A Situação da Comunidade LGBTQIA+ nos BRICS

Por
Emílio Mendonça Dias da Silva
Ramon Barbosa Baptistella
Igor Tostes Fiorezzi
Ana Carolina Ferrari

Por ocasião do mês do orgulho LGBTQIA+, dedicamos um breve artigo contendo informações e opiniões sobre a situação de nossa comunidade nos países dos BRICS – grupo que envolve o Brasil, a Rússia, a Índia, a China e a África do Sul. Pretendemos deixar claro que dita situação, no grupo, passou por progressos e retrocessos ao longo da história. Também pontuamos que no desrespeito à comunidade LGBTQIA+ nada há de cultura antiocidental. Por isso, a defesa de que os cinco países se esforcem para melhorá-la é, sem dúvida, uma pauta para nós.
Como se sabe, em 2006, o grupo dos BRICS foi formado sob a inspiração de que as economias emergentes poderiam alinhar suas políticas e, com isso, exercer maior influência nas relações internacionais. Desde então, os cinco países têm tratado de várias temáticas de importância aos países em desenvolvimento e adensado o sentido de sua cooperação, em frentes diversas. As decisões e atividades do grupo possuem peso, já que parcela expressiva da população mundial se encontra nesses países e a participação de suas economias no PIB Mundial é bastante considerável.

Nesse sentido, é evidente que os países BRICS e a forma como eles lidam com variadas questões vem ganhando mais destaque desde que o agrupamento se firmou. Dessa forma, não raro a proteção insatisfatória e a institucionalização da LGBTfobia nesses países ganham a atenção da mídia. Se talvez seja verdade que a situação da comunidade LGBTQIA+ não é tão abordada quando se trata de países totalmente alinhados com o ocidente, também é verdade que os países dos BRICS não só possuem maus resultados de erradicação do preconceito e da violência contra a população LGBTQIA+ como têm vocalizado e incorporado concepções políticas hostis à defesa e ao respeito dessas pessoas.
Vale mencionar que as Organizações Internacionais com atribuição de promover Direitos Humanos apontam que a proteção dos direitos civis e políticos da população LGBTQIA+ é, em geral, deficiente [1].

A Rússia possui histórico comum a muitos outros países em que a homossexualidade já foi considerada como crime. Em seu caso, data de 1716 a primeira previsão de criminalização, aplicando-se ao pessoal militar, sendo posteriormente estendida a toda população. No período da União Soviética, embora inicialmente os revolucionários tenham revogado a consideração da homossexualidade como crime, visando se afastar do senso de moralidade dominante do ocidente, o stalinismo a retomou, em 1933. A previsão criminal só deixou de existir em definitivo no ano de 1993. No campo das relações civis, não há proibição expressa à união conjugal entre homossexuais, mas elas não são realizadas.
Após relativa melhora, na década de 1990, da situação jurídica de pessoas LGBTQIA+, a partir dos anos 2000 houve retrocesso relevante na legislação para a comunidade, especificamente com aprovação de leis que proíbem a manifestação pública favorável ao respeito pelas pessoas LGBTQIA+, seguindo a incompreensível visão de que possa ser danosa – influenciadora – para crianças ou adolescentes, como se ensinar respeito pudesse prejudicar alguém ou influenciar sua sexualidade e identidade de gênero.

A legislação russa proíbe manifestações que “incentivem” pessoas a ter “relações sexuais não tradicionais” e, por isso, ficou conhecida como “Anti-gay Propaganda”. De acordo com Emil Bannin Persson, a legislação segue uma visão, comum atualmente na Rússia, de que o reconhecimento dos direitos da comunidade LGBTQIA+ seria incidência da cultura ocidental sobre os valores tradicionais do país [2]. Essa lei foi, inclusive, considerada como violadora aos direitos humanos do sistema europeu pela Corte Europeia de Direitos Humanos, no caso “Bayev e outros vs. Russia” [3].

Já a Índia também teve histórico de consideração da homossexualidade como crime por obra dos colonizadores britânicos que, pretendendo expandir o senso de moralidade vitoriana, transpuseram seu código penal para o país em 1860, considerando como crime a prática de “relações carnais contrárias à ordem natural”. A descriminalização da homossexualidade veio inicialmente por vias de decisões judiciais, em especial a decisão da Alta Corte de Deli, que entendeu que a discriminação sexual seria inconstitucional [4].

Ressalta-se que a Suprema Corte da Índia reconheceu o adequado tratamento de gênero para pessoas transgênero no caso “National Legal Authority v. Union of India and Others”. O elemento decisório de maior destaque é que a Índia reconhece tradicionalmente pessoas transgênero, as quais aparecem nos textos védicos e purânicos [5].

Na China, por sua vez, a homossexualidade nunca foi tida como crime. A literatura que trata do assunto, porém, aponta que, no país, a linha geral é de omissão em relação aos assuntos que importam à comunidade LGBTQIA+, além de eventualmente enfrentar a existência de órgãos que a considerem como desordem mental. Em 2001, a Associação Psiquiátrica Chinesa removeu a homossexualidade da lista de doenças psiquiátricas e o Judiciário decidiu que clínicas não podem considerá-la dessa forma, no caso chamado “Peng Yanhui v. Xinyu Piaoxing Psycotherapy Center” [6]. Ainda assim, o país não permite o casamento entre pessoas homossexuais e ainda se esforça para banir materiais com conteúdos que tratem de questões LGBTQIA+ das escolas.

