Primeiras Dramaturgias

Chifres do Juízo

CORO: Nesse mundo existem dois tipos de gente:                                                   1. A gente… Gente.                                                                                             

2. E as outras coisas…

O coro cantarola uma canção que rege o trabalho, como um coral de igreja. Canta enquanto caminha de um lado pro outro, bem vestidos, decoram o quarto enquanto narram, colocam flores, colocam a cama no lugar, colocam os objetos onde deveriam estar. Feito a mecânica de uma máquina, eles mantêm a ordem, enquanto as engrenagens seguem o compasso da dança. O tiquetaquear do tempo.

CORO: As outras coisas balançam seus chifres e dançam pra espantar sua fúria, mas ela continua lá, insistindo, pulsando pelas veias uma música antiga, como se pudessem um dia deixar de ser ferramenta. Como se um dia pudessem dançar soltas sem precisar da Gente, como se não nos dependêssemos mutuamente. Mas elas dançam. E esse é o engenho natural de todas as coisas, seja no nosso ou no ritmo delas, elas sempre dançam…

A luz acende no público e acompanha uma figura vestindo uma cabeça de boi feita de papel machê e uma roupa cheia de fitas que balançam com sua dança intensa. Atrás dela vem três mulheres em procissão, as três possuem grandes chifres e vestem farrapos em tons de terra. A música é feita por tambores e uma melodia que parece uma canção de ninar distorcida. Como uma velha caixa de música em que a sua bailarina é um touro dançando uma luta.

MULHERES: Era dança bonita, passo certeiro. Era rodopio no ar, cambalhota no chão e brincadeira com o tempo. Era boi. Não qualquer boi. Touro. Não qualquer touro, mas daqueles que tem cabeça de bicho e corpo de gente. Coisa grande, forte, de pele preta, marcada de sol e de gente. Chibata de gente. Do tronco. Era do tamanho de um tronco e do jeito de besta. Não besta tipo bobo. Tipo fera. Besta Fera. Criatura criada pela parte mais escura da terra, do barro. Ananburucu.

MULHERES: Ele girava as fitas de tudo que é cor, tudo amarrada no corpo, nos chifres. Dançava a cantiga do povo, o batuque do corpo, a voz do gado. Era o próprio barulho, o arrepio e a força do gado. Que luzia e se fazia em carne pra dançar alforria. Ria, ele ria toda vez que aparecia e tocava a boiada de berrante até o horizonte errante do raiar do dia. Levava embora cada boi por vez. Cada gente por repente. E dizia: Em nome do verbo, da luta e da poesia… Amém.

No ponto alto da excitação, dos gritos, da euforia sonora, vem o silêncio, o Nêgo Boi desaparece e as mulheres voltam para suas funções, girando o engenho, enquanto o coro observa.

CORO: As outras coisas dançam, mas seja lá como queiram dançar elas fazem o mover de engrenagens… E do lado de cá tem a gente, que deixa tudo onde deveria estar, pra que não quebre, pra que não queime ou espane, pra nos prevenir do caos, pra impedir que a dança das coisas se encerre e faça parar o mover da nossa sobrevivência… A gente existe pra que ninguém sofra, mas aí quando o dia acaba, a gente deita e dorme toda noite com medo dos sonhos, com medo que de algum jeito mudem o engrenar das coisas e que a gente durma gente pra acordar como elas… As outras coisas.

MADRUGADA.

Se ouve o primeiro sino. A máquina interrompe seus barulhos de máquina, a música cessa, as engrenagens emperram, todo o sonho mecânico se desfaz quando Menina senta assustada na cama. Está tudo escuro, resta apenas uma luz sobre ela, suada, ofegante. Um membro do Coro retorna devagar, com os braços pra trás se coloca sob a luz, próximo a cama.

CORO: Os sonhos pareciam aumentar nos dias quentes de Juçuaru, pelo menos era o que se dizia. E como nessa cidade quase só fazia calor você já imagina… Bem. O que se sabe é que naquele dia a Menina acordou. Pálida. Ou nem tão pálida assim. Mas eram esses chifres ardidos que insistiam em rasgar a testa.

A menina leva a mão à testa, como se fosse conferir se eles ainda estavam ali, mas sente dor ao tocar, faz um grunhido como de quem toca uma ferida que ainda arde. Menina tenta levantar da cama, mas não consegue, ela tenta falar, mas não consegue.

