Primeiras Dramaturgias
Entardecer de Aurora F.
Com o passar dos anos, como acontece com todas as mulheres, o tempo virou meu aliado:
eu me tornei invisível, transparente. Posso me deslocar feito um fantasma, olhar por cima dos ombros das pessoas, escutar as suas brigas e observá-las dormindo com a cabeça apoiada sobre a mochila, falando sozinhas, inconscientes da minha presença, movendo apenas os lábios, articulando palavras que eu pronunciei por elas.
Olga Tokarczuk, Sobre os Ossos dos Mortos
.Personagem
Aurora Fukuda, ou uma atriz
.O Fim
(Escuridão. Somente uma voz que fala.)
Poderia ser uma noite escura
uma dessas ruas que você evita atravessar
uma rua escura que escoa num bar barulhento
onde os jovens se divertem
alguns nem tão jovens assim
eles ficam de pé na calçada
não se importam com a chuva fina que começa a precipitar
eles ficam de pé na calçada
eles bebem, flertam
eles olham suas telas
eles olham mais as suas telas do que qualquer outra coisa
isso eu posso te dizer
as telas coloridas são a iluminação da noite
sigo meus passos miúdos
meu corpo invisível
ninguém me reconhece e por que deveriam?
ninguém me vê enquanto
atravesso a rua apressadamente
não importa que não me notem
“não se perca em pensamentos obsessivos”
eu me digo ao atravessar a rua
eu me digo
“atenção ao dobrar a esquina”
um carro –
esse carro surgiu do nada
dirigido por um motorista que também olhava a sua tela
obviamente não me viu
mas
esse carro CHOCA com algo que se move – eu –
(GRITO)
(Som de freio de um automóvel – luz acende em Aurora Fukuda.)
esse carro poderia se chocar contra meu corpo
talvez nesse momento minha presença seja notada
por um para-choque
por um para-choque ou pelo carro
ou pelo motorista do carro importado
talvez por todos
aí sim notariam minha presença
Ou então poderia ser assim:
o cenário poderia ser num prédio
um prédio como o Oliveiras
uma porta trancada que nunca mais se abriu
os gatos poderiam…
bom, não tenho gatos
mas estamos trabalhando com hipóteses e certamente se os tivesse
eles estariam miando freneticamente após 4 ou 5 dias sem comida
algum deles talvez já teria morrido de inanição
os vizinhos notariam a presença pelo forte cheiro de decomposição
assim me faria presente insolente
assim notariam a minha existência
ou ainda poderia ser mais ativo controlado escolhido
da janela desse minúsculo apartamento
eu poderia observar aqueles passantes apressadamente de um lado para o outro
eu poderia escolher o momento certo para me arremessar contra o chão
aquela hora em que todos correm, todos voltam pra suas casas
e todos ficariam impactados,
mas rapidamente poderiam respirar fundo em alívio
“uma mulher, mas já tinha enfrentado vários carnavais”
ou poderiam dizer, “tava fazendo hora extra nessa terra”
pera aí que exagero
eu não tenho tanta idade assim pra fazer hora extra,
serei menos dramática então
mas o impacto dos meus cinquenta e poucos quilos,
olha, seria estrondoso
isso sim, seria ainda mais insolente
melhor assim, ninguém a notar minha presença, melhor assim
mas a materialidade do meu corpo pode mudar isso,
não ter muito a perder, ou ter, às vezes não sei,
mas em questão de poucos segundos
eu poderia estragar a noite de todos aqui
ou talvez não,
essa humanidade anda tão apática
difícil um ato que choque alguém
já estamos cansados de tanta coisa
já seguimos cansados nosso caminho
se eu fosse falar de alguém, importante colocar isso de maneira hipotética,
afinal, quem teria interesse em me confiar a escrita de uma biografia?
se eu fosse falar de alguém
começaria pelo fim
acentuaria as cores, jorraria sangue
aumentaria o espetáculo
me divirto pensando na minha história,
a minha eu posso falar, a minha eu posso escolher
seguiria aquele conselho “ser fiel a si mesma”
por que não começar pela morte?
isso pode definir bastante uma existência
talvez defina mais do que os feitos em vida
mas isso não consta nas biografias
as biografias são apenas um emaranhado de situações montadas para parecer que determinada pessoa foi terminantemente importante ou sagaz
à frente de seu tempo à frente dos demais seres humanos
mas sabe? can-sei
como diziam?
