Marta Nehring: a falácia da objetividade
e o alívio da dor na coletividade

Em entrevista, roteirista fala sobre a produção documental e o papel
da objetividade no audiovisual a partir do documentário 15 filhos

Marta Nehring em palestra na Escola de Comunicação e Artes da USP - Foto: Acervo Pessoal/Regina Lemmi

Texto: Enzo Campestrini, Frederico Gomes, Guilherme Bianchi, Luiz Dias, Maria Luiza Ribeiro, Matheus Ribeiro e Regina Lemmi

Marta Nehring é uma documentarista brasileira cuja carreira, segundo a própria, é bastante não linear, com “bagunçadas no meio do caminho”. Iniciou suas atividades profissionais na publicidade, mas migrou para a produção documental em 1996, com o premiado 15 Filhos. Além disso, também escreveu ficção, colaborando nos roteiros da novela Tititi e do longa Tudo Que Aprendemos Juntos.

Além de seu amplo repertório, as produções de Marta carregam suas vivências pessoais, marcadas pela ditadura brasileira. Marta é filha de Norberto Nehring, um guerrilheiro assassinado durante o regime. O curta 15 Filhos nasceu da necessidade de contar essa história a partir deste lugar de fala. A fala, inclusive, é um dos pontos de partida de seus trabalhos, que se voltam à memória e ao mergulho nos relatos.

Hoje atuando como professora e liderando novos projetos, Nehring compartilha um pouco de tudo isso em um bate-papo com os repórteres da JorGe.

Em qual contexto surgiu a ideia de fazer o documentário 15 Filhos?

“Então, esse filme foi feito em 1996, no momento de muita articulação entre as famílias para que fosse promulgada a lei que criou a Comissão Especial de Mortos Desaparecidos. 

Meu pai foi assassinado no Brasil com um nome falso, então a gente não tinha nenhuma história da morte dele. Nesse contexto, como é que você descobre que tem um crime cometido pelo Estado contra a sua família? O próprio Estado, ilegal, porém, no exercício da sua função de poder do Estado, simula uma farsa jurídica. Nós achamos fotos de pessoas no IML e você vê que aquela pessoa não se enforcou, ela morreu de porrada. Só que nem sempre as pessoas têm acesso a esses documentos.

Esse filme aconteceu no movimento para forçar o governo FHC a colocar essa Comissão de Justiça para funcionar.  O evento aconteceu na Unicamp e me pediram pra organizar uma mesa para discutir a questão dos filhos dos guerrilheiros. Já que não teria como chamar as pessoas pra falar de forma organizada, eu achei que tinha que fazer um filme. Foi mais uma questão prática mesmo.”

Como foi o processo de produção desse documentário, desde a
captação até a pós-produção, em termos de recursos e tempo?

“Bom, isso era o início da luta das famílias e a gente não tinha um puto para fazer esse negócio. Era tudo emprestado, inclusive as diárias de estúdio e câmera. Foi muito rápido, sabe? Graças aos que estavam ajudando a articular o movimento de familiares, ligamos para algumas pessoas e fomos preenchendo a agenda conforme era possível. 

Eu lembro de virar noites decupando o texto. A gente [Maria Oliveira e Nehring] transcreveu no papel. Eu dei uma selecionada e mandei para a Maria. A Maria jogou na ilha de edição e a gente foi reduzindo, reduzindo, reduzindo.

E foi muito rápido, então eu acho que a gente não teve muito tempo para sofrer. Quando você tem um evento, tem que estar pronto para o evento. É um deadline, né? Então assim, vai ser o que tiver que ser e ponto. Respire fundo e acredite que vai dar certo. Eu lembro disso: “acredita que vai dar certo”.”

Você acha que a semelhança da sua história com as histórias
retratadas contribuiu para a produção? De que maneira?

Contribuiu muito!As pessoas que vieram para as entrevistas comigo e a Maria se entregavam, porque elas confiavam em nós, éramos seus semelhantes. Para mim, essa é uma premissa muito forte, você pode usar essa conexão para gerar confiança e essa é a alma da entrevista.