CORO: Ai. Era dor, era susto. Vira e mexe a menina sonhava com boi, touro… Desde sabe-se lá Deus quando. E ainda assim não acostumava! Vê se pode!? Tinha sempre aquele suador, sempre um quê de quem não respira. Não teve jeito. Por aqueles tempos, quando passava o susto do sonho, vinha o susto nos dedos. A mão alisava o cabelo, tateava o par de cornos recém nascidos, queimando a carne que avermelhava feito moça. E foi assim, sem mais nem menos, só surgiram, mal esperaram os treze anos e já furaram caminho pra enfeitar a cabeça. Pra lembrar a ela o destino que tem sempre quem é gente e quem é coisa.

Um segundo foco de luz ilumina um vestido branco num manequim, num dos cantos do quarto, mais a frente. A menina ainda não consegue se mover, mas olha pra ele, com calma. De trás do manequim surge uma mulher sem rosto, que dança com um vestido igual ao iluminado, ela é perfeita. Como a bailarina certa de uma caixa de música.

A luz sobre o vestido apaga, a figura bonita sumiu. A menina suspira, aceita estar presa e como se braços carinhosamente a puxassem de volta para a cama, ela adormece. A luz apaga.

 

MANHÃ.

Se ouve o segundo sino. O coro está sempre lá, consertando as coisas, mantendo o bom funcionamento da máquina. Acompanham a produção viva em suas pranchetas. Como movimento ensaiado, repetitivo, cantarolam.

A lembrança das mulheres, como três reis magos, três marias. Caminham por entre o povo. As mulheres giram um engenho que tiquetaqueia, faz badaladas de sino, fazem como numa dança de roda, rebolando uma atrás da outra, entre as manivelas. Elas vem acendendo o mundo, cantarolando um grunhido bonito. Não são bem as mulheres, mas o jeito que Menina sabe lembrar delas, como aprendeu a reconhecer, sem nome, apenas coisa objeto útil, apenas a função que exerciam pra cuidar de Menina.

CORO: O quarto de Menina deita esquecido na penumbra. Quem amanhecia o dia eram as mulheres da casa. Faca, bucha e escova, as três mulheres. Elas arregaçavam as mangas. As cortinas. Dobravam o lençol e a luz que invadia o quarto. Elas despertavam Menina assim todo dia, levantavam Menina, aninhavam Menina.

Menina está meio sonâmbula, seu corpo reproduz como memória do músculo o movimento que cada mulher fazia.

CORO: Todo dia era igual, a velha Faca vinha para cortar as frutas que a Menina ia comer, a dona Bucha vinha para lavar a menina com água de cheiro, e aí vinha a jovem Escova pentear devagar seus cabelos.

CORO: Mas fosse o que fosse, todo dia levantavam Menina.

CORO: Como é mesmo que elas diziam?

As mulheres fazem cócegas na Menina, levantam ela da cama.

CORO: Bom dia, Menina!

CORO: Se aprume, Menina!

CORO: Levante, Menina!

MENINA: Elas me levantavam toda manhã pra receber o dia

CORO: Erguiam Menina, Saudavam menina, sabiam.

MENINA: Nem sabia assim que precisava tanta força (Ela grunhe pra se livrar da cama).

CORO: Tinham um jeito feito ela, todas um pouco coisa

MENINA: E sou lá eu coisa?

CORO: Quem sabe?

CORO: Ontem, há muito tempo, elas erguiam Menina como quem ergue o dia, hoje quem a ergue são as sombras delas. A falta delas. A ausência de Menina na mesa do café, no pátio e na sala.

CORO: A Menina e seu quarto deitam-se esquecidos na penumbra, quem amanhece é a saudade das mulheres. Que sacudiam as portas e janelas, que desbravavam a poeira.

CORO: E naquele tempo até Menina seguia o ritmo delas, limpava e luzia como quem dança. Ela era amanhecer junto delas, e se erguia todo dia com elas. Naquele tempo até elas tinham seus nomes, não função de coisa, nomes desses igual Menina também tinha…

CORO: E como era mesmo o nome?

Menina olha pela janela.