“ultimamente passaram-se tantos anos”
sim, ultimamente passaram-se muitos anos,
pareceram décadas, até
mas
se fosse escolher os fatos para ilustrar uma biografia
eu começaria pelo fim, começaria pelas cores do fim
será que isso incomodaria alguém?
será que isso seria notado por alguém?
.Sala de espera
a linha vermelha, é só seguir
aguardar ser chamada
na sala de espera observando, sempre olho o chão
você não?
o padrão dos revestimentos, os detalhes fora do lugar,
a sujeira que sobreviveu, desafiando camadas e camadas de limpezas diárias
você espera bastante tempo pelo grande momento
em que deixamos nosso sangue em tubos
em que chupam nossas veias
esvaziando tudo o que existe de vermelho e quente dentro da gente
na linha vermelha, pares de pés impacientes,
outros tranquilos, esnobam pernas totalmente relaxadas
mas aquele par de pés ali são realmente inquietos
entre pés de cadeiras e pés humanos – um acontecimento –
uma pequena aranha, certamente um filhote albino
tão lindo que estivesse ali, transparente no frio revestimento
quase um milagre, a contrariar todas as probabilidades
ninguém percebia a beleza daquelas oito patas
se a minha condromalácia permitisse eu me lançaria com fervor no chão em sua proteção
ninguém viu, ninguém entenderia
mas eu realmente me lançaria no chão se minha patela permitisse
para que ninguém
corresse o risco de esmagar esse ser
“Senhora Bernadete”
alguém chama
não, definitivamente esse senhora não é pra mim, somente um nome familiar
a voz de cigarro de tia Berna
as manhãs na cozinha cheirando a cominho
e imaginando quem seria essa Bernadete da sala de espera
do meu lado se levanta uma garota quatro-olhos
não deveria ter nem 18 anos
quem tão jovem assim se chamaria Bernadete?
a mãe errou rude o nome, algo muito errado nas estatísticas
ela não parava de me olhar e não parecia estranha
engraçada as pessoas dessa geração achei que o nome Bernadete tivesse caído em desuso durante a década de 60
e ouço chamarem
“Aurora”
ok estou me preparando
“Aurora Fukuda?”
inferno – não precisa ficar repetindo em voz alta
fiz as pazes com meu nome, mas não abuse
é mesmo um nome destinado ao eco e não ao esquecimento,
um nome de tirana,
um nome de pessoa pérfida, destinada a um trágico fim
nada parecido com a Fukuda – gozação de infância
mas realmente um nome destinado ao eco
e eu aqui me esforçando para manter a coluna ereta
entre pernas sustentadas por patelas débeis
franzina apagada esquecida
mas já tive os meus quinze minutos de fama
agora ninguém mais lembra meu nome
agora ninguém mais me enxerga
a mulher de verde dizia
“sua veia é fina”
preferia não olhar, mas num reflexo
tubos de ensaio pareciam cheios
ela disse que chamaria um outro alguém
pois ela não poderia me perfurar duas vezes seguidas,
como assim?
duas vezes? já não foi? eu jurava que aquele tubo de ensaio continha todo o meu sangue transbordando a ponto de quase pingar no chão
minhas costas gelam e
minhas cores se apagam
minha mão estava cadavérica
quando ela disse que não foi possível tirar meu sangue
é como se tudo o que fosse vivo e quente tivesse se esvaído de mim
“está tudo bem?”
não não está tudo bem, meu sangue não circula, meu sangue parou,
será que estou assim tão perto da morte?
eu juro que não tenho problema nenhum com sangue
esses dias socorri minha vizinha
ela prendeu o pé no armário da cozinha e a pele rasgou e abriu tudo, eu via sangue, músculo, osso, pele tudo dobrado pra cima, já viu como são as cores de dentro de um corpo humano?
