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SEPULTAMENTO 14 – LAPA DO SANTO

SEPULTAMENTO 14 – LAPA DO SANTO

Localização Espacial e Estratigráfica

De acordo com os CEQs o Sepultamento 14 estava localizado na porção norte da quadra L08 (Figura 1). Conforme é possível observar no CEQ do nível 1 havia um enorme bloco caído sob o qual estava o Sepultamento 14. No nível 6, logo ao sul do sepultamento, uma estrutura foi descrita como uma possível fogueira.

Ainda de acordo com os CEQs o Sepultamento 14 está presente nos níveis 6 e 7 (Figura 1). A partir das cotas de abertura apresentadas na Tabela 8.14.1 é possível inferir que o topo da cova encontrava-se entre as cotas 0,287 e 0,417. No croqui do nível 6 existem três indicações de cotas diretamente associadas ao topo da cova: 0,124; 0,142 e 0,143. Já no CES a cota mais alta diretamente associada aos ossos é de 0,139. A cota do topo do Sepultamento 14 será considerada como 0,140. Com relação à base da cova as cotas norte de fechamento do nível 7 são de -0,122 e -0,004. No CES as cotas mais inferiores estão associadas a alguns ossos do pé e são 0,046; 0,054 e 0,061. Será considerado o valor de 0,050 como cota de base deste sepultamento. Entretanto, isso indica que mesmo estando presente no CEQ do nível 7 o Sepultamento 14 encontra-se restrito de forma exclusiva ao nível 6 da quadra L08.

 

Tabela 1. Cotas verticais iniciais (z)
Quadra Nível NW NE SE SW
L08 1 0,547 0,962 x 1,084
L08 6 0,287 0,417 0,450 0,359
L08 7 0,046 0,097 0,166 0,091
L08 8 -0,122 -0,004 0,030 -0,011

 

Figura 1 – Lapa do Santo. Sepultamento 14. Croqui de escavação da quadra L08.

 

Descrição do Enterramento

O Sepultamento 14 é composto por um crânio de um indivíduo adulto e pelos ossos de pelo menos outros três indivíduos sub-adultos. As Figuras 2 a 6 apresentam as fotos e os CESs de cada exposição. A face e algumas regiões do basicrânio não estavam presentes, mesmo o crânio apresentando excelentes condições de preservação (Figura 9). Manchas avermelhadas, seguramente decorrentes da aplicação de ocre, foram identificadas na parte basal e lateral das porções mais anteriores do crânio (Figura 10). Estas manchas são particularmente intensas na superfície superior das órbitas e nas fossas temporais. Não foram identificadas marcas de queima ou corte no crânio. O eixo nasion-opistocrânio estava orientado no sentido NW-SE. A base do crânio estava para baixo e o topo para cima. Segundo o diário de cura o crânio estava preenchido por sedimentos.

Ao lado do crânio foi colocado um fardo de ossos constituído exclusivamente por peças de sub-adultos (Figuras 7 e 8). Faziam parte do fardo ossos longos, ossos da bacia, escápula, clavícula, costelas e ossos de pé e/ou mão[1]. De acordo com a FES, esse fardo estava colocado por cima e ao lado direito do crânio. As extremidades desse fardo estavam delimitadas pelas duas pélvis da criança mais velha. As costelas foram colocadas por cima dos ossos longos.

A partir do tamanho dos ossos foi possível determinar que pelo menos três indivíduos sub-adultos estavam representados, com idades aproximadas de 38 semanas, 1 ano e 3 anos[2]. O indivíduo de 38 semanas estava representado por um único osso, notadamente o rádio esquerdo. O indivíduo com cerca de 1 ano estava representado pelos seguintes ossos: rádio direito, úmero esquerdo,extremidade proximal do úmero direito, tíbia esquerda, tíbia direita, fíbula direita, fêmur esquerdo, escápula esquerda, ílio esquerdo, púbis esquerdo, ísquio direito. O indivíduo com cerca de 3 anos estava representado pelos seguintes ossos: rádio esquerdo, ulna esquerda, epífise proximal de fêmur esquerdo, escápula direita, escápula esquerda, ílio esquerdo, ílio direito, ísquio esquerdo, ísquio direito e púbis esquerdo. Possivelmente, os ossos de mão e pé que foram encontrados pertencem ao indivíduo com cerca de 1 ano de idade (Figura 11).

