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SEPULTAMENTO 17 – LAPA DO SANTO

SEPULTAMENTO 17 – LAPA DO SANTO

Localização Espacial e Estratigráfica

O Sepultamento 17 foi encontrado na quadra L11. A Figura 1 mostra os CEQs correspondentes aos níveis que serão discutidos a seguir. As cotas de abertura da quadra e desses níveis constam na Tabela 1.

O Sepultamento 17 está localizado no extremo norte da quadra L11. Não havia nenhuma pedra recobrindo-o, com exceção do grande bloco caído que obviamente não estava associado ao sepultamento (vide o CEQ do nível 1 mostrado na Figura 1 para a posição deste enorme bloco que foi posteriormente retirado para a escavação dos sepultamentos 14 e 17).

Nos CESs, a cota mais elevada é aquela que está associada ao topo do crânio e que é de -0,141. Essa cota está de acordo com as cotas referentes ao nível 9 em que o sepultamento foi encontrado e, portanto, parece confiável para ser utilizada como cota do topo do sepultamento. A cota mais inferior informada pelos CESs também estava associada a ossos do crânio e é de -0,251. A cota indicada na FES para um carvão coletado abaixo do crânio (i.e. no fundo da cova; amostra A769) é de -0,253 e, portanto, concordante com aquela. Será considerada a cota do carvão como fundo da cova.

Esse sepultamento encontra-se imediatamente abaixo do Sepultamento 14, cuja cota da base é de -0,140.

 

Tabela 1. Cotas verticais iniciais (z).
Quadra Nível NW NE SE SW
L08 1 0,547 0,962 n/d 1,084
L08 9 -0,203 -0,150 -0,099 -0,109
L08 10 -0,295 -0,255 -0,209 -0,212

 

Figura 1 – Lapa do Santo. Sepultamento 17. Croqui de escavação da quadra L08.

 

Descrição do enterramento

O Sepultamento 17 é composto por um crânio adulto preenchido com ossos cortados de um indivíduo também adulto e por um conjunto de ossos de uma criança que foram colocados ao lado do crânio. As Figuras 2 a 4 apresentam as fotos e os CESs de cada exposição

O crânio estava quase completo, mas as regiões temporais e basais, bastante fragmentadas. Entre os ossos que foram encontrados dentro do crânio foi possível distinguir aqueles que faziam parte do próprio crânio e ossos de outras regiões anatômicas (Figuras 5 a 7). Na primeira categoria estão fragmentos do temporal, do parietal, da face, do maxilar e da mandíbula. De acordo com a descrição de campo, não há duvidas de que a presença desses ossos dentro do crânio é fruto da ação intencional dos agentes fúnebres. A posição do parietal, por exemplo, em que a face endocraniana está voltada para fora do crânio, não é compatível com um simples evento de quebra do mesmo.

Tanto o maxilar como a mandíbula não apresentavam nenhum dos dentes, com exceção das raízes do primeiro e do segundo molar inferior direito, que permaneceram no alvéolo (Figuras 8 e 9). Na medida em que todos os alvéolos estão preservados, não se trata de perda natural dos dentes. Além disso, como nenhum dos dentes foi encontrado junto ao sepultamento ou próximo a ele, sua ausência não pode ser atribuída a processos pós-deposicionais. Portanto, ou os dentes foram intencionalmente extraídos ou eles caíram durante um suposto período em que o crânio teria sido manuseado. Ainda que não existam disponíveis elementos suficientes para determinar com certeza qual hipótese está correta, a altíssima preservação dos alvéolos e a existência de casos etnográficos como o dos Munduruku (veja discussão no capítulo 8) me fazem sugerir que a primeira hipótese é a mais provável.

As regiões basais do crânio, representadas por fragmentos e pela margem alveolar externa do maxilar, e a mandíbula apresentavam regiões escurecidas indicativas de queima (Figuras 8 a 10). No caso da mandíbula e do maxilar, apenas a parte exterior da margem alveolar foi queimada, particularmente a região compreendida entre os dois primeiros pré-molares. Além disso, nem o palato nem o interior dos alvéolos estavam queimados. Tal configuração indica que o evento de queima ocorreu enquanto esse indivíduo ainda tinha os dentes, impedindo que a queima afetasse a parte interna dos alvéolos. Mais do que isso, a distribuição espacial das áreas afetadas pelo calor sugere que os tecidos moles ainda estavam presentes no momento da queima. Afinal, num crânio com os tecidos moles (não apenas os tendões, mas os músculos e a pele também), a única abertura através da qual os dentes e os ossos ficariam diretamente expostos a uma fonte de calor é a da boca. Assim, é de se esperar que, no caso de um crânio em que os tecidos moles estejam presentes, as partes mais diretamente expostas ao calor (i.e. a parte anterior do maxilar e mandíbula) sejam aquelas que apresentem a maior intensidade de queima, como observado no caso do Sepultamento 17.