MENINA: Quando é que eu posso voltar lá pra fora?

CORO: Não é hora.

MENINA: E há hora?

Silêncio. As mulheres começam a arrumar as coisas, todas fogem do olhar da Menina.

CORO: Todos os dias Menina era erguida por gente coisa, povo chifre…

MENINA: Como era minha mãe?

CORO: Mas isso era quando ela própria não os tinha, os chifres.

MENINA: Eu pareço com ela?

CORO: Agora que ardem os dois, tímidos, sob o couro da cabeça, ela fica entre mundos, no quarto, penumbra.

MENINA: Eu sou bonita?

Silêncio. As mulheres caminham seus objetos em marcha solene, procissão diante do verbo morto. Carregam seus utensílios e os deitam sob os pés da cama de Menina, como quem enfeita um caixão de flores. As memórias fantasma das mulheres se vão, voltam a ser objetos inanimados e a Menina se vê sozinha, querendo ela mesma poder virar coisa inanimada, mas se mexe ainda a coitada, sentada de um lado da cama.

Do outro lado se ergue silenciosa uma figura oisa, feita de chifres pendurados – ela sempre esteve lá, mas não dava pra ver. A menina se assusta, olha os chifres enormes da criatura e toca os seus próprios, sendo espelhada pelo bicho. Ela se afasta, a sombra imita. Até que a sombra se aproxima, e por costume, a menina deita no colo, com as pernas da figura entrelaçadas em seu peito, e as mãos compridas acarinhando seus cabelos. A luz apaga.

 

TARDE.

Se ouve o terceiro sino, o Coro volta a fazer seus trabalhos repetitivos e ensaiados de relógio Cuco. Uma nova toada, as mulheres entram cantando dessa vez. Vem checando as portas, abrindo as janelas por entre a plateia. Na frente do palco cada mulher abre uma janela. Uma por vez. A primeira abre a janela, vira para trás e a saúda docemente. A segunda faz o mesmo em seguida, por fim a terceira.

SRA. FACA: Boa tarde, Menina!

SRA. BUCHA: Se aprume, Menina!

SRA. ESCOVA: Sacode, Menina!

MENINA: Toda tarde as mulheres invadiam o quarto, vinham de cantoria, interrompiam o dever pra dançar o sol das três.

MULHERES: Vamos, Menina, sem preguiça!

Giram a cama, e puxam ela pra fora, dançantes.

MENINA: Quando vinham, elas me contavam histórias do mato e…

CORO: Ela não sabia bem qual mato mesmo era.

MENINA: Mas falavam do mato. Dos pássaros que cantavam no mato fechado, escondido de Juçuaru…

Menina pesca com vara e anzol um passarinho de madeira, a Sra. Faca o observa subir perto dos olhos e recorda, balançando as facas penduradas em seu vestido.

SRA. FACA: Pros lados de lá do mato, além dos sons de pássaro e bicho, se ouvia também as facas afiadas batendo na pedra branca e lisa. As velhas abriam galinhas, amolavam lâminas nos chifres, que pendiam pesados das cabeças antigas. E as facas seguiam sonoras. Ritmadas. Fazendo a cozinha, a bateria, pra marcar o tempo onde todas resmungavam uma cantiga baixinho. Umas assim, limpando frango. Outras velhas pilando farinha, algumas outras mexendo caldeirões de galinhada pra alimentar todo o povo do acampamento.

Sua mãe amava a boa e velha galinhada.

Sra. Faca diz segurando uma boneca de chifres grandes, ela olha com saudade, como se a boneca fosse a própria mãe da Menina. A Menina pesca a boneca e a olha tentando encontrar algum resquício de lembrança.

MENINA: Conta mais da minha mãe?

Há uma pausa diante de um assunto intocado, todos fazem silêncio e se entreolham, as mulheres continuam a história, Bucha solta a boneca do anzol da Menina e puxa a atenção pra si própria.

SRA. BUCHA: No campo do acampamento, as carroças descansavam como se já voltassem a ser mato. E o próprio mato ia brotando nos vincos de suas madeiras. Havia tempos que não levantavam as tendas e se mudavam, pareciam como que as plantas, já fazendo raízes. Era afinal o que queriam. Fazer raízes, ter de volta um chão, e cantavam sempre esse sonho, esse lugar no tempo em que Nêgo Boi os levaria.. Esse lugar de liberdade.