é tão bonito,
moça, cuidado! não pisa em cima da aranha, por favor
alguém de verde dizia:
“senta as costas, calma calma, não cruza as pernas”
“vou precisar verificar sua glicemia”
ai picada de novo? tem certeza?
e perdia os sentidos
enquanto eles conversavam entre si:
“eu quase desmaiei na frente da paciente, não tinha comido nada, menina, eu estava de jejum”
e perdia os sentidos…
meu sangue está fugindo de mim, se recusa a colaborar, meu sangue me rejeita, meu sangue me deixa completamente…
(Luz fica escura gradativamente.
Tempo.)
“tudo bem, a gente se conhece, eu posso acompanhar ela”
aos poucos
os sentidos voltam a funcionar
essa voz, ela soa vagamente familiar
quem poderia estar aqui em meu socorro?
(Luz acende lentamente.)
aos poucos os borrões, as cores
o teto da sala, as paredes cobertas por quadros de bichinhos,
provavelmente enclausurada na ala infantil
o irônico fim de alguém
com o nome destinado ao eco
e que poderia apodrecer a qualquer momento num hospital
se isso acontecer, estou mesmo fodida
enxergo a voz ou melhor
os quatro-olhos que me espreitam
a tal da Bernadete, a velha de 18 anos, que segura minha mão
“não se preocupe eu acompanho você”
.Espaços internos
o corredor cavernoso de sempre – estreito e úmido
as oito portas e a grande veia a atravessar cada andar
o papagaio no ombro do zelador,
o vigilante papagaio conduzia o zelador e não o contrário, lhe contava a vida de todos os habitantes do
Edifício Oliveiras
Anos depois
e Heitor é a mesma pessoa de sempre, não envelheceu, não encolheu, a espreitar os apartamentos vestido em sua figura fantasmagórica
o papagaio perscrutava tudo, nada lhe escapava
Heitor por sua vez repassava todas as informações
a todos do bairro, trabalhadores de passagem, moradores, pedestres
qualquer um que demonstrasse o mínimo interesse em conversar com Heitor
Bernadete certamente sabe tudo de mim, descobriu pelo Heitor e seu papagaio
não lembro se eu indiquei o caminho ou se ela que me conduziu até o…
número 810 – oitavo andar do Oliveiras
10 horas da manhã no apartamento de Aurora, a luz bate naquele horário recortando a poltrona no espaço de Fukuda, meu espaço
o retorno ao meu pequeno refúgio
Ela perceberia ao entrar pela primeira vez no apartamento de Aurora Fukuda, uma sala estreita, comprida, uns 30 metros e equipada com poucas peças, equipada com uma sobriedade que confortava Aurora, me confortava
nesse ambiente ficou tudo aquilo que fica quando não se tem mais nada, ou quase nada
– de fato –
se olhar direitinho, na estante
os livros tiveram suas lombadas descoloridas pelo sol da manhã
o boldo precisa de uma rega,
um olhar mais criterioso diria que as paredes precisavam ser limpas, urgentemente, infestada por pigmentações de um monocromatismo que Aurora não está interessada em tirar, não agora pelo menos
na poltrona
Berna ali sentava, banhando-se na luz, a minha luz, naquele horário que era o meu horário de aproveitar a luz na poltrona
veja bem, tenho esse caro hábito de sair de minha escuridão e proteção me revigorando no sol da manhã
ali está a jovem Berna a tagarelar no meu espaço sagrado
um feito hediondo da sua parte
e afinal,
quem era essa Bernadete e por que ela não para de falar?
.A tal da Bernadete
“cheguei a pensar que você tinha morrido, Aurora”
ela sabe que um dia vivi e desapareci
ela sabe onde moro, quem eu sou
despeja informações sobre a minha pessoa
informações abocanhadas por buscas da internet
esmiuçadas, trituradas, vomitadas
sem nenhum constrangimento
na idade dela, já deveria saber que na minha idade
a maturidade faz com que fiquemos mais arredias
sobretudo após ser resgatada da ala infantil de um hospital
eu deveria sempre lembrar que a internet permite que
da noite para o dia qualquer um se transforme num perito em qualquer assunto
qualquer assunto
você pode descobrir o nome de uma moradora do seu prédio e conseguir a ficha inteira
e no assunto espionagem a jovem Berna é uma especialista
talvez minha existência não foi totalmente esquecida
talvez
talvez não estivesse assim tão condenada ao esquecimento
ou estaria?
será que fiz certo em voltar pra cidade?
tudo bem, a criatura certamente é um curioso caso à parte
o que marca mais o rito de passagem para a maturidade?
o medo de sangue
o medo da morte
ou a desconfiança crescente em qualquer outro ser humano?