Dentro do crânio também foram encontrados uma epífise distal de úmero esquerdo, uma epífise proximal de ulna esquerda, uma clavícula esquerda e uma direita, ossos da mão, escápula esquerda e fragmentos de ossos longos. A partir de seus tamanhos e da ausência de epífises não fusionadas, é possível afirmar que todos os ossos eram de indivíduo adulto. Uma vez que o rádio e a ulna se articulam perfeitamente não resta dúvida de que pertenciam ao mesmo indivíduo. Com relação aos demais ossos, ainda que seja impossível ter certeza absoluta, será assumido que também pertenciam ao mesmo indivíduo. Os ossos longos em particular apresentavam clara evidência de manipulação na forma de marcas de corte e queima.

Tanto a epífise distal de úmero (Figura 11) como a de ulna (Figura 12) foram nitidamente cortadas e removidas da diáfise. No úmero é possível discernir dois tipos distintos de marcas associadas a esse processo de corte e remoção da diáfise. Um desses tipos pode ser observado na Figura 11b, que mostra um conjunto de incisões subparalelas muito finas localizadas na parte lateral da superfície anterior do úmero. Interpreta-se que essas marcas estão associadas às etapas inicias do processo de amputação em que a retirada dos músculos e de tecidos moles era o principal objetivo. Já as Figuras 11f e 11g apresentam um tipo completamente distinto de “incisão”, que serão aqui chamados de “chanfros”, que são muito mais largos do que as marcas anteriores. A orientação desses chanfros coincide perfeitamente com a borda gerada no osso pelo processo de separação da diáfise. Além disso, os chanfros estão próximos à borda cortada do osso. No caso da ulna, é possível observar quatro chanfros em sequência e paralelos entre si (Figura 12). Esse tipo de marca deve ser resultado das etapas finais de amputação, cujo objetivo era o corte do osso propriamente dito através de chanfraduras. Por fim, tanto a borda do úmero como da ulna, que foram geradas pelo processo de remoção da diáfise, apresentam uma morfologia característica em que a cortical do osso fica inclinada em relação ao plano transversal da diáfise, gerando um perfil bizelado (Figura 13). Ao que me parece, uma feição desse tipo não poderia, em absoluto, ter sido gerada em osso seco ou fossilizado, já que esses não apresentariam a plasticidade necessária pare serem cortados dessa maneira. Também foram observadas incisões que podem ter sido geradas por instrumentos cortantes no zigomático direito (Figura 14).

A Figura 15a mostra os ossos de mão que estavam colocados dentro do crânio. Com exceção de uma única falange, na qual é possível observar duas incisões paralelas, não existem marcas indicativas de corte nas falanges. Por outro lado, dois dos quatro metacarpos que foram encontrados apresentavam uma quebra na região intermediária de suas diáfises com feições que não parecem ser resultado de uma quebra natural de osso fossilizado (Figuras 15b e 15c). A forma de bisel do osso cortical, o destacamento oblíquo da superfície óssea e a presença de uma incisão muito parecida com as descritas acima para o úmero e a ulna, sugerem fortemente que esses ossos também foram cortados. Analogamente, as duas clavículas também apresentam um tipo similar de quebra nas regiões intermediárias de sua diáfise em a superfície da fratura é extremamente oblíqua em relação ao eixo longo do osso (Figura 16). Por outro lado, não foi identificada nenhuma incisão indicativa de corte. Junto essas duas características sugerem fortemente que essas clavículas foram quebradas, enquanto o osso ainda estava verde, sem o auxílio de um instrumento de corte.

Ainda dentro do crânio foram recuperados cerca de 20 fragmentos de osso que apresentavam marcas de corte e queima (Figura 17). Estes fragmentos tinham tamanho reduzido (não mais do que 5 centímetro de comprimento) de maneira que nem todos puderam ser identificados. Entretanto, de maneira geral são fragmentos da diáfise de ossos longos que foram cortados no sentido transversal. O melhor exemplo é um fragmento de tíbia (indicado pela seta verde na Figura 17) que apresenta tanto as marcas de cortes largas como a borda em forma de bisel descritas acima para as epífises de úmero e de ulna.

