O ‘Soft Power’ Anti-BRICS: Reflexões sobre seu Fortalecimento

O ‘SOFT POWER’ ANTI-BRICS: REFLEXÕES SOBRE SEU FORTALECIMENTO

Por Emílio Mendonça Dias da Silva

Escrevo este artigo por inspiração vinda da colocação feita por Mike Pompeo, em sua conta do twitter, a respeito do grupo do BRICS.

Pompeo foi o secretário de Estado dos Estados Unidos da América nomeado por Trump, cuja principal atribuição é servir de conselheiro do Presidente nos assuntos internacionais.

O secretário, na iminência de deixar o cargo, congratulou Bolsonaro e o primeiro-ministro da Índia, Narendra Modi, por terem entendido que o “C” (China) e o “R” (Rússia), do acrônimo BRICS, são ameaças aos seus povos. A fala foi a seguinte: “vocês se lembram do BRICS? Bem, graças ao Jair Bolsonaro e ao Narendra Modi o “B” e o “I” entenderam que o “C” e o “R” são ameaças a seus povos”.

A colocação nos convida a refletir sobre a narrativa norte-ocidental contra a formação do grupo do BRICS, com ênfase a ser dada ao exercício do poder nos modos que se convencionou chamar de ‘soft power’ ou ‘poder suave’, além de suscitar interesse a um breve resgate sobre os discursos dos países que ocupam o centro das narrativas, tradicionalmente dominantes na política internacional, a respeito do grupo dos emergentes.

O termo ‘soft power’ foi cunhado por Joseph Nye em contexto no qual o declínio da U.R.S.S. fez com que a política internacional deixasse de ser assimilada em termos de bipolaridade, com duas superpotências disputando autoridade ideológica a condicionar os regimes internos dos Estados. Ascendiam, ademais, potências econômicas de nível intermediário, como o Japão, suscitando dúvidas a respeito da manutenção da hegemonia estadunidense a longo termo, frente à emergência – bastante incipiente à altura dos anos 1990 – do que se compreenderia por multipolaridade [1].

Foi então que Joseph Nye defendeu que a dúvida sobre a manutenção do poder dos Estados Unidos, exclusivamente pela ascensão econômica de outros países, conduzia-nos para fora das verdadeiras questões marcadas pela transformação dos modos de exercício do poder. Isto porque se o teste de poder antes se concebera com ênfase aos aspectos militares, o mundo que se materializava contemplava fatores de relevância como o desenvolvimento tecnológico, a educação e o crescimento econômico. A partir disto, o autor constatou que o poder passava para modos de operação muito mais intangíveis, cujo exercício não mais se faria pelos “ricos em capital” senão pelos “ricos em informação”. A verdadeira questão não mais seria se os Estados Unidos virariam o século com maior suprimento de recursos, mas se teriam condições de conduzir os demais países a se comportarem de acordo com seus interesses, porque o poder se transformava na habilidade de fazer os outros países desejarem aquilo que seja conveniente à potência que lhes domine. Instaurava-se o poder cooptativo – o ‘soft power’ – para o qual seria relevante a potência se legitimar como autoridade ideológica e, assim, evitar resistências à sua atratividade cultural, à sua inteligibilidade e influência na produção normativa e à criação de instituições que amparem seus ideais [2].

Em resumo, o controle do fluxo de informações e, como consequência, a condição de imprimir as narrativas dominantes na política internacional passaram a configurar elemento central do exercício do poder. E as operações de ‘soft power’ se realizam com verdadeira intensidade e frequência, sobretudo favorecidas pelo estreitamento das relações internacionais.

Há espaço para dizer que tendemos a falar dos Estados de modo a tê-los como figuras estáticas e homogêneas, para fins de traçarmos suas participações nas relações internacionais a partir de seus respectivos “interesses nacionais”. No entanto, sendo as sociedades nacionais compostas por pluralidades setoriais e por estratificação social, é possível dizer que as campanhas ideológicas de políticas internacionais são mais aderentes a certos grupos no interior dos Estados, de modo que a interatividade das políticas internacionais com a política local se reflita e reproduza a partir da segmentação social doméstica.