Menina tenta fisgar algo com a vara, mas as mulheres desviam, vão pro canto, falam de um jeito que ela não possa ouvir.

SRA. ESCOVA: E não há de ser só sonho! Outro dia, na feira, vi também de longe a criatura, bem como dizem, cabeça de bicho, touro, corpo de gente, ele correu por trás do mato, mas antes eu pude ver… E ele olhou pra mim.

Escova fala mais alto do que gostaria, a Menina fisga uma cabeça de boi e conta seu sonho.

MENINA: Acho que eu já vi também esse boi…

Silêncio, lentamente os ambientes vão se delimitando, pra esquerda iluminado, pra direita obscuro.

MENINA: Tenho visto esse mesmo homem touro nos sonhos. Ele me dá um certo medo, mas agora olhando bem até que é de certa ternura o jeito do balançado dele…

SRA. FACA: Não há de ser nada, essas lorotas que elas contam, só um monte de lendas e histórias pra boi dormir.

Sra. Faca pega de volta a cabeça de boi. Aqui os ambientes se separam, e a Menina se isola do lado escuro. A Menina se encolhe sobre o guarda-roupa, pesca memórias ruins, enquanto do lado de lá o dia ainda é a quentura da lembrança das mulheres, contando histórias, animadas, mas de um jeito que a Menina não pode ouvir, nem elas ouvirem a Menina. Cada qual em seu próprio tempo, compartilhando o mesmo espaço.

MENINA: Parecia tão real… Mas não é bem ele que me dá medo, tem essa outra coisa, essa sombra que faz ser dolorido sair da cama, pesado se desgrudar dela, como se fossemos nós três uma coisa só… Eu, a sombra e a cama. E não é como preguiça, como aqueles dias de folga que demoram a passar, em que deitar na cama é bom… É mais como se eu não fosse mais eu, e estivesse o dia todo perdida, vagando dentro de mim. Vocês já viram essa coisa que prende a gente no sonho?

As mulheres sumiram, tudo agora compartilha a mesma luz pálida.

MENINA: Antes tinha dia que eu acordava num mundo com cor, outros dias eu acordava com tudo meio cinza… Era até divertido não saber o que seria daquela vez, esperar abrir os olhos pra descobrir como seria. Só que aí os dias se tornaram uma mancha, hora cor demais, hora cor alguma… E isso cansa.

Ela se aproxima da janela e sorri olhando pra fora.

MENINA: Era diferente quando eu brincava lá fora e as coisas não eram assim uma coisa ou outra. As crianças ainda nem eram coisas, ou pelo menos eu não sabia. Nem elas. A gente era só pirata, ou aventureiro, a gente era só o mestre que manda: pula corda! Atravesse a amarelinha! E conquiste todas as bolinhas de gude do inimigo! Quando a gente roubava bandeira, roubava banana da cozinha e a Senhora Faca gritava “Seus moleques!”.

As crianças brincam na parte de baixo, gargalham, correm sem perceber a Menina observando, é difícil saber o que é lembrança e o que está acontecendo naquele momento exato.

MENINA: Vai ver é natural que agora eu tenha que ficar aqui, quase não sou mais Menina. É que mesmo assim aqui faz um frio danado, sou só eu e um monte de memória, um monte de sonho estranho. E elas lá, no pátio, correndo… Se bem que não é como se eu fosse bem vinda lá com eles. Eu já fui, um dia, antes delas perceberem que eram coisas e entenderem que aquele não era bem meu lugar. Talvez levassem bronca, talvez não deveriam me tratar como se tratavam entre eles… Num tempo a gente tava todo mundo junto até que um dia elas tinham que se esconder de mim pra poder brincar.

MENINA: Mas eu também nem ligo mais… Quando eu for gente-mulher, vou poder usar o vestido e os meninos mais velhos vão poder me ver.

Ela imagina os meninos, ela se esconde atrás do vestido, vê a bailarina sem rosto dançar entre os rapazes, vê todos eles seguindo certos o compasso do engenho.

MENINA: E aí eu vou ver os meninos. Não esses, encardidos de brincar na lama do quintal. Mas os bonitos, os bem vestidos, assim como eu vou ser… Né?