Dentre os ossos longos que faziam parte do fardo, dois consistem em epífises cujas diáfises foram removidas, seis consistem em diáfises cujas epífises foram removidas e dois são ossos inteiros sem nenhum sinal de manipulação (Figura 12). É importante salientar que o termo epífise esta sendo utilizado em sua acepção mais ampla, referindo-se às extremidades dos ossos longos. Tecnicamente, essas “epífises” incluem, algumas vezes, a metáfise e até mesmo parte da extremidade da própria diáfise. No caso dos ossos de indivíduos subadultos, como os que constituem o fardo de ossos associados ao Sepultamento 14, o termo epífise refere-se às partes não fusionadas dos ossos. Nesse sentido, nenhuma epífise estava presente nesse fardo de ossos.

Diversas incisões foram observadas nos ossos longos. A epífise proximal do fêmur esquerdo do indivíduo de 3 anos foi seccionada imediatamente abaixo do pescoço. Na parte medial desse, estava presente um conjunto de incisões finas e paralelas entre si orientadas transversalmente ao pescoço do fêmur (Figura 13a). Na parte anterior havia uma depressão na superfície cortical, paralela à margem seccionada, que muito provavelmente é um chanfro completo associado ao corte do osso (Figura 15).

Já a extremidade proximal do úmero direito do indivíduo de 1 ano não apresenta nenhum tipo de incisão ou chanfro. A superfície da margem que define o plano em que ocorreu a quebra é irregular. Mesmo assim, não parece haver qualquer dúvida de que essa epífise foi intencionalmente removida. Esse exemplo é importante pois evidencia de forma óbvia aquilo que em outros casos pode ser mais sutil. Notadamente, que o processo de remoção da diáfise ou da epífise não precisa, necessariamente, deixar marcas de corte no osso, ou que essas marcas podem ser perdidas pela posterior fragmentação da margem em que o corte foi realizado.

Tanto a tíbia direita como a tíbia esquerda do indivíduo de 1 ano apresentavam feições características relacionadas à remoção das suas epífises (Figura 13d – 12i) . As superfícies seccionadas são planas com bordas retilíneas e existe uma profusão de incisões ao longo da diáfise. Em sua maioria, essas não apresentam a morfologia característica das incisões descritas em outros ossos da Lapa do Santo. Comparada com as incisões mais comuns essas são mais largas, com cerca de 0,6 milímetros de espessura. Na diáfise da tíbia direita essas incisões estão presentes tanto nas extremidades como na região central e, em sua maioria, são transversais ao eixo do osso. Elas ocorrem preferencialmente na face medial da tíbia, estando presentes também na face posterior, mas completamente ausentes da face latero-anterior. Na extremidade proximal, na sua face medial, também foi observada um incisão do tipo “tradicional” com 23 milímetros de comprimento, obliqua ao eixo do osso. Na diáfise da tíbia esquerda também foram observadas incisões, ainda que em número muito menor. Enquanto na diáfise da tíbia direita um mínimo de 13 incisões foi observado, na tíbia esquerda apenas 3 incisões estavam presentes. Essas 3 incisões também não eram do tipo convencional, sendo mais largas e idênticas às descritas para a tíbia direita. Elas estavam localizadas na parte medial da diáfise, em sua porção proximal. Nenhum chanfro foi observado nessas diáfises.

A diáfise do fêmur esquerdo do indivíduo de 1 ano também apresentava feições típicas associadas à remoção das epífises. Assim, as superfícies em que o osso terminava eram planas com bordas retilíneas e foram identificadas incisões ao longo do osso. Ao contrário das tíbias, as incisões presentes na diáfise do fêmur apresentavam uma morfologia semelhante às incisões comumente observadas nos ossos da lapa do Santo (Figuras 13b e 13c). Dois agrupamentos de incisões, muito próximos, foram observados. Um deles, era composto por um mínimo de 10 incisões e estava localizado na porção anterior da diáfise, no seu terço proximal. O outro, localizado exatamente na mesma altura da diáfise só que em sua face medial, era composto por um mínimo de 5 incisões. Em sua maioria essas incisões eram obliquas ao eixo do osso.