Próximo ao crânio, mas fora dele, havia um fardo de ossos formado pelos dois fêmures, dois úmeros, o coxal esquerdo e a escápula direita de um indivíduo subadulto (Figuras 18 e 19). Os ossos longos foram dispostos paralelamente uns aos outros, formando uma espécie de feixe. Esses ossos estavam praticamente inteiros, mas no caso dos quatro ossos longos, as extremidades estavam ausentes (Figura 20). É difícil julgar se essa ausência é decorrente de ação intencional ou não. Em primeiro lugar, não foi observada nenhuma marca de corte macroscópica associada aos ossos deste indivíduo subadulto. Entretanto, as extremidades dos ossos longos terminam de forma demasiada abrupta (numa superfície quase plana e transversal ao eixo maior do osso) para terem sido geradas como efeito colateral do enterramento[1] ou de desgaste pós-deposicional. Por outro lado, em indivíduos subadultos a diáfise termina numa superfície plana e cartilaginosa, o que poderia explicar o padrão observado. Ainda assim, no caso da extremidade proximal dos dois fêmures, a borda localiza-se exatamente no início do pescoço do fêmur, que não é um centro de crescimento ósseo. Além disso, no Sepultamento 14, localizado a menos de 10 centímetros acima do Sepultamento 17, foi encontrado um pescoço de fêmur com sua respectiva cabeça com nítidas marcas de amputação.

Quando se observam as bordas próximas às extremidades desses ossos longos, verifica-se que existem pequenas marcas que parecem ter sido feitas com o osso ainda verde devido à sua textura fibrosa. Não se trata de incisões, mas sim de “lascamentos” do osso superficial. Ainda que essas marcas possam ter sido geradas pelo atrito dos ossos devido ao processo de enterramento em si, também é possível que elas sejam resultado do processo de remoção dos membros do tronco. Por fim, ainda que não tenham sido reconhecidas marcas de corte nos ossos do indivíduo subadulto do Sepultamento 17, no Sepultamento 14 elas foram amplamente documentadas, mostrando que os membros dos indivíduos subadultos eram de fato removidos do corpo através do corte dos tecidos moles. Uma vez que o Sepultamento 14 apresenta importantes semelhanças com o Sepultamento 17, parece razoável supor que em ambos os casos a remoção dos membros foi feita por procedimentos similares.

 

Figura 2 – Lapa do Santo. Sepultamento 17. Foto da exposição 0 e seu respectivo croqui.

 

Figura 3 – Lapa do Santo. Sepultamento 17. Foto da exposição 1 e seu respectivo croqui. Em vermelho, os ossos do indivíduo adulto e, em preto, os do indivíduo subadulto.

 

Figura 4 – Lapa do Santo. Sepultamento 17. Foto da exposição 2 e seu respectivo croqui. Em vermelho, os ossos do indivíduo adulto e, em preto, os do indivíduo subadulto.

 

Figura 5 – Lapa do Santo. Sepultamento 17. Fotos de campo. a) vista em ângulo permite observar a posição relativa do feixe de ossos em relação ao crânio; b) detalhe dos ossos que estavam dentro do crânio; c) detalhe da mandíbula, cujos alvéolos estavam vazios, e dos ossos da mão.

 

Figura 6 – Lapa do Santo. Sepultamento 17. Vista do crânio em norma frontal, posterior, lateral direita, lateral esquerda, superior e inferior.

 

Figura 7 – Sepultamento 17. Foto do crânio em laboratório antes do início da cura. A calota estava preenchida por ossos do próprio crânio, epífises de ossos longos amputados, escápula e ossos de mão.

 

Figura 8 – Lapa do Santo. Sepultamento 17. a) Maxilar visto em norma basal; b) maxilar visto em norma frontal; c) maxilar visto em norma lateral direita. Reparar como as margens dos alvéolos encontram-se queimadas e na ausência de dentes.

 

 

 

Figura 10 – Lapa do Santo. Sepultamento 17. Osso temporal e osso zigomático apresentam partes queimadas.

 

Figura 8.17.E1 – Lapa do Santo. Sepultamento 17. Escápula esquerda em vista posterior e anterior.

 

Figura 11 – Lapa do Santo. Sepultamento 17. Extremidade distal do úmero esquerdo. Em todas as fotos a extremidade distal encontra-se na parte inferior da imagem. a) vista anterior e posterior; b) detalhe para as incisões presentes na face anterior do osso; c) incisão na parte medial do osso; d) incisão (indica pela seta preta) na parte lateral da troclea (indicada pela seta branca); e) incisões muito finas na porção anterior do epicôndilo medial; f) e g) vista posterior e anterior, respectivamente, com ênfase para os chanfros e a superfície biselada em que ocorreu a remoção do osso.