Em relação à África do Sul, A homossexualidade fora considerada como crime durante o período do apartheid. Atualmente, porém, no contexto do continente africano, a África do Sul é um exemplo no reconhecimento dos direitos da comunidade LGBTQIA+. Sua Constituição foi pioneira ao proibir a discriminação baseada em sexo ou gênero e, desde 2006, o país permite o casamento entre pessoas do mesmo sexo. Ainda assim, os relatórios das organizações internacionais apontam que muito há para se fazer para coibir a violência e a discriminação contra pessoas LGBTQIA+ [7].

Por fim, o Brasil possui a vergonhosa marca de ser o país que mais mata pessoas LGBTQIA+ [8]. A homossexualidade, no Brasil, não é considerada crime desde a independência, com relativo afastamento da ordem jurídica dos colonizadores. Apesar disso, o reconhecimento de direitos civis e questões envolvendo identidade de gênero caminha devagar e geralmente não acontece por meio de lei no sentido estrito, senão por desenvolvimentos interpretativos oriundos do Poder Judiciário. A possibilidade jurídica da união conjugal entre homossexuais veio por ocasião de resolução do Conselho Nacional de Justiça, após o Supremo Tribunal Federal (“STF”) ter-lhes reconhecido a união estável. O direito ao reconhecimento de identidade de gênero para pessoas transgênero também é decorrência de interpretação feita pelo STF à Constituição.

Ainda assim, em todos os âmbitos da federação aparecem projetos de lei que procuram proibir que a condição da comunidade LGBTQIA+ seja abordada nas escolas com o intuito de promover o respeito e a tolerância à diversidade.
Com os exemplos dos países do BRICS, percebe-se que não faz sentido o argumento de que o reconhecimento de direitos e a promoção de respeito à comunidade LGBTQIA+ esconda, pelo mundo, pretensões hegemônicas da cultura ocidental. No caso da Índia e do Brasil – e isso pode ser dito em relação à África do Sul — a criminalização da homossexualidade foi resultado das expansões coloniais ocidentais. Por outro lado, medidas legislativas como a lei ‘anti-gay propaganda”, da Rússia, tem-se disseminado por vários países do ocidente, cujo exemplo mais recente foi as campanhas “Don´t Say Gay”, na Flórida. No Brasil mesmo, são incontáveis e insistentes os projetos de lei tentando proibir que o tema seja trabalhado nas escolas.

Com isso, não se justifica a não promoção da tolerância e do respeito nos países do BRICS, a serem devidamente garantidos pelo Estado a pessoas LGBTQIA+, com base em uma suposta defesa de pluralismo ou relativismo cultural no sentido de afastar uma suposta influência da cultura ocidental. Não faz sentido, por exemplo, ter o ocidente como o ambiente cultural tolerante e promotor dos direitos LGBTQIA+ – em exclusão de outros – considerando o seu histórico com o tema. Como se mostrou, as mentalidades que buscam deslegitimar as pautas da comunidade LGBTQIA+ encontram-se presentes nas mais diversas tradições culturais do mundo, como também são as reivindicações das minorias em referências, de modo que, na atualidade, há tradições nas quais a agenda LGBTQIA+ avançou mais do que outras e, claro, mas ainda assim deve-se lutar para que não haja retrocesso.

Em verdade, os países que não o fazem – o que inclui seguramente os países ocidentais, cujo preconceito ainda ecoa nas instituições, incluindo as de caráter representativo — não são “antiocidentais”, mas agem como um velho ocidente, cuja mentalidade ainda insiste em nos assombrar.

REFERÊNCIAS

[1] BAPTISTELLA, Ramon Barbosa. BRICS as a promoter of Human Rights. In: CASELLA, Paulo Borba et al (Coord.). Challenges and development prospects within BRICS countries. 1ª ed. Belo Horizonte, São Paulo: D’Plácido, 2021. P. 279-300.
[2] PERSSON, Emil. Banning “Homossexual Propaganda”: Belonging and Visibility in Contemporary Russian Media. Vol. 19, n. 2, p. 256-274. Spring, 2015. p. 257.
[3] ECHR. Bayed and Others v. Russia. Applications 67667/09 and others. Judgement June 20th, 2017
[4] MISRA, Geetanjali. Decriminalising Homosexuality in India. Vol. 17, nº 34, p. 20-28. Reproductive Health Matters. November, 2009. p. 23-24.
[5] SAHU, Manjeet Kumar. Case Comment on National Legal Services Authority v. Union of India & Others. Vol. III. BRICS Law Journal, 2016
[6] PARKIN, Parkin. LGBT Rights-Focused Legal Advocacy in China: the Promise, and Limits, of Litigation. 41 Fordham International Law Journal, 2018. p. 1248-1251.
[7] CROUCHER, Sheila. South Africa’s Democratisation and the Politics of Gay Liberation. Vol. 28, n. 2. Journal of Southern African Studies, 2002. p. 317.
[8] GASTALDI, Alexandre Bogas Fraga et al. Observatório de Mortes Violentas de LGBTI+ no Brasil – 2020: Relatório da Acontece Arte e Política LGBTI+ e Grupo Gay da Bahia. 1. ed. Florianópolis: Editora Acontece Arte e Política LGBTI+, 2021. Disponível em: . Acesso em 20.06.2022.