O úmero esquerdo do indivíduo de 1 ano de idade também teve suas epífises removidas, ainda que no caso da extremidade distal essa remoção tenha sido apenas parcial. Na extremidade proximal, a superfície em que o osso termina é plana e apresenta bordas retilíneas, apontando para uma remoção intencional da epífise. Já na extremidade distal, não existe uma tal superfície já que o osso termina no meio da epífise. Portanto, é difícil ter certeza se é o caso de um corte intencional ou se o osso foi quebrado por processos pós-deposicionais. Na porção antero-medial da diáfise, em sua região central, estava presente um agrupamento de 3 incisões obliquas ao eixo do osso (Figura 14a). Não havia nenhum chanfro nele.

Outro osso que apresentava sinais inquestionáveis de manipulação é o rádio direito do indivíduo de 1 ano de idade. Entretanto, ao contrário dos demais ossos discutidos até este ponto, nesse rádio não há nenhuma incisão, mas sim uma depressão na superfície cortical cujo eixo maior era transversal ao eixo do osso (Figuras 14b). Essa depressão, que esta localizada próximo à região onde foi realizada a quebra da diáfise, poderia ser um chanfro. O fato desse chanfro estar completamente acima (ie. proximal) da margem de corte e, ao mesmo tempo, paralelo a ela, indica que ele é o resultado de um gesto que “errou” a “linha mestra” segundo a qual a diáfise estava sendo seccionada. A superfície na qual a diáfise termina, entretanto, não apresenta a morfologia típica com bordas retilíneas que geralmente é observada no caso de secção de diáfises. Pelo contrário, ela é irregular e apresenta uma série de destacamentos ósseos. Ainda que esse padrão poderia ter sido gerado pela fragmentação pós-deposicional desse osso, também é possível que essa seja uma feição perimortem (i.e. gerado no osso enquanto ele ainda estava verde). Afinal, devido ao seu tamanho (4,45 mm x 1,60mm), o chanfro descrito acima praticamente engloba toda a espessura da diáfise. Possivelmente, a espessura do artefato era grande demais para permitir que o osso fosse cortado, levando à sua fragmentação.

Do indivíduo de 3 anos a única diáfise que apresenta possíveis sinais da remoção da epífise é a da ulna esquerda. Ainda assim, a evidência aqui é menos explícita do que nos casos citados acima. Assim, essa ulna esta praticamente inteira e a única parte ausente é a extremidade proximal da epífise proximal (Figuras 14d e 14e). Não há nenhuma incisão. Na extremidade proximal, há um possível chanfro caracterizado por uma depressão no osso cortical. Essa depressão, por sua vez, esta localizada próxima à região do osso que esta quebrada e é paralela à borda dessa quebra. Em conjunto isso fortalece a idéia de que a quebra é, na verdade, um plano de secção e que a depressão é, na verdade, um chanfro. Além disso, existe um destacamento de osso transversal ao eixo longo do osso cuja origem é justamente a superfície na qual o osso estava quebrado, sugerindo se tratar de fato de uma superfície de corte.

A fíbula direita do indivíduo de 1 ano e o rádio esquerdo do indivíduo de 3 anos são os únicos ossos longos que faziam parte do fardo de ossos e que não apresentavam nenhum sinal que indicasse a remoção das suas epífises ou diáfises. Ainda assim, no caso da fíbula direita, foram observadas algumas incisões na porção central da diáfise (Figura 14c).

Nos demais ossos que faziam parte do fardo (i.e. ossos não longos) não foram observados incisões ou chanfros.

Modo de enterramento

A presença de ossos de quatro indivíduos, a total desarticulação anatômica, a disposição dos ossos na cova, a aplicação de ocre vermelho no crânio e a remoção de epífises e diáfises deixa claro que se trata de um sepultamento secundário. Entretanto, a presença das marcas de corte mostra que parte desse ritual, notadamente o processo de remoção dos ossos longos, ocorreu num momento em que os tecidos moles, pelo menos os tendões, ainda estavam presentes.

 

Figura 2 – Lapa do Santo. Sepultamento 14. Foto da exposição 1 e seu respectivo croqui. Em vermelho as costelas, em azul os ossos da bacia e em verde os ossos de mão ou pé. F = Fêmur e R =Rádio.

 

Figura 3 – Lapa do Santo. Sepultamento 14. Foto da exposição 2 e seu respectivo croqui. Em vermelho as costelas, em azul os ossos da bacia e em verde ossos de mão ou pé. E = Escápula, Fí = Fíbula e F = Fêmur.

 

Figura 4 – Lapa do Santo. Sepultamento 14. Foto da exposição 3 e seu respectivo croqui. Em vermelho as costelas, em azul os ossos da bacia e em verde os ossos de mão ou pé. E = Escápula, F = Fêmur, Fí = Fíbula, R = Rádio, T = Tíbia, U = Úmero.

