
Mais de 1 bilhão de pessoas no mundo vivem sob o impacto silencioso das Doenças Tropicais Negligenciadas (DTNs), que persistem em comunidades vulneráveis apesar de décadas de conhecimento acumulado. No Brasil, enfermidades como leishmaniose, doença de Chagas e hanseníase continuam a afetar populações marginalizadas, refletindo a falta de investimentos em prevenção, diagnóstico e tratamento; uma negligência que alimenta o ciclo da exclusão social e da desigualdade em saúde.
Texto por Profa. Dra. Vanessa Carregaro Pereira – Imunologista, Professora da FMRP-USP e pesquisadora do CRID
As doenças tropicais negligenciadas (DTNs) afetam mais de 1 bilhão de pessoas no mundo, segundo a Organização Mundial da Saúde (1). No Brasil, enfermidades como leishmaniose, doença de Chagas, esquistossomose e hanseníase persistem em comunidades vulneráveis, associadas a condições de pobreza, moradia precária, saneamento inadequado e limitado acesso aos serviços de saúde (2).
Apesar da elevada carga de morbidade e mortalidade, essas doenças recebem investimentos significativamente menores do que outras enfermidades de impacto semelhante (3). A baixa atratividade econômica para a indústria farmacêutica, aliada a prioridades globais de financiamento voltadas a mercados mais rentáveis, tem consequências diretas e duradouras.
A primeira consequência é a ausência ou escassez de vacinas eficazes. Muitas DTNs seguem sem imunoprofilaxia aprovada, apesar de décadas de conhecimento acumulado sobre seus agentes causadores (4). Em segundo lugar, há a dependência de medicamentos antigos, muitas vezes desenvolvidos há mais de meio século, com eficácia parcial, alta toxicidade e regimes de tratamento longos e de difícil adesão (5).
A carência de investimento também se reflete no atraso na inovação diagnóstica. Sem tecnologias rápidas, sensíveis e acessíveis, a detecção precoce é prejudicada, levando a diagnósticos tardios, aumento da gravidade dos casos e manutenção da transmissão (6). Além disso, a falta de recursos para estudos translacionais e clínicos mantém potenciais candidatos a fármacos e vacinas estagnados por anos na fase pré-clínica (7).
Outro efeito relevante é a baixa capacidade de resposta a mudanças no padrão epidemiológico, que podem ser aceleradas por fatores como desmatamento, migração populacional e mudanças climáticas (8). Sem investimentos contínuos, não há capacidade tecnológica para antecipar surtos ou adaptar intervenções.
Essa soma de lacunas perpetua um ciclo de doença e exclusão social: populações já vulneráveis continuam expostas, com poucas opções terapêuticas e sem perspectiva de inovação em curto prazo (3-5).
Superar esse cenário exige políticas de saúde que priorizem as DTNs na agenda de pesquisa e desenvolvimento, com financiamento direcionado, estímulo à colaboração internacional e integração entre ciência, tecnologia e políticas públicas. O investimento em inovação para doenças negligenciadas é não apenas um imperativo ético, mas também uma estratégia fundamental para reduzir desigualdades em saúde e promover justiça social.
- World Health Organization. Ending the neglect to attain the Sustainable Development Goals: A road map for neglected tropical diseases 2021–2030. Geneva: WHO; 2020.
- Hotez PJ, Aksoy S, Brindley PJ, et al. What constitutes a neglected tropical disease? PLoS Neglected Tropical Diseases. 2020;14(1):e0008001. doi:10.1371/journal.pntd.0008001.
- Pedrique B, Strub-Wourgaft N, Some C, et al. The drug and vaccine landscape for neglected diseases (2000–11): a systematic assessment. The Lancet Global Health. 2013;1(6):e371-e379. doi:10.1016/S2214-109X(13)70078-0.
- Rijal S, Sundar S, Mondal D, et al. Eliminating visceral leishmaniasis in South Asia: the road ahead. BMJ. 2019;364:k5224. doi:10.1136/bmj.k5224.
- Sundar S, Chakravarty J. An update on pharmacotherapy for leishmaniasis. Expert Opin Pharmacother. 2015;16(2):237-52. doi:10.1517/14656566.2015.973850.
- Boelaert M, Meheus F, Sanchez A, et al. The poorest of the poor: a poverty appraisal of households affected by visceral leishmaniasis in Bihar, India. Trop Med Int Health. 2009;14(6):639-44. doi:10.1111/j.1365-3156.2009.02279.x.
- Moran M, Guzman J, Ropars AL, et al. Neglected disease research and development: How much are we really spending? PLoS Medicine. 2009;6(2):e1000030. doi:10.1371/journal.pmed.1000030.
- Baker RE, Mahmud AS, Miller IF, et al. Infectious disease in an era of global change. Nature Reviews Microbiology. 2022;20:193–205. doi:10.1038/s41579-021-00639-z.