A descoberta e o desenvolvimento de medicamentos estão passando por uma transformação sem precedentes. Avanços em ciências ômicas, modelagem molecular e inteligência artificial estão tornando o processo de drug discovery mais ágil, colaborativo e preditivo, ainda que desafiador, exigindo forte integração entre universidades, centros de pesquisa e indústria.
A busca por novos fármacos é uma das tarefas mais complexas da ciência moderna. Cada medicamento aprovado resulta de um longo percurso, que pode levar mais de 12 anos e demandar investimentos superiores a US$ 2 bilhões.
Apesar de avanços significativos, a taxa de sucesso clínico permanece baixa, em que cerca de 10% dos candidatos que chegam aos ensaios em humanos tornam-se produtos comercializados. Ainda assim, o ritmo de inovação tem aumentado: o número médio de aprovações anuais de novas drogas pela Food and Drug Administration (FDA) praticamente dobrou na última década, alcançando cerca de 43 moléculas por ano.
O primeiro passo do processo é a identificação do alvo terapêutico, caracterizado por se tratar de uma proteína, enzima ou gene cuja modulação possa alterar o curso de uma doença. Essa etapa, embora essencial, é também uma das mais críticas: mais de metade das falhas em fases clínicas avançadas estão relacionadas à escolha inadequada do alvo.
Um bom alvo, segundo Gashaw e colaboradores, deve ter papel comprovado na fisiopatologia, alta seletividade, expressão tecidual controlada e biomarcadores capazes de indicar resposta terapêutica. A genômica e a proteômica expandiram esse horizonte, permitindo explorar novas classes de alvos, como fatores epigenéticos e interações proteína–proteína, antes consideradas “indrogáveis”.
Um exemplo histórico ilustra essa evolução: a heparina, anticoagulante de ação inespecífica, abriu caminho para o desenvolvimento de moléculas mais seletivas, como a rivaroxabana e a apixabana, que modulam apenas um ponto da cascata de coagulação. Esses fármacos oferecem maior previsibilidade farmacológica e menor risco de hemorragia, mostrando como a compreensão molecular refinada pode resultar em terapias mais seguras.
Superada a escolha do alvo, a química medicinal assume o protagonismo. Ela transforma moléculas identificadas em triagens iniciais (hits) em compostos otimizados (leads) e, por fim, em candidatos a fármaco. Essa etapa exige equilibrar os múltiplos parâmetros de potência, seletividade, solubilidade, biodisponibilidade e toxicidade de forma simultânea.
Estudos recentes mostram que as estratégias de otimização evoluíram substancialmente. Entre 2015 e 2022 houve aumento expressivo no número de candidatos voltados a oncologia e alvos epigenéticos, ao passo que áreas como doenças cardiovasculares e infecciosas registraram queda no investimento.
As tradicionais triagens de alto rendimento (high-throughput screening, HTS) continuam amplamente utilizadas, mas agora são complementadas por abordagens mais refinadas, como bibliotecas codificadas por DNA, fragmentos moleculares e design baseado em estrutura (structure-based drug design). Essas técnicas, aliadas à modelagem computacional e ao uso crescente de inteligência artificial, permitem prever interações moleculares, antecipar toxicidades e reduzir o número de experimentos laboratoriais necessários.
Modelos de aprendizado de máquina vêm sendo usados, por exemplo, para identificar inibidores seletivos de proteínas quinases, alvos-chave no câncer, simulando interações em escala molecular e eliminando candidatos com potenciais efeitos adversos antes mesmo da síntese. Esse movimento marca a transição de uma química medicinal empírica para uma química orientada por dados, onde algoritmos e plataformas automatizadas complementam a criatividade científica do pesquisador.
Além das inovações técnicas, a descoberta de fármacos está sendo impulsionada por novos modelos institucionais. Os Drug Discovery Institutes (DDIs) têm surgido como pontes entre academia e indústria, atuando na chamada zona de translação, o espaço entre o conhecimento fundamental e sua aplicação comercial.
Esses institutos combinam a expertise de pesquisadores acadêmicos com a infraestrutura de desenvolvimento da indústria farmacêutica, preenchendo o chamado vale da morte da inovação biomédica. Exemplos internacionais incluem o Tri-Institutional Therapeutics Discovery Institute, fruto da colaboração entre a Universidade Rockefeller, o Memorial Sloan Kettering Cancer Center e o Weill Cornell Medicine, com apoio da Takeda Pharmaceuticals; e o Empire Discovery Institute, formado por universidades de Nova York.
No Brasil, iniciativas semelhantes vêm sendo fomentadas por programas de inovação como a EMBRAPII, o BNDES e o MCTI. A Unidade EMBRAPII FMRP-USP, por exemplo, atua nesse ecossistema ao conectar grupos de pesquisa em farmacologia, biotecnologia e química medicinal a empresas interessadas em desenvolver novas terapias, contribuindo para fortalecer a inovação farmacêutica nacional e reduzir a dependência tecnológica.
Apesar dos avanços, o desafio permanece: transformar descobertas moleculares em medicamentos seguros, eficazes e acessíveis. Mesmo com o aumento de produtividade, o custo médio por fármaco continua acima de US$ 1 bilhão e a taxa de sucesso clínico é inferior a 15%.
Para enfrentar esse cenário, o setor aposta em modelos pré-clínicos mais representativos da fisiologia humana, como organoides e sistemas organ-on-a-chip, e em abordagens de medicina personalizada baseadas em dados genéticos e moleculares.
Essas estratégias têm permitido avanços notáveis em áreas como oncologia e doenças raras, onde terapias personalizadas, como os inibidores de checkpoint imunológico e os moduladores de RNA, estão redefinindo paradigmas clínicos.
Contudo, como adverte Bruno Villoutreix, o entusiasmo em torno de novas tecnologias deve vir acompanhado de cautela. Assim como ocorreu com o Projeto Genoma Humano, o atual alta da inteligência artificial pode gerar expectativas exageradas. A verdadeira revolução virá, segundo o autor, da integração equilibrada entre tecnologia, biologia e experimentação, sustentada por dados de alta qualidade e colaboração aberta entre instituições.
A descoberta de fármacos é, portanto, mais do que uma disciplina científica: é um pilar estratégico de soberania, desenvolvimento econômico e saúde pública. Unir rigor acadêmico, criatividade tecnológica e eficiência industrial é essencial para que o conhecimento se traduza em terapias capazes de transformar vidas. Do laboratório ao mercado, cada molécula bem-sucedida representa não apenas um avanço científico, mas uma conquista coletiva, resultado direto da cooperação entre ciência, inovação e sociedade.
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