A menina tenta dançar no compasso, se juntar ao grupo a ensaiar o cuco, mas ela tropeça, é desengonçada, eles riem dela, tocam seu chifre e ela corre pra debaixo da cama pra fazer tudo aquilo desaparecer.

 

NOITE.

Se ouve o quarto sino, o coro surge em segundo plano, em seus passos ensaiados de relógio. A lembrança das mulheres surge novamente.

SRA. FACA: É noite, Menina!

SRA. BUCHA: Se aprume, Menina!

SRA. ESCOVA: Se achegue, Menina!

A Menina não responde, apenas vira na cama e cobre a cabeça.

SRA. FACA: Aquele dia quando levantamos Menina, eu trouxe a janta predileta, bolinhos fritos no dendê, acompanhados de pasta de quiabo. A Menina preferiu só alguns biscoitos e água pra saciar a fome. Disse que era pra não fazer crescer bucho.

SRA. BUCHA: Aquele dia, quando lavamos a Menina, trouxe a água de cheiro favorita dela, pra acarinhar a pele. E ela pediu pra que esfregasse forte, que era pra desencardir a pele .

SRA. ESCOVA: Aquele dia, quando aninhamos a Menina, vim com óleo de coco pra pentear seus cabelos.  Menina pediu pente quente, fervendo, disse pra ver se desfazia o ninho que emaranhava em sua cabeça: Pra esconder melhor os chifres.

MULHERES: Aquele dia não quis mais histórias

MENINA: Eu só quero dormir

MULHERES: Ela disse… E foi a última coisa que  ouvimos ela dizer… Desde então é só isso: Dorme.

A Menina vira na cama, e as mulheres saem, voltam as suas funções, girando o engenho.

CORO: Ei, Psiu!

CORO: Sim?

CORO: Afinal, a Menina é mesmo gente?

CORO: Como seria se tem chifres?

CORO: E tem o couro encardido, gasto, como os de quem serve à utilidade.

CORO: Então não.

CORO: Mesmo que se fez esse tempo todo gente… Entre a gente… E não outra coisa…?

A Menina se remexe na cama, enquanto o coro não para de falar.

CORO: Mas vem cá…Se há só gente-gente ou outra coisa…

CORO: A Menina é o que?

CORO: Ninguém sabe…

CORO: Ora: Se coisa é objeto útil… Que serve de algo…

CORO: De que serve a menina?

CORO: Ah, a menina é coisa, apenas coisa!

CORO: Porém, se no engrenar da roda do mundo, cada coisa e cada gente tem seu lugar, qual é o lugar da Menina?

CORO: Talvez não haja…

CORO: Então é como peça solta? Cisco que emperra o fluir de tudo?

MENINA: Calem a boca!

CORO: É mesmo possível que gente se torne coisa depois de já ter nascido?

CORO: Ouvi dizer que tudo está no leite

CORO: Era de se esperar, criada por coisas, alimentada por elas, logo falaria como coisa, andaria como coisa, até se tornar uma delas

CORO: E se sempre foi uma delas?

CORO: É como dizem os boatos… Não se sabe quem pariu, só surgiu assim a criança, assim sem mãe, sem lugar no mundo

CORO: Mas quando criança parecia tanto gente…

CORO: E o que parece agora?

CORO: Com nada…

MENINA: E preciso parecer?

CORO: Veja bem, não é tão simples

MENINA: Deixa eu falar! Deixa eu falar! Todo mundo sempre fala, todo mundo narra quem sou eu ou quem eu deveria ser. Mas eu sou quem? Sou isso aqui que sou ou o que cês veem? Qual meu nome? E não o nome das coisas, mas o nome que a minha mãe me deu!

CORO: Nós podemos aprender a corrigir isso

MENINA: Então é isso? Eu sou uma falha? Um defeito no ritmo das coisas? Eu estou atrapalhando vocês no que quer que seja isso tudo que a gente faz pra viver?

Começa muito barulho, todas as memórias, todas as imaginações, tudo fala ao mesmo tempo, enquanto a sombra e o reflexo brincam de pique esconde entre a bagunça, nesse momento ela ouve vozes em sua cabeça.

VOZES: Monstro! Ela é um erro! Pra que serve? Só atrapalha.

