem lá. Todos que vivem aqui não são tão civilizados quanto lá. Enfim, imagino que isso não dará muito trabalho no nosso atual contexto, então vamos para o próximo tópico.

nº2 – Um norte.

Escolha um lugar ao norte, idealize um mundo outro, um lugar outro, o mundo que nos prometeram desde criança nos filmes, nos desenhos, nos livros.

nº3 – Cai-não-cai.

Agora você começa a entrar nos pormenores para adentrar nesse mundo. No chamado “Cai-não-Cai”. É assim, a política migratória mudou, agora não vale mais a pena se arriscar em um coiote pelas fronteiras ou pegar um barco precário e tentar adentrar o território civilizado. Vale mais a pena se entregar na fronteira em troca de talvez entrar ou não entrar.

NOTA: se você for ou estiver acompanhado de mulher, criança ou com gestante a sua chance de entrar é muito maior. Essa nova política prevê que respondamos dentro do mundo civilizado pelo nosso visto e, uma vez dentro, é muito mais difícil de ser pego.

nº4 – Não seja pego.

Eu fui, fui pego e passei semanas na cadeia, implorando para voltar para casa. Pouca comida, crianças com febre e sem remédio, apenas água, em uma espera e sofrimento que deixa claro à quem não pertence àquele mundo sua condição: estrangeiro. Lembro ainda de passar por um calor insuportável durante o dia e a noite não conseguir dormir, com os ossos tremendo de frio no concreto escuro. Aquele concreto sugou a minha vontade de viver em outro mundo, o preço é muito alto e não se sabe se vale realmente a pena. Para mim não valeu, nunca mais piso fora do meu lugar. Mas há quem pise, quem retorne, quem não desista… Até quando?

O powerpoint some.

KEM DUVIDA: Eu já fui até a borda do mundo. A borda do mundo é o lugar que a civilização encontra com o incivilizado, onde o abismo social se faz claro como o dia e os portões ou estão abertos, ou estão fechados, sem meio termo. Para entrar nesse mundo você precisa se camuflar, vestir a máscara que te esperam. Ali nasce o refugiado, ao cruzar a fronteira. E eu sou pior ainda: ume deportade.

Eu fui regurgitade de volta, cuspide, escarrade. Voltei para minha casa e comecei a ter medo de sair. Eu andava na rua e sentia que me seguiam, via homens me observando em todos os lugares, no mercado, na padaria, na câmera do elevador. A paranoia era tanta que eu decidi não sair mais de casa. Fiquei nela, meu mundo podia ser resumido àquele apartamento de 45m². Eu dei um jeito de tudo caber nele. Meu trabalho, minha história, minha sobrevivência. E o tempo passava. A primeira grande pandemia veio, a segunda grande pandemia chegou e eu não senti as consequências, porque eu já não saia há anos do meu pequeno território. O máximo que fazia era abrir a porta da frente quando precisava. Mas ali eu era soberane, ninguém iria me expulsar.

E um dia, depois de anos de isolamento, eu saí na rua. Eu abri a porta, chamei o elevador, apertei o térreo, saí pelo portão do prédio que eu moro, virei a esquina e, chegando perto do sacolão da rua de trás, eu dei de frente com isso (aponta o espaço) uma construção. O sobrado vermelho que tinha um desenho em gesso com umas crianças brincando embaixo das janelas já não existe mais. Nem foto eu tirei dele. Me dá uma raiva isso, a cidade que você andou desde pequeno, sendo lentamente destruída. Me deu uma sensação de estar velho, uma sensação que aumentou muito neste isolamento, misturada com essa sensação de estar perdendo algo. Por que que eu saí para rua? Eu não lembro.

A parede desmorona parcialmente, mas Kem Duvida continua a construí-la

KEM DUVIDA: Vocês podem chamar isso daqui do que quiserem, uma construção, uma reflexão de alguém que ficou meses em casa, dentro das fronteiras de um apartamento, em uma cidade que tem placas do governo que dizem construir uma cidade melhor, mas que honestamente eu acredito destruir algo melhor todo dia. (Joga um tijolo na parede e a destrói.) Para dar lugar a qualquer coisa de triste, caro e, normalmente, de cor bege.

Pega os tijolos caídos e os coloca no espaço, desenhando a forma do estado de São Paulo no chão.

KEM DUVIDA: É daqui que falo, não sou neutro ou universal, sou apenas alguém da periferia do mundo que ousou atravessar limites e foi punido. Por isso mesmo não bato bem da cabeça, e quem bate ultimamente? Mas além do limite desse estado-apartamento, que às vezes parece o único que existe, mesmo que sujo e estranho e feio e deformado, além disso, tem coisas que acontecem nos limites desse estado que só poderiam acontecer aqui e que trazem algo que eu não entendo, mas que me encanta de alguma forma. Vou resumir aqui por que parece que vai chover e não temos muito tempo: durante esse tempo todo, eu olhava da janela, e eu só me perguntava como é que cada uma dessas pessoas vieram parar aqui, aqui nesse país em crise, um país que aposto que muitos de vocês aqui, se tivessem oportunidade, sairiam, principalmente nesse momento que estamos agora. Nem que seja para sair para o mesmo país, mas um país-outro, que já vivemos ou que sonhamos viver, que não é esse que vivemos agora. O que faz alguém imigrar para esse país? Esse lugar que me enoja todos os dias e que me faz parte? (pausa) Daí eu fui chegando em questões como o que faz alguém ser estrangeiro em um país que tem sua população formada em sua maioria por estranhos à terra? Ou ainda, o que faz e o que é afinal um… (chiado, Kem Duvida gesticula com a boca a palavra “brasileiro”) ..? Um devir? Um limite?