Por seu turno, a suscetibilidade de um país a políticas de ‘soft power’ em muito é condicionada por suas relações históricas, além de sua predisposição a admitir a circulação interna de manifestações – tecnológicas, culturais – estrangeiras.

Assim dito, passa-se a algumas considerações a respeito do poder e do conteúdo ideológico – advertindo-se que a palavra não possui, a princípio, conotação necessariamente partidária – do BRICS.

O grupo dos BRICS se firmou a partir de uma determinada posição axiológica – ou seja, uma posição que orbita no domínio dos valores ou ideais. Os valores especificamente defendidos pelo BRICS são os da multipolaridade e democratização das relações internacionais e suas instituições. Em um instrutivo artigo a respeito dos valores comungados entre o BRICS – a converterem-se em conteúdos normativos presentes no direito internacional público – Mihaela Papa comentou, pertinentemente, que à diferença dos Estados Unidos e Europa, o BRICS não possuía consenso normativo imediato a respeito de valores jurídicos, mas se envolveram no espectro normativo global ao enfatizarem a multipolaridade como um valor em si [3].

A axiologia por trás do agrupamento se adensou à medida em que eclodiu a crise financeira de 2008, porque o BRICS passou a vocalizar os anseios de maior participação na governança global pelos países emergentes. É dizer: se no seio dos países desenvolvidos adveio uma crise que a todos impactou, nada mais justo que todos os países tivessem oportunidade de participação no gerenciamento para solução dos problemas econômico transnacionais. Assim, como observa Flávio Damico, há simbolismo no fato de a primeira reunião de Cúpula de Chefe de Estados ter-se dado logo posteriormente à crise, em 2009, pela fecundidade do contexto de reivindicações dos países emergentes no sentido de reformas das instituições financeiras internacionais [4].

Conquanto tenha-se apresentado no domínio das narrativas de poder no campo das relações internacionais, a reação primeira dos países desenvolvidos se deu igualmente neste plano, de forma relativamente amena.

Toma-se como evidência o discurso de Barack Obama realizado às duas Casas do Parlamento Britânico, no dia 25 de maio de 2011. Na ocasião, o então presidente dos Estados Unidos afirmou que o crescimento dos BRICS não ocorria a partir da perda de influência dos países norte-ocidentais, pois o remodelamento da ordem internacional já estava em curso e teriam os Estados Unidos e o Reino Unidos, junto dos governos democráticos aliados, moldado o mundo para que novos países pudessem emergir. Recusou a ideia de que os BRICS representariam o futuro, substituindo-os, ao argumentar que “o tempo para nossa liderança é agora”. Além disso, não haveria o que se temer em relação à emergência econômica por representar grandes mercados consumidores aos seus países [5].

Veja-se que há, sob sutilezas, uma narrativa em torno da qual se possa debruçar: o discurso certamente apontava para o sentido da cooperação entre países desenvolvidos e emergentes, muito embora colocasse os primeiros como alavancadores do crescimento econômico dos segundos, destacando a proeminência dos países norte-ocidentais.

Foi no contexto europeu que surgiu, porém, a mais visível expressão anti-BRICS. Em meados de março de 2012, a União Europeia publicou uma peça publicitária na qual os países do bloco – representados por uma mulher trajada de modo a remeter ao filme “Kill Bill” – preparava-se para o combate contra três lutadores: um chinês, um indiano e um brasileiro. A referência aos países dos BRICS deu-se não somente pelas vestimentas, mas pelas artes marciais que lhes são características, como foi capoeirista negro, no caso do Brasil.

A lutadora representante da União Europeia, então, ao que finalmente se defronta com os três lutadores, multiplica-se e os cerca, de modo a aludir às estrelas reunidas em círculo da bandeira da União Europeia. Na sequência, os lutadores se conformam com a diferença numérica e se amansam, baixando a guarda ao sentarem-se. A propaganda se encerra com os dizeres: “quanto mais somos, mais forte somos”.