MENINA: Parem de falar! Parem de falar! Parem de falar! Parem de falar!

Menina ataca tudo, tenta pegar seu reflexo e sua sombra, ela derruba o vestido e tudo cessa. Todos olham pra ela enquanto ela olha pro vestido. Enquanto leva as mãos à cabeça, aos chifres, ela grita. A luz apaga.

CORO (na escuridão): A Menina ouviu certa vez que o que dizia a qual povo pertencia cada quem, era o sangue, mas ela nunca tinha visto assim a cor do seu. Rubro como a mancha na tábua de carne da cozinha.

SRA. FACA (também na escuridão): Menina!

SRA. BUCHA: Céus!

SRA. ESCOVA: O que aconteceu?

ALVORADA.

As luzes acendem, as mulheres estão ao redor da Menina, não as lembranças, mas as próprias mulheres. Uma delas cuida do ferimento nos chifres da Menina. Os chifres lutam pra se reconectar no tecido mutilado.

SRA. FACA: O corte foi feio…

SRA. BUCHA: Menina… Você podia ter pedido ajuda…

MENINA (chora): Me desculpem

SRA. ESCOVA: Não estamos bravas… Estamos aqui pra você.

SRA. FACA: Bom, ela vai ficar bem… Os chifres vão voltar a crescer firmes e fortes como os de sua mãe.

MENINA: Quem ela era? Minha mãe.

MULHERES: Saudade…

MENINA: As senhoras a conheciam?

SRA. FACA: Sim… Era como minha filha

SRA. BUCHA: Era como minha irmã

SRA. ESCOVA: Era como minha mãe

O Nêgo Boi chega lento, deita a Menina em seu colo, e ela toca seu focinho, como lembrança da mãe.

MENINA: Eu não lembro bem, mas tive um sonho uma vez… Eu não lembro dela, minha mãe, Saudade. Mas lembro do seu cheiro, lembro que me aninhava no colo pra dançar a cantiga que ela cantava. Ela me chamava pelo nome… Qual era? Lembro da voz dela deslizando como a brisa por meu ouvido, do carinho e daquela cantiga

SRA. BUCHA: Crescemos juntas e quando ela nos deixou, deixou também você como cria, minha Menina

O Nêgo Boi vai embora lentamente, olhando pra Menina.

SRA. FACA: Ela era uma de nós, como você é.

MENINA: Se eu sou como as senhoras, então sou uma outra coisa?

SRA. ESCOVA: E somos nós por acaso coisas?

MENINA: Quem são vocês? Não assim como aprendi a lembrar, quem são vocês por dentro?

SRA. FACA: Eu me chamo Maria Piedade.

SRA. BUCHA: Eu me chamo Maria Perpétua.

SRA. ESCOVA: Eu me chamo Maria dos Prazeres.

MENINA: Quem vocês são quando não estão fazendo o que foram feitas pra fazer?

SRA. FACA: Ouço o cantar dos pássaros

SRA. BUCHA: Leio contos de amor e suspense

SRA. ESCOVA: Eu tento entender as estrelas

MULHERES: E você?

MENINA: Eu não sei… Nem sei se há tempo de fazer outra coisa que não a que fomos feitas pra fazer.

Ela levanta o manequim, tira a poeira do vestido, o olha por longos segundos e sorri.

MENINA: Eu nem sei se gosto desse vestido… Sempre ouvi que nesse mundo só existem duas formas de ser. Mas eu não sou nenhuma delas e nem sei se quero ser… Como alguém dentro do tempo que não vê ele passando, não está presente. Mas independente do ritmo que a gente dança, a dança é sempre no compasso deles. A dança faz girar o tempo deles. No tique-taque deles. Mas e quanto a nós?

SRA. FACA: Nosso ritmo é o pulsar do tambor do peito, como o dançar deslocado de Nêgo Boi

SRA. BUCHA: Nós somos contra tempos

SRA. ESCOVA: Você é um contratempo

Se ouve o quinto sino.

MULHERES: Já é hora de ir.

MENINA: Para onde? O que tem lá fora?

SRA. FACA: Eu não sei.

SRA. ESCOVA: Mas quero descobrir…

As mulheres saem do palco, cantarolando, a Menina hesita, se prepara pra sair e a luz apaga.