 

Figura 5 – Lapa do Santo. Sepultamento 14. Foto da exposição 4 e seu respectivo croqui. Em vermelho as costelas. E = Escápula, F = Fêmur, Fí = Fíbula, R = Rádio, T = Tíbia, U = Úmero.

 

Figura 6 – Lapa do Santo. Sepultamento 14. Foto da exposição 5 e seu respectivo croqui. Em vermelho as costelas, em azul os ossos da bacia e em verde os ossos de mão ou pé. E = Escápula.

 

Figura 7 – Lapa do Santo. Sepultamento 14. Fotos de campo mostrando as etapas consecutivas da exumação dos ossos que faziam parte do fardo.

 

Figura 8 – Lapa do Santo. Sepultamento 14. Fotos de campo. a) vista em planta da quadra L08 nos estágios iniciais da exumação em que só é possível observar as costelas do fardo de ossos (seta preta); b) a d) vista de leste para oeste mostrando a disposição do crânio em estágios progressivos da exumação, reparar que o neurocrânio estava vazio.

 

Figura 9 – Lapa do Santo. Sepultamento 14. Vista do crânio em norma frontal, posterior, lateral direita, lateral esquerda, superior e inferior.

 

Figura 10 – Lapa do Santo. Sepultamento 14. Detalhe das manchas avermelhadas encontradas nas porções basais e laterais do crânio. À esquerda vista lateral do osso temporal direito e à direita vista inferior da órbita direita.

 

Figura 11 – Lapa do Santo. Sepultamento 14. Ossos da mão e do pé que faziam parte do fardo de ossos.

 

Figura 12 – Lapa do Santo. Sepultamento 14. Ossos longos. Da esquerda para a direita: Fêmur esquerdo, tíbia direita, fíbula direita, tíbia esquerda, úmero direito, ulna esquerda e rádio direito. Os cinco primeiros apresentam tamanho compatível com um indivíduo de cerca de 1 ano de idade e os dois últimos com um indivíduo com cerca de 3 anos de idade.

 

Figura 13 – Lapa do Santo. Sepultamento 14. Fotos das incisões presentes nos ossos longos. Em todas as fotos a extremidade distal encontra-se na parte inferior da imagem. a) extremidade proximal do fêmur esquerdo; b) e c) vista anterior e lateral do fêmur esquerdo; d) vista medial da tíbia esquerda; e) vista medial da parte proximal da tíbia direita; f) vista posterior da parte proximal da tíbia direita; g) vista medial da diáfise da tíbia direita; h) vista medial da metáfise proximal da tíbia direita; i) vista medial da diáfise da tíbia direita.

 

Figura 14 – Lapa do Santo. Sepultamento 14. Fotos das incisões presentes nos ossos longos. a) vista anteromedial da diáfise do úmero esquerdo; b) vista posterior da diáfise do rádio direito; c) diáfise da fíbula direita; d) vista lateral da ulna esquerda, a seta indica a região que existe um desnível do osso cortical, possivelmente em decorrência do processo de chanframento; e) vista posterior da ulna direita, detalhe para o destacamento superficial do osso cortical (seta preta).

 

Figura 15 – Lapa do Santo. Sepultamento 14. Extremidade proximal do fêmur esquerdo (o mesmo da Figura 8.14.13a). a) vista posterior e anterior, a seta preta indica a região que aparece em detalhe nas figuras b) e c); b) e c) detalhe da depressão no osso com duas fontes de iluminação distinta, no intuíto de melhor visualizar sua morfologia. Possivelmente, essa depressão pode ser um chanfro.

 

Figura 16 – Lapa do Santo. Sepultamento 14. Tíbia direita (mesma tibia da Figura 13g).

 

Figura 17 – Lapa do Santo. Sepultamento 14. Tíbia direita (mesma da Figura 13h).

 

Figura 15 – Lapa do Santo. Sepultamento 14. Rádio direito (mesma da Figura 14b).

 

[1] Devido ao tamanho diminuto dos ossos não foi possível determinar se eram ossos de pé ou mão

[2] NOTA DA VERSÃO CORRIGIDA: Na verdade apenas dois individuos sub-adultos estão representados. O osso do indivíduo de 38 semanas na verdade era um osso de tatu (identificado por Elver Mayer).