“eu te entendo, Aurora, eu sei exatamente como você se sente…”
o que a garota acha que entende?
ela deveria entender o caráter sagrado
que alguns dos meus cabelos recém desbotados me conferem,
ela deveria entender e respeitar meu mau sono e meus joelhos desgastados
mas não
a juventude acha que os espécimes ao seu redor estão ali para se curvar
à sua forma e arrogância
não é assim que funciona comigo, não é assim
“eu sei como você deve ter se sentido todo esse tempo”
“nós temos muito em comum e nós precisamos aceitar os riscos espirituais da nossa vocação”
“e essa entrega na nossa vocação é a singularidade da nossa existência”
ela quer dar as cartas e cantar a bola pra quem já cansou do jogo e desertou
ok Bernadete, já fui também jovem pedante aspirante
uma vaquinha petulante
“o que você acha disso Aurora? poderia ser um comeback, o seu comeback”
sim, ela usou essa palavra comeback
essa palavra na boca de Berna soava terrivelmente ruim
“você tem todo o direito de não querer mas acho que seria muito bom poder contar com você, seria muito importante contar com você”
“O que você acha, Aurora?”
as aranhas do meu teto não formam teias concêntricas de uma bela arquitetura aracnídea mas
borrões espalhados, chumaços de algodão, estalactites de seda a desafiar olhares incomodados
“claro, Aurora, você não precisa responder agora…
tome o seu tempo, mas pense bem”
eu já estava acostumada àquelas seis ou sete aranhas que dividiam o teto comigo
e Bernadete não parecia se importar
“você está comigo?”
“nós voltaremos a falar do seu comeback”
…e naqueles dias
no filme Jorogumo
as teias de aranhas eram geométricas sintéticas brilhantes
nos abraçavam em nosso acasalamento com profissionalismo e artifício
mas o medo dele de aranhas era real, parecia até que ia ser picado de verdade em seu membro mais estimado
.A aranha entra na caverna
Calma, Aurora, se concentre, você já fez isso antes
(Luz cinematográfica em Aurora F.)
um pinto
somente isso
pele um pedaço de carne e alguns músculos e sangue… e cartilagem?
não, quer dizer,
uma espécie de esponja irrigada acionada pelo sangue
temperatura 36,5 graus, esse aqui tem uns 38 graus, não 38 graus é febre, 36,5 graus
“Aurora… Aurora, está tudo bem?”
a luz incomoda um pouco, mas tá tudo bem sim
as teias me abraçam
as teias me confortam
“OK?”
ok. claro que está ok
agora vai, agora ele vai conseguir
ele cresce consideravelmente nem é preciso olhar
enche a palmas da minha mão
não é a primeira vez, nem segunda, e nem será a última que você terá em suas mãos
– o ato em si –
a humanidade já tinha passado por isso tantas vezes,
fornicado de incontáveis maneiras
narráveis ou inenarráveis
ok,
somente um pinto
com esponjas e cavernas internas e líquidos irrigando
e eu por minha vez – somente uma vagina
vagina… quem fala vagina? boceta, boceta mesmo
simples assim
a minha caverna somente mais exposta,
sim a humanidade passou incontáveis vezes aqui
mas
com uma aranha de escalas avantajadas talvez seja novidade
e com câmera. e luz. e equipe.
mas posso lidar, já lidei com coisa muito pior e quero
sim, eu quero muito estar aqui
a minha caverna é mais exposta,
minha caverna vertical, importante notar, a Fukuda da infância
ouvia tantas vezes a infame interpelação
– “a sua é horizontal, Fukuda?” –
pois é, se a boceta era horizontal
então que a minha verticalidade seja bem notada
minha caverna vertical à espera da aracnídea
a aracnídea com proporções colossais
“Uma escolha desafiadora mas que depende de uma entrega, uma entrega sublime e eu sei que você pode, Aurora”
foi o que ele disse,
e estava certo
a minha entrega no que eu realmente acreditava
era um ato de amor
o aclamado diretor em poucos anos seria ainda mais entusiasticamente louvado recebendo toda sorte de aplausos, as pessoas assariam suas mãos de tanto aplaudir, deformariam seus rostos ao apresentar sorrisos industriais para congratulá-lo e também ao ator…
“agora é o momento da aranha, respira fundo…”
era o menor dos problemas, nunca tive medo de aranhas
nem desconforto com nudez,
por que encarar o sexo como algo vil e desprezível?
