Grupos de pesquisadores encontram alvo para vacina universal contra a gripe

Dois grupos de pesquisadores, um norte-americano e outro holandês, publicaram nas duas mais importantes revistas científicas Science e Nature, estudos com técnicas que podem tornar possível uma vacina contra todos os tipos de gripe, inclusive os que ainda não surgiram. Embora tenham demonstrado boa resposta imunológica em animais, a vacina ainda não foi testada em humanos.

Understanding Influenza (Flu) Infection: An Influenza Virus Binds to a Respiratory Tract Cell
Centers for Disease Control and Prevention

Os vírus influenza, que causam a gripe, sofrem muitas mutações enquanto infectam os homens e os animais. Atualmente, a cada ano é oferecida à população uma nova vacina, que protege contra os vírus influenza mais frequentes naquela temporada. Alguns dos tipos mais letais, como o H5N1, responsável pela gripe aviária, não entram nessa imunização, porque não há consenso sobre se uma pequena mutação nesses vírus pode tornar a vacina ineficaz ou até um agente que colaboraria para piorar os sintomas dos pacientes. De acordo com a Organização Mundial da Saúde, nos últimos 12 anos, 844 pessoas foram infectadas pela gripe aviária em todo o mundo. 449 delas morreram, o que corresponde a mais da metade dos casos.

A novidade
Nessas novas pesquisas, os cientistas miraram numa parte estável do vírus, que permanece igual em todos os casos de gripe, independentemente dos subtipos ou das mutações. Eles se concentraram na proteína hemaglutinina (a que nomeia o “H” do vírus, como o H1N1 ou H5N1, por exemplo). Essa proteína está na camada externa do influenza e tem como principal função ligar o vírus às nossas células do sistema respiratório. Edison Luiz Durigon, virologista do Instituto de Ciências Biomédicas da USP, compara a proteína a uma rosa: as pétalas (pontas) sofrem mudanças; já a haste apresenta estabilidade muito maior. E foi com base na haste que a nova vacina foi formulada. “Até hoje, as vacinas foram feitas para as pontas das hemaglutininas”, explica Durigon.

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The Scripps Research Institute

Ouça a entrevista completa aqui.

Outros laboratórios já tinham tentado usar essa parte estável da hemaglutinina, mas, ao retirarem a ponta, a haste se tornava inviável. Agora, os pesquisadores do Instituto Nacional de Alergia e Doenças Infecciosas (NIH) conseguiram reproduzir a haste e acoplar a nanopartículas – partículas muito pequenas que serviram como esqueleto para manter o conjunto estável. Os cientistas americanos testaram a nova vacina em camundongos e furões, e os resultados sugerem que ela protegeu totalmente os camundongos e parcialmente os furões. Já o Instituto de Vacina Crucell, da Holanda, projetou um antígeno denominado mini-HA, que conseguiu proteger totalmente os camundongos e reduziu febres quase letais em macacos.

Leia o resumo dos artigos científicos (em inglês) nestes links:
http://www.sciencemag.org/content/early/2015/08/24/science.aac7263.1.abstract
http://www.nature.com/nm/journal/vaop/ncurrent/full/nm.3927.html

Paisagem da Amazônia mostra ambiente alterado por povos antigos

Os povos que viveram na Amazônia antes da chegada dos europeus, deixaram marcas duradouras na paisagem da região. Essa é a principal conclusão de um artigo publicado neste mês pela revista científica britânica Proceedings of the Royal Society B.

É uma revisão que compila dados de mais de 20 anos de escavações arqueológicas e pesquisas sobre o solo e a vegetação. E é com esses dados que os pesquisadores estimam que viviam na Amazônia de 8 a dez milhões de pessoas viviam no ano em que Colombo chegou à América.

Ouça a entrevista de Eduardo Góes Neves, professor do Museu de Arqueologia e Etnologia da USP, um dos autores do artigo:

Acesse a matéria completa sobre o artigo, que também discute o tamanho, a localização e a organização das aldeias antigas

Conheça transformações recentes na metrópole de São Paulo

Luciana Royer, Carolina Requena, Eduardo Marques e a jornalista Ana Paula Chinelli conversaram no estúdio da Rádio USP sobre as transformações na metrópole de São Paulo

Luciana Royer, Carolina Requena, Eduardo Marques e a jornalista Ana Paula Chinelli conversaram no estúdio da Rádio USP sobre as transformações na metrópole de São PauloA Região Metropolitana de São Paulo é hoje mais diversa do que foi há 20 anos, mas continua profundamente desigual. Essa conclusão e pesquisas sobre como as desigualdades – de classe, de raça, de gênero, de educação, de infraestrutura – se reorganizaram durante esse período estão no livro “A Metrópole de São Paulo no Século XXI”, lançado neste mês pelo Centro de Estudos da Metrópole.

No programa Ciência USP, o organizador do livro, o professor Eduardo Marques, do Departamento de Ciência Política da USP, conversou com a jornalista Ana Paula Chinelli, com Luciana Royer, docente da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP; e com Carolina Requena, pesquisadora do Centro de Estudos da Metrópole. A conversa foi ao ar pela Rádio USP (FM 93,7 MHz) no dia 16 de junho de 2015.

