SEPULTAMENTO 18 – LAPA DO SANTO
Localização Espacial e Estratigráfica
O Sepultamento 18 foi encontrado entre os limites das quadras L10 e L11. Entretanto, não há nos CEQs de nenhuma delas qualquer indicação explícita da presença desse sepultamento (Figura 1). Segundo a FES, ele estava localizado no nível 8. De fato, no CEQ da L11 existe indicação de um conjunto de ossos longos na parte sul da quadra no nível 8 (orientados em sentido N-S). Comparando-se o CEQ com o único CES disponível (Figura 2) fica claro que o conjunto de ossos longos são, de fato, aqueles identificados como Sepultamento 18.
A cota mais elevada associada a esse sepultamento refere-se à posição dos ossos longos e é de -0,360 (vide FES). Não há nenhuma cota explicitamente indicada como base do sepultamento, mas no CES há uma cota de -0,450 próxima ao conjunto de ossos longos e será considerada como base do Sepultamento 18. Conforme pode ser verificado na Tabela 8.18.1, essas cotas para o topo e base estão dentro dos limites estipulados para o nível 8 da quadra L11 e, portanto, estão de acordo com a afirmação da FES de que o Sepultamento 18 se encontra no nível 8.
Tabela 1. Cotas verticais iniciais (z) | |||||
Quadra | Nível | NW | NE | SE | SW |
L10 | 9 | -406 | -383 | -280 | -279 |
L10 | 10 | -486 | -525 | -399 | -368 |
L11 | 8 | -357 | -350 | -300 | -250 |
L11 | 9 | -491 | -457 | -383 | -406 |
L11 | 10 | -598 | -545 | -486 | -525 |
Figura 1 – Lapa do Santo. Sepultamento 18. Croquis de escavação de quadra. Em vermelho, regiões onde foram encontrados ossos humanos. Em cinza, blocos de calcário. Em azul, regiões onde foram identificadas manchas brancas. Em preto, buracos.
Descrição do Sepultamento
O Sepultamento 18 é constituído por ossos não articulados de pelo menos um adulto e uma criança (Figuras 2 a 6). Os ossos não estavam dentro de uma cova, ou pelo menos, os limites dessa não foram reconhecidos. O indivíduo adulto está representado pelos dois úmeros, pelo rádio direito e por um fragmento de diáfise de osso longo que, possivelmente, é um fêmur (Figura 6). Há também um único incisivo central de um indivíduo adulto, embora seja impossível determinar se ele é do mesmo indivíduo representado pelos os ossos longos (ou se de fato faz parte desse sepultamento). Já a criança está representada por uma mandíbula muito bem preservada, por dois ossos temporais e por um occipital quase inteiro (Figuras 4 e 5).
Os ossos longos estavam dispostos num feixe, paralelos entre si. O eixo do feixe encontrava-se, grosso modo, orientado no sentido norte-sul. Esse feixe de ossos longos encontrava-se diretamente sobre a mandíbula da criança. Essa última estava em posição vertical, com a parte anterior para baixo e os côndilos para cima. Formava, assim, uma espécie de arco sobre o qual o feixe de ossos longos estava encaixado (vide CES na Figura 2). De acordo com o diário do sítio, esses ossos estavam cimentados uns aos outros quando foram encontrados.
Os ossos do crânio e o dente encontravam-se cerca de 20 centímetros distantes do conjunto formado pelos ossos longos e pela mandíbula. Inclusive, na FES há a ressalva de que, apesar de os ossos do crânio e o dente terem sido escavados como Sepultamento 18, não há nenhuma evidência inconteste registrada em campo que garanta que eles pertenciam de fato a esse sepultamento.
Ainda que seja impossível ter certeza, sugere-se que o dente é um elemento intrusivo, mas os ossos do crânio não. A favor de considerar os ossos do crânio como pertencentes ao Sepultamento 18 está o fato de eles pertencerem a um indivíduo subadulto, assim como o fato da mandíbula estar associada ao feixe de ossos. Por outro lado, o incisivo parece ser de fato intrusivo, no sentido de que seria oriundo de um dos sepultamentos presentes no entorno. Afinal, nessa região do sítio foram encontrados diversos sepultamentos, dentro os quais um que apresentava uma concentração de 78 dentes em menos de 100 cm2 (ver a descrição do Sepultamento 23). Outra possível fonte é o Sepultamento 21, já que apenas um dos quatro incisivos centrais foi recuperado. Além disso, todos os ossos adultos que foram encontrados constituindo o feixe eram ossos longos, tornando pouco provável que um único incisivo tivesse feito parte desse ritual funerário.
