Da Descoberta da Bradicinina ao Desenvolvimento do Captopril

Foto: Professor Sérgio Henrique Ferreira (Sociedade Brasileira de Farmacologia e Terapêutica Experimental/Agência FAPESP)

Para celebrar o Dia Mundial da Hipertensão, que ocorre neste sábado (17/05), recordamos uma das trajetórias mais emblemáticas da farmacologia moderna em sua translação científica: o desenvolvimento do captopril, cuja origem reside em descobertas pioneiras realizadas na Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo (FMRP-USP) pelos cientistas Maurício Rocha e Silva e Sérgio Henrique Ferreira.  

Bradicinina e Fatores de Potenciação da Bradicinina (BPFs)  

Na década de 1940, o cientista Maurício Rocha e Silva, então pesquisador da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto (USP), identificou que o veneno da serpente Bothrops jararaca induzia a liberação de uma substância a partir de proteínas plasmáticas. Essa substância, até então desconhecida, foi nomeada bradicinina e caracterizada como um peptídeo com potente efeito vasodilatador e espasmogênico. Contudo, embora apresentasse semelhanças com outras aminas vasoativas, sua ação se distinguia pela resistência à atropina e aos anti-histamínicos, sugerindo um mecanismo fisiológico até então inédito.  

Estudos posteriores demonstraram que a bradicinina é gerada pela ação de enzimas proteolíticas sobre o cininogênio e que possui meia-vida curta, sendo rapidamente degradada por enzimas presentes no endotélio — em especial a ECA, uma carboxipeptidase dependente de zinco.  

Nas décadas seguintes, o farmacologista Sérgio Henrique Ferreira, também da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto (USP), aprofundou essa linha de pesquisa e identificou, no veneno da Bothrops jararaca, um conjunto de oligopeptídeos com ação sinérgica à da bradicinina: os fatores de potenciação da bradicinina (BPFs). Esses peptídeos mostraram-se capazes de inibir a ECA, ao mesmo tempo em que preservavam a bradicinina circulante e impediam a conversão de angiotensina I em angiotensina II — um potente vasoconstritor endógeno.  

Essa ação dupla, comprovada em diversos modelos experimentais, resultava em queda significativa da pressão arterial, mesmo na presença de estímulos hipertensores. Além disso, os BPFs promoviam aumento da permeabilidade capilar e amplificavam os efeitos da bradicinina, sem interferir com histamina e acetilcolina.  

Design Molecular do Captopril  

As frações peptídicas isoladas dos BPFs apresentavam composição rica em prolina e frequentemente eram iniciadas por ácido glutâmico ciclizado (ácido pirrolidona-carboxílico). Um dos peptídeos mais potentes, o BPPa, demonstrou alta afinidade pela ECA e expressivo efeito hipotensor. Com base nessas estruturas, Sérgio Ferreira, em colaboração com John Vane, sintetizou o pentapeptídeo PCA-Lys-Trp-Ala-Pro (BPPa), que viria a inspirar o desenvolvimento do captopril.  

O composto final, desenvolvido pela empresa Squibb (hoje Bristol-Myers Squibb), manteve a extremidade terminal de prolina e incorporou um grupo tiol — elemento essencial para sua alta afinidade ao centro catalítico da ECA. O captopril tornou-se, assim, o primeiro inibidor competitivo da ECA com eficácia clínica comprovada.  

Além de reduzir a conversão de angiotensina I em II, o captopril aumenta a biodisponibilidade de peptídeos vasorreguladores como a angiotensina-(1–7), que atua no eixo contrarregulador do sistema renina-angiotensina. A ang-(1–7), ao se ligar ao receptor Mas, exerce efeitos vasodilatadores, anti fibróticos, natriuréticos e anti-inflamatórios, de forma a ampliar a eficácia clínica do fármaco em contextos como hipertensão resistente, insuficiência cardíaca e nefropatia diabética.  

Estudos subsequentes demonstraram que o aumento dos níveis plasmáticos de ang-(1–7) em pacientes tratados com captopril está associado à melhora da função endotelial, regressão da hipertrofia cardíaca e proteção renal e, portanto, reforçaram o papel da ECA como ponto nodal na modulação do tônus vascular e da inflamação crônica.  