Nem todo diretor bom sabe fazer entrevistas. Entrevistar é uma coisa meio de alma, meio mística, onde entrevistado e entrevistador têm que estar muito conectados um ao outro. Durante a entrevista é quase como um transe, como se o mundo se apagasse ao seu redor. Pode ser um exagero, claro, depende muito do tema que você está trabalhando.

Documentários geralmente são relacionados ao jornalismo e à objetividade do
gênero. Você buscou objetividade durante a produção do documentário?

Sobre isso, eu acho discutível, porque os documentários são um dos campos do audiovisual com mais experimentação. O teórico Bill Nichols analisou o assunto e chegou a uma conclusão muito bonita: documentário é tudo aquilo que um dia já chamaram de documentário.

Claro, existe o ramo de documentários jornalísticos que seguem as regras da área, mas quem trabalha com audiovisual tem uma certeza: tudo é 100% manipulado. A maior falácia dentro dessa área é a noção de verdade. Existem filmes de ficção mais verdadeiros que alguns documentários.

Tudo é enquadramento, o que você não enquadra, não existe, mas claro, tem elementos que mesmo fora do enquadramento podem afetar dentro da obra, como o barulho de chuva.

Quais foram as maiores dificuldades de trabalhar com um tema tão delicado e sensível?

Para nós não era uma dificuldade, era um alívio. A gente achou ótimo. No dia da projeção a gente tava dando risada e as pessoas chorando na plateia.

Na hora que as pessoas foram depor, entramos em um surto de felicidade. Nunca tínhamos nos encontrado e todos tinham sofrido horrores sozinhos. Então, apesar de se tratar de violência e dores profundas, para nós foi uma maravilha revisitar dessa maneira. 

Dependendo de quem lança o assunto, é libertador! Experiência é uma coisa curiosa, né? Dependendo de que lado você está, você vive de jeitos totalmente diferentes.

Você fala sempre sobre como experiências individuais podem sintetizar uma dor
coletiva e, em entrevistas, disse que isso se aplica à pandemia de Covid-19.
Como você relaciona as duas coisas ao processo de curativo da fala?

A ideia de falar sobre a pandemia é necessária, porque é um trauma coletivo. Quando a gente lançou o 15 Filhos, teve um festival na Alemanha e a curiosidade era exatamente sobre a realização de um filme como tradução de uma experiência coletiva, como um processo terapêutico.

Porque a questão é a seguinte, existem problemas individuais. Perder o pai na infância é sempre um desastre. Agora, há diferença de um guerrilheiro que foi morto sob tortura pelo Estado? Isso é um crime público. Ela pertence a vocês também. Essa dimensão pública é uma dimensão coletiva, essa é a única diferença.

Este equilíbrio faz parte da vida, porque nós somos um coletivo de cada um com seus perrengues. Mas é interessante isso, a dor é individual, mas a experiência é coletiva. A pandemia é bem isso. 

De que forma um profissional do jornalismo poderia se inserir no mercado do audiovisual?

Um campo onde jornalistas entram bem é em pesquisa. Uma produção boa tem pesquisa e não é pouco, inclusive em novelas. Para isso, existe uma associação chamada Pavic, que é a Associação de Pesquisadores do Audiovisual.

Por exemplo, eu fiz uma série para o History Channel, que foi a Mil Dias, sobre a construção de Brasília. Era uma série de docudrama, mais próxima da questão do jornalismo. A gente inventou personagens ficcionais para representar momentos chaves da história, mas ao mesmo tempo tinha muito material de pesquisa. 

O medo que agora vem surgindo é o da inteligência artificial, que poderia ameaçar os profissionais de pesquisa. Esse é o pânico. Mas eu acredito na matéria humana. 

Para finalizar, você poderia falar sobre seus próximos trabalhos?

Estou produzindo um documentário inspirado na marca de 50 anos do golpe de 1973, no Chile. Ele se chama “O Chile que habita em mim” e é bem parecido com 15 Filhos: são depoimentos de pessoas que eram crianças durante o governo Allende.

A busca é contar a experiência deles naquele governo socialista eleito democraticamente. A experiência do governo Allende, para quem estava lá, é de um socialismo de chorar de belo. Não por acaso o Chile foi massacrado e virou um laboratório da economia neoliberal. O que motiva é a curiosidade de saber: será que para os outros é igual?