Chocolate quente com plástico às 23h00

Texto: Larissa Bilak

Sorte, substantivo feminino, refere-se à “força invencível a que se atribuem o rumo e os diversos acontecimentos da vida; destino, fado”, de acordo com a primeira definição do dicionário de Oxford. 

Às 23h00 de um dia letivo – e útil, laboralmente falando –, nas estações de trem e metrô de São Paulo, tais “forças invencíveis” conseguem ser mais poderosas ainda. Talvez não tão poderosas se considerarmos a ordinariedade de alguns dos acontecimentos que permeiam essas noites mas, de qualquer forma, a definição de “má” ou “boa” sorte cabem aos personagens que têm o privilégio – ou prejuízo – de presenciar essas peripécias. O fato é que, quando o seu único desejo é chegar em casa e dormir, o destino torna-se completamente indecifrável. Talvez, após o horário comercial, a Fortuna – deusa da sorte na mitologia romana –  deixe a balança do destino nas mãos dos seus estagiários.

Quanto aos destinos que tenho a chance de presenciar nesse horário, geralmente com minha amiga Luiza, estes costumam ser sequências de fatos que provavelmente me lembrarei no futuro. Depois de correr para pegar o ônibus, o metrô, o elevador, o trem da linha esmeralda e o trem da linha diamante – os mais indecifráveis – e perder praticamente todos, o que esperamos é que mais nada possa nos acontecer no caminho. Mas na maior parte das vezes estamos enganadas.

Com fome e com a vontade de se prestigiar no fim de um dia cansativo, decidimos comprar risoles e chocolate quente na lanchonete de Pinheiros. Infelizmente, por motivos desconhecidos, a bebida veio cheia de pedaços de plástico dentro. Ao menos os risoles estavam gostosos.

Dentro do elevador, para subir a estação de forma mais rápida, um garoto grita a todos pulmões um xingamento, acordando no susto todos que cochilavam no caminho – inclusive nós. Após o episódio, ele se despede e explica que possui síndrome de Tourette.

Vitoriosas, após conseguirmos chegar no trem antes que suas portas se fechem e nos sentar – no assento preferencial, decidimos brindar a sorte com dois biscoitos. Por razão do destino, os biscoitos caem no chão após o brinde. Por sorte, costumamos ter o pão francês do bandejão de alguns dias atrás, e às vezes também temos cuscuz com salsicha.

No trem, encosto a cabeça no ombro de minha amiga para tirar um cochilo e noto o quão cheirosa ela está. Verbalizo esse sentimento: “Nossa amiga, você está cheirosa”. Luiza, confusa, me responde: “Obrigada, Lari, mas é o Pod”. Abro os olhos e consigo ver que, na verdade, a fragrância doce vem da fumaça do Pod de tutti-fruti da moça que se senta em nossa frente.

Notamos um homem nos encarando incansavelmente, enquanto sorri de maneira estranha. Com medo, alertamos uma à outra e decidimos mudar de vagão. Passamos o resto da viagem xingando o indivíduo e, por sorte, encontramos um colega com o qual estudei na escola. Vamos para perto dele para nos sentirmos mais seguras.

Enfim, em nossa terra, depois de percorrer um longo caminho, saímos do trem e descobrimos que os estagiários da Fortuna não estão sós. Os estagiários de São Pedro também fazem hora extra e infelizmente, antes de chegar em casa e dormir, também temos que enfrentar o dilúvio.

Esses são alguns dos destinos que já pudemos experimentar durante esse período tão singelo que é o das 23h00 no transporte público de São Paulo. Geralmente nos causam muitas gargalhadas, as quais parecem ser ainda mais fortes nesse horário. Sempre tive a sensação de que a sonolência me deixa mais risonha. Ou talvez o riso seja a nossa forma de garantir a nossa boa sorte ou a forma com que encontramos de tornar a rotina menos cansativa e monótona. Até porque, antes das 23h00, tudo se repete. Acho que a deusa da Fortuna já cansou de experimentar mas, por sorte, ainda temos os estagiários.