O Núcleo de Divulgação Científica da USP preparou seis podcasts com os melhores trechos da conversa, cada um explorando um aspecto das transformações da metrópole de São Paulo nas últimas décadas. A edição é da jornalista Silvana Salles.

Na primeira parte, Eduardo Marques e Carolina Requena explicam as novas formas como as desigualdades se organizam na metrópole, afetando os espaços e a convivência das pessoas. Eles destacam as mudanças entre os mais ricos e a pouca convivência entre negros e brancos nas classes altas.

 

No segundo podcast, os pesquisadores falam de condomínios de luxo na zona Oeste – região de Barueri e Santana de Parnaíba – construídos em áreas com pouca infra-estrutura pública, mas que têm características diferenciadas, como a ausência de calçadas.

 

O terceiro trecho trata do Centro de São Paulo, que atraiu recentemente mais moradores de classes média e baixa, apesar de políticas governamentais que tenderiam à elitização dessa área.

 

No quarto podcast, o assunto é o bairro de Itaquera, que passou de bairro dormitório a uma centralidade importante na Zona Leste.

 

No quinto bloco, Marques fala sobre os limites da metodologia adotada pelo Centro de Estudos da Metrópole nos estudos que deram origem ao livro “A Metrópole de São Paulo no Século XXI” e Luciana Royer comenta as vantagens dos dados do Censo, do IBGE, para a pesquisa científica.

 

Por fim, a última parte do podcast mostra quais são as diferenças entre favelas e loteamentos clandestinos. Os loteamentos clandestinos foram a principal modalidade de moradia precária em São Paulo a partir de meados do século XX. As favelas só ganharam maior importância nos anos 1980. E, desde então, elas também vêm passando por transformações.

 

Os podcasts sobre o livro “A metrópole de São Paulo no século XXI” também estão disponíveis no Soundcloud.

Ex-presidente do CNPq defende aliança entre ciência básica e inovação

O professor Glaucius Oliva deu palestra no IFSC-USP no dia 12/06/2015. Crédito: Assessoria de Comunicação do IFSC/USP.

“Não há contradição entre ciência básica e inovação”, disse Glaucius Oliva, professor titular do Instituto de Física de São Carlos (IFSC-USP) e coordenador do Centro de Pesquisa e Inovação em Biodiversidade e Fármacos (CIBFar), em palestra ministrada nessa sexta-feira. Fazendo referência à sua experiência de cinco anos na presidência do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), Oliva expôs uma série de dados para tentar responder à pergunta: há futuro para a ciência brasileira? O vídeo da palestra na íntegra está disponível no IPTV USP.

Segundo Oliva, é comum entre políticos e empresários a ideia de que os cientistas só se interessam em publicar artigos e não se preocupam o suficiente em gerar patentes. Por outro lado, persiste na academia uma visão pouco afeita à possibilidade de transferência de conhecimento por meio da colaboração entre empresas e universidades. Os dois lados dessa crítica, defende ele, não deveriam mais ter lugar no século XXI.

O professor ponderou que o crescimento do PIB brasileiro na última década não acompanhou um aumento relativo do investimento com pesquisa e inovação. Em termos absolutos, os orçamentos de todas as agências de fomento brasileiras cresceram no período. Porém, enquanto países como a China e a Coreia do Sul aplicaram recursos cada vez maiores em ciência, tecnologia e inovação, o Brasil manteve o gasto no patamar de 1% do Produto Interno Bruto (PIB). O resultado é que, apesar de haver mais dinheiro para financiar pesquisas, o Brasil viu aprofundar-se o déficit da balança comercial nos setores de economia de média-alta e alta densidade tecnológica – farmacêutico, TICs, complexo industrial da saúde, químicos, máquinas e equipamentos; todos muito sensíveis ao desenvolvimento científico.

No caso específico das patentes, embora a quantidade de registros também tenha aumentado ao longo dos últimos dez anos, a maior parte continua sendo de cientistas e instituições não residentes no Brasil. Para os empresários, esse é um motivo de critica às universidades. Oliva, porém, chamou a atenção para o papel das próprias empresas nessa equação. Nos Estados Unidos, por exemplo, a universidade que mais deposita patentes junto ao escritório de patentes norte-americano é apenas a 52ª instituição da lista geral, que inclui empresas e outras entidades. Já no Brasil, sete universidades e institutos de pesquisa estão entre as dez instituições que mais depositam patentes. “Isso é uma grande fonte de distorção, porque o locus da inovação é a empresa. É na empresa que você vai usar a criatividade para transformar uma ideia interessante em um produto que se possa vender. A verdade é que as empresas brasileiras não estão envolvidas nesse processo”, disse Oliva.

Criar patentes não é função central da universidade, mas isso não quer dizer que o ambiente acadêmico não possa se beneficiar delas. A literatura científica sobre inovação aponta que existe uma relação forte entre criação de patentes e publicação de artigos: os pesquisadores que mais criam patentes também são os que mais publicam. Além disso, o professor lembrou três casos brasileiros nos quais o conhecimento da academia foi determinante para colocar o Brasil em outro patamar tecnológico: a parceria entre a UFRJ e a Petrobras, que possibilitou a exploração do pré-sal; o estabelecimento do ITA como gérmen da Embraer; e a criação da Embrapa, como resultado do trabalho das grandes escolas de agronomia em São Paulo, Minas Gerais e Bahia.