Kem Duvida se deita no chão, no meio dos tijolos que formam o mapa do estado de São Paulo. Um vídeo de prédios sendo destruídos em São Paulo é projetado em Kem Duvida.

KEM DUVIDA: Como que, da periferia do mundo em que eles contaram que nós vivemos, nos sentimos mais centrais que todo o resto? Sim, esse Estado-apartamento se sente mais central que todo o país, nós nos sentimos assim. Ele se sente uma cobertura, um duplex, eu não sei, eu sempre achei ele tão pequeno comparado com as possibilidades que ele tenta esconder. Nos sentimos no direito de delimitar o que somos e, consequentemente, os que não são. O outro. Sombras que projetamos com o fogo que queima tudo aqui. Violento. Sabe o que todas essas figuras têm em comum? Elas apavoram, apavoram e, por isso, dão o direito aos que se consideram e são considerados normais de destruir o que não é espelho. E quantos mundos foram destruídos… Mundos outros, mundos que não estão ligados à palavra ou a territórios, mas sabe-se lá com o quê. Mundos impossíveis, mundo-chão, mundo-água, mundo-cabelo, mundo-carne, mundo-mundo. E não mundo-inflação, mundo-estacionamento, mundo-exploração, mundo-vírus, mundo-colonização.

Levanta-se do chão.

KEM DUVIDA: E eu quis fugir de tudo isso e depois me prender nisso de novo e fugir de tudo que eu vivi fora daqui. E no final eu penso: “o que significa ser desse país?” Imaginem uma criança ouvindo sobre a gente pela primeira vez e imaginando o que isso significa. Imagina os refugiados que moram aqui tentando nos entender. Imagina os gringos lendo nossos memes e não entendendo nada. O que temos em comum?

Kem Duvida pega um martelo e começa a destruir os tijolos, aos poucos es outres participantes começam a fazer a mesma ação.

KEM DUVIDA: Mas eu não aguento mais ficar nesse apartamento, dentro desse espaço restrito, eu quero borrar, borrar essas linhas retas, essas caixas que eu não entendo, eu não entendo. Esses limites, vocês entendem? Alguém entende…

Todes es Participantes (cada um fala em sua língua materna esse texto): Eu não entendo, não e

Epílogo (opcional)

Todes es participantes saem de cena. Fica apenas Kem Narra. Elu tira um gravador antigo de uma sacola, aciona-o e começa a falar.

KEM NARRA: Nós atravessamos o oceano, passamos por três continentes, vasculhamos as cidades que um dia foram as mais ricas e inacessíveis do mundo, como se elas fossem nosso território, nossos corpos quase. Não descobrimos nada, o ocaso do mundo se mostra tão misterioso quanto sua aurora, nos restando apenas registrar aqui, através dessa gravação em várias línguas, o curto espaço de tempo em que pudemos compartilhar dessa terrível e maravilhosa experiência. Talvez vocês que ouçam esse relato, senhoras do futuro, possam entender o que aconteceu, mas se nossas hipóteses infelizmente estiverem certas e nossos augures não forem apenas um devaneio desesperado, é possível que esse seja o ciclo esperado para a nossa triste humanidade: emergir a duras penas, lutando todo dia pela mais básica das necessidades, voltar a se assegurar enquanto sociedade através da propriedade privada, do patriarcado e da opressão de classes, desenvolver-se tecnologicamente através da constante ambição, vendo gerações lutarem e sangrarem pelas mais diversas causas até nos tornarmos tão poderosos que, cegos, deixamos de ver o que nos cerca e criamos a própria arma que nos eliminará.

Entretanto, e disso me alegro, por sermos tão imperfeitos, até em nossa morte fracassamos e, assim, continuaremos a existir por uma falha da arma letal que nos destruiu. É esse o ciclo que acreditamos estar vivendo e deixamos aqui um registro frágil a vocês na esperança de que, um dia, este círculo maldito seja retorcido, dobrado e quebrado. Os deuses, os profetas e as pitonisas mudam de nome; as guerras, países e organizações terão outros rostos; a ciência e o pensamento se constituirão de outra forma, mas nada, nada mudará enquanto seguirmos a mesma trilha de milênios. Uma trilha que ao invés de abrir caminhos, os fecha e se vê apenas como única via existente, queimando tudo que não lhe diz respeito! Resta a nós, os refugiados do velho mundo, continuar com a vida após o que chamamos de a demolição do mundo.

Kem Narra desliga o gravador e deixa sua voz ecoando no espaço enquanto caminha para fora do espaço cênico.

FIM

[1] Disponível em: https://youtu.be/a9oqcVAYt-c

[2] “Kabye” é o nome da população que vive na região das montanhas ao norte do Togo e também denomina a língua falada por eles.

[3] “Creole” é um dos idiomas oficiais do Haiti, com origem no francês e em idiomas da África Ocidental.

[4] Poema “El Puente” de Mario Benedetti (1986). Disponível em: https://www.poeticous.com/mario-benedetti/el-puente?locale=es