e não achamos belo
quando vemos um casal de leões copulando num filme de natureza?
ou mesmo graça
quando vemos duas tartarugas se contorcendo em um quintal?
e por que as senhoras e senhores membros do júri
condenariam minhas escolhas,
sendo que essa era minha grande chance
de me livrar de outro filme,
queria me livrar da Pequena Tomoko,
só queria romper com aquela mocinha, aquela servil mocinha
eu definitivamente não era a Pequena Tomoko
a Pequena Tomoko pra mim demonstrava sistematicamente metaforicamente
uma mulher sendo abusada em prol dos bons costumes e por todos ao seu redor estado e família e sociedade
ali acharam que eu fui verdadeiramente uma grande atriz
todos achavam que eu era a Pequena Tomoko
fazer a Pequena Tomoko, isso sim tive vergonha
vocês certamente já viram uma cena clássica:
homem chega de suas aventuras e guerras e uma mulher japonesa lhe dá um banho extraindo dele todas as máculas do mundo
“Aurora?”
em seguida eles fazem amor é isso que querem que a gente acredite, eles fazem amor, mas não é qualquer amor pois naquele momento a mulher restitui toda a masculinidade dele novamente,
e as futuras gerações passariam a acreditar e reproduzir e rotular
em escalas industriais
“Aurora, tá ouvindo?”
“Aurora”
“se concentra, vamos ter que fazer mais uma vez”
.Mensagens e propostas
esqueceram a Pequena Tomoko rapidamente
isso é fato
mas
de Jorogumo a única coisa lembrada era a tal cena
– a mulher e a aranha –
e os méritos, percebi aquele dia
quando vi minhas proporções monumentais e a aranha gigante na grande tela
os méritos, sempre
iam para o diretor que “conseguiu arrancar da atriz uma energia completamente diferente de seu papel anterior, nem se percebe que é a mesma pessoa”
claro sempre a habilidade incomensurável do diretor artista
claro uma atriz não teria autonomia de escolhas
claro uma atriz é sempre mais uma ferramenta
um aparato de cenário
não mais que isso
e
quando vi as proporções monumentais na grande tela
senti a seda das teias se emaranhando embrulhando o meu estômago
revirando todos os meus líquidos internos
ao anunciar proféticas sensações
aquela vez no supermercado
perdida no corredor entre amaciantes e sabão em pó
e aquela mulher
vindo na minha direção
“você não tem vergonha, não? sua pervertida”
Depois de Jorogumo, ou Mulher Aranha acreditava que teria propostas interessantes inúmeras arriscadas
e quando elas apareceram fui obrigada a negar uma a uma, por óbvias razões
“uma mulher corajosa, que o herói caído irá se apaixonar e juntos viverão um romance tórrido”
não
“sua personagem é uma mergulhadora e saindo do mar fará sexo com um polvo, como no quadro de Hokusai”
hmmm, não
“no final ela se mata por não ter o seu amor correspondido por ele”
também não
seria impossível algo mais simples?
ou um papel em que beleza não fosse um imperativo?
algo diferente, além do interesse amoroso do protagonista
a salvadora ou submissa que recupera o herói caído
e começariam mensagens e bilhetes
cada vez mais ostensivos debaixo da porta
“você não tem vergonha de transmitir doença venérea?”
“que mulher aceita fazer esse tipo de coisa? É uma depravação, uma aberração”
depravação não, diria transgressão
“vocês têm essa cara de sonsa, mas no fundo no fundo, são umas pervertidas!”