O Legado  

O desenvolvimento do captopril é reconhecido como um dos casos mais notáveis de inovação terapêutica baseada em ciência básica. Embora o fármaco tenha sido sintetizado por uma farmacêutica internacional, os fundamentos bioquímicos e fisiológicos que possibilitaram sua criação — da caracterização da bradicinina à elucidação da ação dos BPFs — foram estabelecidos no Brasil, na Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto (USP).  

Essa trajetória exemplifica como abordagens interdisciplinares e o estudo de moléculas bioativas oriundas de fontes naturais podem gerar soluções com alto valor agregado. O legado de Maurício Rocha e Silva e Sérgio Henrique Ferreira permanece como referência mundial em pesquisa translacional.  

A história do Captopril é um sublime exemplo de que o conhecimento, quando bem direcionado, pode ser motor de uma inovação radical.  

Revisor: Fernando de Queiroz Cunha

REFERÊNCIAS

ANDRADE, S. O.; ROCHA E SILVA, M. Purification of bradykinin by ion-exchange chromatography. Biochemical Journal, v. 64, p. 701–704, 1956.  

CAMARGO, A.; FERREIRA, S. H. Action of bradykinin potentiating factor (BPF) and dimercaprol (BAL) on the responses to bradykinin of isolated preparations of rat intestines. British Journal of Pharmacology, v. 42, p. 305–307, 1971.   

ELLIOTT, D. F. et al. The discovery and characterization of bradykinin. Handbook of Experimental Pharmacology, 1960.  

FERREIRA, S. H. A bradykinin-potentiating factor (BPF) present in the venom of Bothrops jararaca. British Journal of Pharmacology and Chemotherapy, v. 24, p. 163–169, 1965.   

FERREIRA, S. H. Aspectos históricos da hipertensão: do fator de potenciação da bradicinina (BPF) aos inibidores da ECA. HiperAtivo, v. 5, n. 1, p. 6–7, jan./mar. 1998.  

FERREIRA, S. H.; ROCHA E SILVA, M. Potentiation of bradykinin and eledoisin by BPF (bradykinin potentiating factor) from Bothrops jararaca venom. Experientia, v. 21, p. 347–349, 1965.   

FERREIRA, S. H. et al. Activity of various fractions of bradykinin potentiating factor against angiotensin I converting enzyme. Nature, v. 225, p. 379–380, 1970.  

FERRARIO, C. M.; CHAPPELL, M. C. Novel angiotensin peptides. Cellular and Molecular Life Sciences, v. 61, p. 2720–2727, 2004. DOI: 10.1007/s00018-004-4243-4.   

GREENE, L. J.; FERREIRA, S. H.; STEWART, J. M. Bradykinin Potentiating Factor. Chest, v. 59, n. 5 (Suppl.), p. 105–107, 1971. Suplemento do 13th Annual Aspen Conference on Research in Emphysema.   

HAMBERG, U.; ROCHA E SILVA, M. Release of bradykinin as related to the esterase activity of trypsin and of the venom of Bothrops jararaca. Experientia, v. 13, p. 489–490, 1957.  

HAWGOOD, B. J. Maurício Rocha e Silva MD: Snake venom, bradykinin and the rise of autopharmacology. Toxicon, v. 35, n. 11, p. 1569–1580, 1997.  

PÉTERFI, O. et al. Hypotensive snake venom components—A mini-review. Molecules, v. 24, n. 15, p. 2778, 2019. DOI: 10.3390/molecules24152778.   

ROCHA E SILVA, M.; BERALDO, W. T.; ROSENFELD, G. Bradykinin, a hypotensive and smooth muscle stimulating factor released from plasma globulin by snake venom and by trypsin. American Journal of Physiology, 1949.  

STEWART, J. M.; FERREIRA, S. H.; GREENE, L. J. Bradykinin potentiating peptide PCA-Lys-Trp-Ala-Pro: an inhibitor of the pulmonary inactivation of bradykinin and conversion of angiotensin I to II. Biochemical Pharmacology, v. 20, n. 6, p. 1557–1567, 1971. DOI: 10.1016/0006-2952(71)90284-X.