BRICS e a Cooperação em Aviação Civil

BRICS e a Cooperação em Aviação Civil

 

José Nantala Bádue Freire

Ana Beatriz dos Santos Borges

 

Brasil, Rússia, Índia e China, desde 2008, e também a África do Sul, a partir de 2011, formam um dos agrupamentos de países mais importantes da atualidade, desenvolvendo iniciativas conjuntas em diversas áreas e, anualmente, promovendo cúpulas e declarações conjuntas que dão a tônica do que os 5 países pretendem fomentar por meio desta iniciativa conjunta.

Em todas as declarações conjuntas, desde Ecaterimburgo (2009), os BRICS têm o cuidado de enaltecer o multilateralismo e a necessidade de se fortalecer instituições como a Organização das Nações Unidas (ONU), a Organização Mundial do Comércio (OMC), o Fundo Monetário Internacional (FMI), o Banco Mundial (BM) e etc.

Embora sejam feitas críticas reiteradas a algumas dessas instituições, em especial ao Conselho de Segurança da ONU, ao FMI e ao BM, até o momento os BRICS não deram qualquer sinal conjunto de ruptura com o sistema multilateral. As pretensões declaradas, na verdade, são de reformas pontuais para que o próprio sistema, sob a ótica do grupo, passe a dar maior expressão e representatividade a países que não integram o chamado ocidente (em suma: os países da Europa ocidental, o Reino Unido, os EUA e o Canadá).

Para entender, portanto, as iniciativas dos BRICS de forma adequada, é sempre importante verificar, no âmbito multilateral, como um determinado assunto discutido intra-BRICS está encampado pelas instituições que formam o sistema. E quando o assunto é aviação civil, esta regra de interpretação parece se confirmar.

O grande fórum internacional para as questões relacionadas à aviação civil é, desde sua fundação, a International Civil Aviation Organization (ICAO), constituída a partir da Convenção de Chicago de 1944[1] e que integra a ONU desde 1947. Todos os BRICS são signatários da Convenção de Chicago e membros da ICAO, além de possuírem assento no seu Conselho[2].

A ICAO é a grande responsável pela bem sucedida unificação regulamentar e até linguística relacionada à aviação civil em escala global[3]. Além da promoção declarada da unificação regulatória, a ICAO também atua, por força do art. 81 da Convenção de Chicago, como depositária de todos os acordos internacionais relacionados à aviação civil, sejam eles bilaterais ou regionais. Por este mesmo artigo, a ICAO também recebe os registros dos acordos operacionais firmados entre companhias aéreas de países distintos.

Segundo o site da ICAO, por meio da base de dados WASA (World Aviation Services Agreements), a Rússia tem 49 acordos internacionais firmados sobre serviços relacionados a aviação civil. O Brasil tem 53, a África do Sul, 59, a Índia, 87 e a China, por sua vez, 112 acordos do tipo registrados junto à ICAO.

Apesar de seu afã agregador e de sua congênita vocação de grande centro internacional para as questões envolvendo aviação civil, a ICAO também tem como um de seus fins estimular o desenvolvimento de esforços regionais[4], desde que não conflitantes com os princípios que a fundamentam.

Por força dessa abertura dada pela ICAO, os BRICS iniciaram conversas sobre o estabelecimento de parcerias no setor de aviação regional durante a Cúpula de Xiamen, em 2017, no âmbito do CEBRICS (Comitê Empresarial dos BRICS). As negociações evoluíram no decorrer de 2018 e, na Cúpula de Joanesburgo, foi assinado um memorando de entendimentos entre os países, justamente para que fosse incentivada a cooperação entre os países nos seguintes assuntos: a) intercâmbio de políticas públicas e melhores práticas em serviços regionais; b) aeroportos regionais; c) gestão de infraestrutura aeroportuária e serviços de navegação aérea; d) cooperação técnica entre agências reguladoras; e) inovação; f) sustentabilidade ambiental; g) qualificação e treinamento, e; h) outros assuntos de interesse comum[5].