Vocês?
nós, as pervertidas? NÓS – primeira pessoa do plural, indicando eu mais outra ou grupo de pessoas; funciona nesse caso como sujeito
seria engraçado, não fosse trágico
talvez tragicômico
apenas mais uma piada de mau gosto
mas nada envelhece tão rápido quanto uma piada
já cheirava a naftalina
depravação era ler as mensagens abjetas que começariam a persistir
onde quer que eu olhasse
anúncios de jornal, propagandas, embalagens
podia sempre imaginar uma mensagem para Aurora Fukuda
e veio o bilhete debaixo da porta
“Aurora, volte pro seu país”
até biscoitos da sorte tornaram insuportáveis, com certeza leria o imperativo:
volte
pro
seu
…país!
“Aurora”
“Aurora?”
.
.
.
“estava tão quieta concentrada, achei que tivesse dormindo, Aurora”
.Riscos
Berna disse me entender
emaranhada de informações, conclusões precipitadas
a profundidade da pesquisa de quinze minutos na internet
mas ela disse me entender
e isso soava tragicamente ruim
quando eu mesma nem estava pensando
nem queria pensar
nos meus riscos espirituais, como ela disse
teria sido o passeio da aranha na caverna uma transgressão espiritual?
buscar amor e prazer na mesma medida que eles
brincar com escolhas proibidas por eles
“era necessário Aurora”
sim, relatar a experiência à minha maneira era ativo propositivo
“era necessário”
assim diria Bernadete
mas as pessoas só lembravam da aranha,
aliás, se você pesquisa o nome Aurora Fukuda na internet automaticamente aparece a sugestão aranha
o único motivo pra alguém se lembrar de mim
talvez precisasse pagar por querer tanto
ninguém esperava que
eu me colocasse na atitude de juiz, revisse meus próprios atos
não era culpa minha se no roteiro
se o roteiro pedia que uma aranha beijasse o membro
o membro mais estimado do sujeito
isso não era culpa minha, não de Aurora
descobri depois, talvez tarde demais
que nele se enxergou o sujeito
mas em mim
talvez em mim
o esperado fosse o meu papel resignado de objeto
estrangeira em meu próprio país?
não,
eu jamais me arrependerei de ter feito Jorogumo
alguém tinha que fazê-lo
abrir caminhos, possibilidades, escolhas
se destino existe, era meu destino estar nesse filme
o meu destino espiritual,
meu risco espiritual, diria Berna
minha escolha espiritual minha boceta espiritual
minha aranha espiritual meu pinto espiritual meu risco espiritual
e depois
sugestões nada espirituais
enquadrar-se às necessidades, digamos, alheias
de outra ordem
pra não dizer, afrontosas, nada espirituais
“veja bem você tem os traços delicados, talvez um pequeno ajuste no seu nariz tornasse o seu rosto mais harmônico, temos e podemos lidar com as despesas de um excelente profissional”
traços delicados no meu cu, essa sugestão certamente tinha a ver com aquela mensagem
“suas narinas são obscenas, dá pra enfiar um pinto aí dentro”
mas
que obsessão pelos orifícios
não não e não
eles queriam que meu membro mais primitivo instintivo fosse apaziguado, domesticado
mas
no meu nariz ninguém passaria a faca
queriam mesmo esvaziar, aniquilar, apagar minhas narinas de Fukuda
meus orifícios meus buracos meus pelos meus anseios
minhas mágoas
que bobagem
nunca pedi que harmonizassem as minhas dissonâncias
não é a minha
de maneira alguma
pra ele nada disso era problema,
talvez sendo homem
talvez sendo o que diziam
tinha uma aparência versátil pras multidões
um rosto bem brasileiro poderia fazer outras coisas e rapidamente esquecido, tudo passou bem pra ele
inclusive ele passa bem está ótimo esses dias eu o vi na televisão
tudo nele se ressequiu
mais ainda mantém aqueles mesmos dentes brancos,
pasmem
que versatilidade
se transforma em todas as nacionalidades e funções
mas os dentes branco-sulfite permanecem intactos
ninguém mais lembra que aquele homem teve seu membro mais estimado
estimulado e mutilado por um beijo de aranha
e pouco importa isso agora
meus cabelos recém desbotados e meu joelhos não permitem que eu me desperdice com bobagens, assim espero
“você fala como se fosse uma velha, uma decrépita. mas deve ter a idade da minha mãe e todo mundo fala que ela é jovem, muito jovem”
já estou sendo censurada pela Bernadete, que presunçosa
fazendo as contas com a minha parca noção matemática sim, verdade
Bernadete realmente poderia ser minha filha
.Entardecer
O que poderia acontecer a Aurora Fukuda?