 

O incidente, na ocasião, não pegou bem: foi a União Europeia pressionada a retirar a peça publicitária do ar sob acusações de ser uma propaganda xenófoba – cuja suspeita inclusive lhe atingia o calcanhar de Aquiles dadas as contestações às suas políticas dirigidas a imigrantes.

Para além da agressividade do discurso, pode-se dizer que a ideia contida no vídeo é a de que os países do BRICS representavam ameaças. E a ameaça estrangeira serviria como elemento de coesão interna ao bloco europeu.

Ainda assim, pode-se dizer que o “soft power” norte-ocidental, nesta primeira fase, tenha sido realmente “soft”. Os países desenvolvidos procuraram se colocar no centro da narrativa da multipolaridade, por alegadamente serem os seus modelos econômicos e civilizatórios que a possibilitaram. Por mais controvertida que a questão possa ser, era propaganda que se punha mais na rota da cooperação com países emergentes do que o oposto. E isto conflui, de certa maneira, com a política desencadeada pelo BRICS – tendente a reformas no sentido de democratização das instituições, e não a revoluções.

Pode-se dizer que se trata de expressão de ‘soft power’, por constituir-se em propaganda de acordo com a qual os valores norte-ocidentais são aqueles que conduzem uma nação à prosperidade, erigindo-se seus articuladores como inspiração aos demais países. À guisa da explicação de Nye, seria um meio de convencer os demais países a desejarem a adesão aos seus princípios.

Por outro lado, nos últimos anos, com o adensamento da disputa comercial entre os Estados Unidos e a China, com o advento de governos de orientação nacionalista, algo tem mudado relevantemente neste panorama. Foi no governo Trump demarcada a mudança de postura especificamente em relação à China:  não somente iniciou disputas comerciais com aumentos tarifários aos produtos chineses, como vinha a público, com frequência, declarar que a China possuía a intenção de se tornar e maior economia mundial, e que tudo que estivesse a seu alcance para detê-la seria feito.

Há uma mudança clara, assim, de narrativa, que fluiu do discurso de “não devemos temer a ascensão econômica dos países emergentes” para “precisamos impedi-la”.

E o endurecimento da campanha de ‘soft power’ ficou ainda mais evidente na publicação de Mike Pompeo.

Diz o então secretário que países que compõem o BRICS são ameaças meramente por terem aumentado seu campo de influência nas relações internacionais. Não há nada, nesta retórica, que esclareça com precisão qual o risco corrido.

Sabe-se, agora com mais clareza pela pandemia, que o isolamento na política internacional decorrente do alinhamento automático, irrestrito e irrefletido ocasiona dificuldades na participação global de produção e distribuição de insumos de vital importância para superação de problemas internos.

São amplas as áreas de cooperação entre o BRICS com benefícios à população brasileira, incluindo-se medicamentos, vacinas e produtos hospitalares.

Portanto, na ausência de apontamento de uma ameaça real e concreta – o que se põe como resposta a Pompeo – a única ameaça que se conhece é de o Brasil perder projeção e oportunidades. É no plano interno, aliás, que dita ameaça se conjura.

 

REFERÊNCIAS

[1] Nye, Joseph S. “Soft Power.” Foreign Policy, no. 80, 1990, pp. 153–171. JSTOR, . www.jstor.org/stable/1148580. Accessed 22 Jan. 2021. p. 153.

[2] [1] Nye, Joseph S. “Soft Power.” Foreign Policy, no. 80, 1990, pp. 153–171. JSTOR, www.jstor.org/stable/1148580. Accessed 22 Jan. 2021. Pp. 163-167.

[3] PAPA, Mihaela. BRICS as a Global Legal Actor: From Regulatory Innovation to BRICS Law? Revista di Diritto Pubblico Italiano, Comparato, Europeo. Nº 20. Outubro de 2014. p. 5.

[4] DAMICO, Flávio. Antecedentes: do Acrônimo de Mercado à Concertação Político-Diplomática. In BRICS: Estudos e Documentos. Brasília: Fundação Alexandre de Gusmão, 2015. p. 60.

[5] Íntegra do discurso disponível na matéria jornalística disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/fsp/mundo/ft2605201101.htm.