Apesar da assinatura desse memorando, a cooperação setorial não se desenvolveu como esperado e, na Cúpula de Brasília, em 2019, o tema foi referenciado no item 11, mas ainda num tom de expectativa, sem delinear eventuais avanços nas áreas de cooperação sugeridas em Joanesburgo[6].

Apesar do aparente emperramento da pauta, esse assunto pode ser muito bem explorado entre os BRICS, dadas as complementaridades existentes e o grande valor que o setor de aviação civil tem para o aprimoramento logístico, tecnológico e para o fomento de atividades de grande interesse para os 5 países, como são os casos do comércio e do turismo intra-BRICS.

O Brasil é um dos grandes exportadores de aeronaves do mundo, em decorrência do grande sucesso e potencial da EMBRAER. China (AVIC) e Rússia (UAC), desde a primeira década deste milênio, vêm investindo fortemente no mercado de construção de aeronaves e podem, certamente, receber grandes aportes técnicos do Brasil para o seu desenvolvimento tecnológico na aviação civil. Em contrapartida, o Brasil pode receber know-how em tecnologia de aviação militar, setor em que o Brasil tem muito a desenvolver.

Além disso, a Índia vem sendo projetada como o mercado de maior crescimento para o setor da aviação civil nos próximos anos, dado o aumento da renda média de sua população e a enormidade de seu mercado interno, dado o seu altíssimo contingente demográfico[7]. No caso da África do Sul, existe um potencial industrial interessante no país para aviões menores e que, segundo algumas publicações especializadas, só não se desenvolve com maior eficiência dado ao fato da agência reguladora local (SACAA) não ter os recursos suficientes para certificar devidamente as aeronaves, o que obriga os engenheiros locais a buscar certificação em outras jurisdições o que encarece ainda mais o processo[8].

Há, portanto, um bom espaço para que os BRICS enxerguem os potenciais e debilidades de cada país e busquem, com boas chances de sucesso, gerar maior eficiência e aprimorar suas indústrias internas, o que pode trazer relevantes impactos positivos a diversas atividades correlatas, promovendo a geração de novos empregos e o incremento nas trocas comerciais e na indústria do turismo.

 

[1] Conta, atualmente, com 193 estados-membros. Informação acessível em https://www.icao.int/secretariat/legal/LEB%20Treaty%20Collection%20Documents/composite_table.pdf (acessado em 31/05/2020, 23:40).

[2] Informação obtida no site da ICAO: https://www.icao.int/MemberStates/Member%20States.Multilingual.pdf (acessado em 31/05/2020, 23:31).

[3] Por meio das conhecidas Standard and Recomended Practices (SARPs) e das Procedures for Air Navigations (PANS).

[4] Cite-se, como exemplos, os Regional Aviation Safety Groups (RASGs) estabelecidos nos escritórios Regionais da ICAO.

[5] A síntese do conteúdo do Memorando foi noticiada em diversos sites especializados como se pode ver em: https://www.business-standard.com/article/news-cm/cabinet-approves-mou-amongst-brics-nations-on-regional-aviation-partnership-118071801058_1.html

[6] 11. Recordamos o Memorando de Entendimento em Aviação Regional do BRICS e valorizamos a cooperação entre os países do BRICS no campo da aviação civil. Reconhecendo o papel fundamental desempenhado pelo setor de aviação em mercados emergentes, inclusive nos países do BRICS, e considerando os possíveis impactos do Esquema de Redução e Compensação de Carbono para a Aviação Internacional (CORSIA) no crescimento do setor de aviação, reiteramos nosso compromisso de trabalhar juntos no processo de revisão desse marco jurídico. Texto disponível online em: http://brics2019.itamaraty.gov.br/images/documentos/Declaracao_de_Brasilia_portugus_-_hiperlinks_como_est_no_site_2811.pdf acessado em 31/05/2020, às 23:42).

[7] Dados que podem ser consultados em https://www.ibef.org/industry/indian-aviation.aspx (acessado em 31/05/2020, 23:45).

[8] Para maiores informações sobre este assunto, acesse https://m.engineeringnews.co.za/article/south-africa-has-an-aviation-industry-but-it-is-hampered-by-regulatory-and-financing-issues-2019-11-29/rep_id:4433 (31/05/2020, 23:50).