voltaria pro seu refúgio anterior ou outra cidadezinha,
de emprego a emprego
onde era apenas Aurora, atendente, Aurora, auxiliar, garçonete
a depender do crachá
ou ainda,
retornaria seguramente ao apartamento 810 do Oliveiras
no futuro todos teriam os seus quinze minutos de fama, disseram
o de Aurora já passou, ainda bem
pode andar tranquilamente, ninguém mais reconheceria
Aurora a infratora
só mais uma que ficou lá atrás
objeto perdido de uma coleção esquecida
uma outra Aurora poderia recomeçar agora
mais uma vez candidata da dor e da glória
poderia chamar Bernadete, ouvir a Berna
Berna poderia ir junto
acompanhá-la na linha vermelha
testar até onde iriam os riscos espirituais dela
e dessa vez,
tirariam o meu sangue
eu conseguiria, Aurora conseguiria sem muito esforço
sem muitos incômodos
apenas um exame de rotina antes de voltar
antes do comeback,
essa palavra soa divertida pra mim
não importa se com Berna ou sozinha
eu conseguiria
O que aconteceria a Aurora Fukuda?
É final de tarde embolorado, tempo de outono
um entardecer como nenhum outro
Aurora caminha nas ruas
caminho na mesma rua dos jovens com seus celulares
apenas uma caixeira viajante
representante comercial de si mesma – um produto ultrapassado
bobagem, assim me quiseram crer
será?
não importa… também posso ser uma boa vendedora
se assim quiser
o produto não está vencido
“os rótulos ficam melhores depois de amadurecidos”
já dizia o enófilo
isso me diverte
mas calma Aurora mudemos os vocábulos
não façamos o jogo deles
Aurora desliza devagar com o vagar próprio das tiranas, das malditas, com o vagar de quem prefere a chuva a seguir o tempo viciado deles
querida humanidade, você tem pressa demais
antes de amanhã ainda tem bastante tempo
ainda tenho bastante tempo
o crepúsculo ainda é território desconhecido
Aurora se mantém em seu silêncio,
silêncio eloquente, escolhido, prenunciativo
o momento de se desfazer, refazer, recriar, reinventar Aurora Fukuda
é preciso encarar os recomeços os tropeços os atropelos
fraturas e desequilíbrios
no meio do caminho
e também
novas possibilidades, reinvenções, representações, sonhos
sonhos, talvez, por que não?
o vento bate na minha nuca, roça meus cabelos
dessa vez não me chama pra outros destinos
decido ficar, aterro,
o vento é só um leve roçar,
carinho à distância que me convoca a ficar
me aqueço por dentro me preparo
a chuva fina do final de tarde não mata a sede
mas refresca
na mesma rua dos jovens empunhando celulares
eles definitivamente correm se abrigam na marquise
deixam a rua só pra mim
eles desistem por instantes dos aparelhos,
são muitas cabeças e muitos olhos pra pouco espaço
nesse amontoado de corpos
muitas mariposas pra um só refletor,
eles por um instante único
me notam
carros não ousam se aproximar
não de mim, não de Aurora
eu que ofereço esse absurdo espetáculo
eu, Fukuda fantasmagoria,
espectadora de mim mesma
imóvel debaixo da chuva
nesse mundo, meio torto, meio morto, meio morno
estamos todos em estranha
comunhão
e agora nada faria eu abandonar o violento e desesperado desejo de aqui estar
se eles pudessem sentir pelo menos um pouco como eu me sinto nesse momento
(algo me fez crer que eles sentiriam, alguém pelo menos, um pouco, sentiu comigo)
a chuva aos poucos a perfurar meu tecido, deslizar na minha pele, resfriando meu corpo
se unindo em meus músculos sangue feridas e brios
a chuva me atravessa, me ensopa, me engole
e
eu
e talvez mais alguém ali se sentiria bem,
sim
eu me sinto terrivelmente bem