Os ossos que constituem o feixe foram manipulados de diversas maneiras. Os ossos longos apresentam suas epífises cortadas. Ou seja, apenas as diáfises estavam presentes, ainda que no caso da extremidade distal de ambos os úmeros, o corte tenha sido feito numa posição que ainda preservou uma porção mínima da epífise (Figura 6). Os dois úmeros apresentam um padrão biselado na superfície em que ocorreu a remoção da epífise. Nas extremidades distais, onde a espessura do osso cortical é maior, a superfície resultante é caracteristicamente biselada, resultando do processo de chanframento pelo qual o osso foi cortado. Nas extremidades proximais, onde o osso cortical é muito fino, esse aspecto chanfrado não pôde ser observado. Tampouco existem incisões na superfície proximal dos úmeros. Além dos dois úmeros e do rádio, havia um fragmento de diáfise, possivelmente de um fêmur. Esse fragmento atesta que, quando enterrados, esses ossos já não possuíam mais tecido mole. A ausência de marcas de corte na mandíbula aponta na mesma direção, sugerindo que ela foi individualizada depois da total decomposição dos tecidos moles que a uniam ao crânio.
A mandíbula também foi manipulada. Em cada processo coronoide há um pequeno orifício de formato circular com cerca de 3 milímetros de diâmetro (Figura 5). Parece pouco provável que esses orifícios tenham tido outra função que não a de passar algum tipo de cordão através deles. Existem três razões que sustentam essa interpretação. Em primeiro lugar, a posição desses orifícios é absolutamente simétrica, diminuindo as chances de que tenham sido produzidos por agentes naturais pós-deposicionais. Em segundo lugar, a borda desses orifícios é arredondada. Em terceiro lugar, o contexto arqueológico favorece essa interpretação, pois essa mandíbula estava associada a um conjunto de ossos que nitidamente foi manipulado (i.e. extração de epífises). Sugere-se que essa mandíbula funcionou como uma “fivela” que manteve juntos os ossos longos na disposição de feixe. Assim, através desses dois orifícios passava alguma espécie de cordão que fechava a parte “aberta” da mandíbula, fazendo com que os ossos longos permanecessem juntos.
Por fim, a mandíbula não tinha nenhum dente em seus alvéolos e tampouco foram encontrados dentes compatíveis nas proximidades. Ainda que seja impossível determinar se esses dentes foram intencionalmente arrancados ou se caíram durante o manuseio da mandíbula, a primeira opção parece bastante provável. Afinal, a prática de extração de dentes pós-morte é bem documentada no sítio (vide Sepultamento 17). Inclusive, entre os 78 dentes do Sepultamento 23, 38 eram decíduos[1].
Modo de enterramento
As características desse sepultamento indicam, sem dúvida, não se tratar de um enterro primário. Entretanto, o termo secundário talvez não seja o mais adequado. Talvez, o próprio termo “sepultamento” seja inadequado para caracterizar esse conjunto de ossos. O alto grau e o tipo de manipulação sugerem uma “comoditização” desses ossos que vai além daquela que caracteriza um ritual secundário. Ou seja, parece que esses ossos eram objetos ou artefatos que foram curados durante um considerável período de tempo antes de serem soterrados. Nesse sentido, esse conjunto seria melhor caracterizado como uma oferenda do que como um sepultamento propriamente dito.
Figura 2 – Lapa do Santo. Sepultamento 18. Foto da única exposição e seu respectivo croqui. As cotas associadas aos blocos são referentes aos seus topos.
Figura 3 – Lapa do Santo. Sepultamento 18. a) detalhe do fardo de ossos longos que estava encaixado na mandíbula; b) e c) detalhe da mandíbula após a retirada dos ossos longos. É possível observar o orifício presente no processo coronoide esquerdo (seta preta).
Figura 4 – Lapa do Santo. Sepultamento 18. Ossos do crânio recuperados próximo ao fardo de ossos e da mandíbula. Apesar do tom avermelhado, não é possível determinar com certeza se houve aplicação de ocre ou não.
Figura 5 – Lapa do Santo. Sepultamento 18. Mandíbula de criança de cerca de 6 anos com presença de orifícios nos processos coronoides direito e esquerdo (respectivamente foto inferior esquerda e inferior direita). Reparar também que todos os dentes decíduos estão ausentes.
Figura 6 – Lapa do Santo. Sepultamento 18. a) da esquerda para a direita: úmero esquerdo, úmero direito, rádio direito e fragmento de diáfise de osso longo (possivelmente um fêmur). Esses quatro ossos constituíam o feixe que estava “encaixado” na mandíbula; b) detalhe das extremidades distais dos úmeros que foram cortados. De cima para baixo, o úmero esquerdo em vista lateral, o úmero direito em vista anterior e o mesmo úmero direito em vista posterior.
[1] Foi verificado em laboratório e nenhum dos dentes decíduos do Sepultamento 23 é oriundo da mandíbula do Sepultamento 18.
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