 

Figura E2 – Lapa do Santo. Sepultamento 17. Microscopia eletrônica de varredura das incisões da extremidade distal do úmero esquerdo (vide Figura 11b).

 

Figura 12 – Lapa do Santo. Sepultamento 17. Extremidade proximal da ulna esquerda. Vista lateral, posterior, medial e anterior. No detalhe, os chanfros presentes na região anterior da diáfise.

 

Figura 13 – Lapa do Santo. Sepultamento 17. a) Úmero esquerdo, reparar no formato de bisel da parte amputada; b) a extremidade proximal da ulna esquerda e a extremidade distal do úmero esquerdo articulavam-se perfeitamente.

 

Figura 14 – Lapa do Santo. Sepultamento 17. Zigomático direito. Incisões semelhantes às observadas nos ossos indubitavelmente cortados.

 

Figura E3 – Lapa do Santo. Sepultamento 17. Zigomático direito.

 

Figura E3 – Lapa do Santo. Sepultamento 17. Zigomático direito (continuação).

 

Figura 15 – Lapa do Santo. Sepultamento 17. a) Ossos da mão que foram encontrados dentro do crânio, no detalhe vista palmar de uma falange em que podem ser observadas duas incisões; b e c) metacarpos que tinham suas diáfises quebradas; nos detalhes abaixo da linha tracejada é possível observar a forma biselada do osso cortical, o destacamento oblíquo da superfície do osso e a presença de chanfros similares àqueles descritos no úmero e na ulna (indicado pela seta preta nos detalhes ).

 

Figura 16 – Lapa do Santo. Sepultamento 17. a) Clavícula direita; b) clavícula esquerda. Nos detalhes, a superfície onde a diáfise estava quebrada.

 

Figura 17 – Lapa do Santo. Fragmentos de ossos do indivíduo adulto do Sepultamento 17. Esses ossos foram encontrados dentro do crânio. a) vista geral dos fragmentos que, com exceção do nº5 (possivelmente escápula), são de ossos longos. Muitos deles apresentam marcas de corte e sinais de queima. Nos detalhes, o número ao lado da letra indica o fragmento representado. b), c), d), e) alguns fragmentos são seções das diáfises e apresentam uma de suas extremidades com morfologia tipicamente biseladas (reta vermelha) e a outra como um plano perpendicular (reta verde) ao eixo do osso. A reta azul indica o contorno da superfície natural do osso; f), g) as setas verdes indicam os chanfros e a seta vermelha uma fratura gerada pela exposição ao fogo; h) abaixo da linha tracejada região do osso inalterada, acima, região corrugada; i) reparar no chanfro.

 

Figura 18 – Lapa do Santo. Sepultamento 17. Vista anterior (a) e posterior (b) do fardo de ossos que é composto exclusivamente por peças ósseas de um único indivíduo subadulto. Estava ao lado do crânio do indivíduo adulto.

 

Figura 19 – Lapa do Santo. Sepultamento 17. Ossos da bacia e do ombro do indivíduo subadulto do Sepultamento 17. a) ílio esquerdo; b) ísquio esquerdo; c) escápula esquerda; d) escápula direito.

 

Figura 20 – Lapa do Santo. Sepultamento 17. Ossos longos do indivíduo subadulto do Sepultamento XVII. a), b), c), d) vistas anterior, lateral, posterior e medial do úmero esquerdo, do úmero direito, do fêmur esquerdo e do fêmur direito, respectivamente. Reparar como as extremidades proximais dos úmeros e as duas extremidades dos fêmures terminam de forma abrupta num plano perpendicular à diáfise (ou eixo do pescoço do fêmur no caso das extremidades proximais desses). No caso do fêmur esquerdo, há uma quebra feita após a exumação que interrompe essa superfície (seta vermelha), descaracterizando-a (inclusive, quanto a foto da Figura 8.17.18 foi tirada esse porção ainda não tinha sido fragmentada); e), f), g) detalhe das superfícies em que os ossos terminam; h) as extremidades distais do úmero, apesar de “incompletas”, não apresentam o mesmo tipo de superfície perpendicular; i), j) por outro lado, pelo menos no caso do úmero esquerdo, é possível observar regiões próximas à extremidade onde há um descamamento do osso cortical com textura fibrosa.

 

[1] Ou seja, o osso pode ter sido quebrado durante o enterramento sem que esta fosse a intenção dos agentes.