“A desigualdade não é imutável”

Lançado no dia 2 passado pelo Centro de Estudos da Metrópole (CEM), o livro “Trajetórias das Desigualdades – Como o Brasil mudou nos últimos cinquenta anos” mostra os avanços sociais do País nas últimas décadas.

Por Silvana Salles

O tema da desigualdade ganhou interesse renovado das ciências sociais em todo o mundo depois que o economista francês Thomas Piketty chamou a atenção para o crescimento da disparidade de renda entre ricos e pobres em curso nos países desenvolvidos. No Brasil, por muito tempo se acreditou que o País teria um “DNA problemático”, que bloquearia a redução da desigualdade. No entanto, a trajetória das últimas décadas mostra que os brasileiros têm vivenciado uma queda em alguns aspectos importantes da desigualdade, com a universalização do acesso ao ensino fundamental, do direito ao voto e a serviços de infraestrutura – como abastecimento de água e fornecimento de energia. Na realidade, os dados mostram que o Brasil de 2010 foi um país menos desigual que o de 1991. Esse diagnóstico dos pesquisadores do Centro de Estudos da Metrópole (CEM) resulta das análises do livroTrajetórias das Desigualdades – Como o Brasil mudou nos últimos cinquenta anos – lançado no dia 2 passado, em evento na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP – e contraria o esperado e estabelecido no debate sobre o tema nas ciências sociais.

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Novidade – O livro é o primeiro balanço das ciências sociais no Brasil que trata da desigualdade como um fenômeno de múltiplas dimensões, analisadas ao longo de um período de meio século – durante o qual o País passou por grandes transformações sociais e estruturais. Os 14 capítulos da obra, assinados por autores como Fernando Limongi, Alvaro Comin, Eduardo Marques, Vera Schattan Coelho e Adrian Gurza Lavalle, exploram separadamente dimensões como participação política, estratificação educacional, desenvolvimento de políticas públicas na saúde e na infraestrutura urbana, migração, relações raciais e de gênero e mercado de trabalho. O estudo se apoia em tabulações especiais das informações dos Censos Demográficos do IBGE de 1960, 1970, 1980, 1991, 2000 e 2010. Essas tabulações foram realizadas e disponibilizadas online pelo próprio CEM, que é um dos Centros de Pesquisa, Inovação e Difusão (Cepids) sediados na USP e hoje opera com o apoio de seu segundo financiamento junto à Fapesp.

“O Brasil é conhecido mundialmente por ser um dos países mais desiguais do mundo, o que era interpretado como uma característica inerente ao caso brasileiro. A novidade importante, então, é a desigualdade não ser imutável. Temos uma avaliação abrangente de escopo e de longo prazo, o que permite fazermos balanços de transformações de interesse, controladas por macroprocessos – urbanização, migração em massa, industrialização, democratização e mudanças dos patamares de renda”, explica Marta Arretche, organizadora do livro.

Redução das diferenças socioeconômicas não ocorre aos pulos nem como resultado de um mandato governamental, mas de forma incremental, afirma a professora Marta Arretche.

Diretora do Centro de Estudos da Metrópole (CEM), a professora Marta Arretche – organizadora do livro Trajetórias das Desigualdades – Como o Brasil mudou nos últimos cinquenta anos – é docente titular do Departamento de Ciência Política da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP e atual diretora da Brazilian Political Science Review. É pós-doutora pelo Massachusetts Institute of Technology, nos Estados Unidos, e foi visiting fellow do Instituto Universitário Europeu, em Florença, na Itália. Sua área de pesquisa é a análise institucional e comparada. Acompanhe, a seguir, entrevista concedida pela docente a Ana Paula Chinelli, Fabiana Mariz e Silvana Salles, sobre a publicação recém-lançada pelo CEM, em parceria com a Editora Unesp. A entrevista foi gravada por Alexandre Gennari e Djalma Moraes e está disponível no Portal da USP.

Jornal da USP – Como o Brasil mudou entre 1960 e 2010?

Marta Arrechte – O Brasil de 1960 definitivamente não é o Brasil de 2010, por qualquer indicador. Em 1960, era um país essencialmente rural, com uma grande massa de trabalhadores baixamente escolarizados, muito mal pagos e excluídos do acesso a serviços. A industrialização e as vantagens de renda, de escolaridade e de serviços se concentravam em São Paulo e em um pouco da região Sul. O mundo escolar era branco e masculino; a elite de homens brancos tinha acesso ao ensino, à universidade e, depois, aos melhores empregos. Ao examinar a desigualdade nesse período por um indicador simples como o índice de Gini, que esconde todas essas dimensões, o Brasil parecia relativamente igualitário – mas era uma igualdade na pobreza. Já em 2010, 85% dos habitantes viviam no meio urbano. Entre 1980 e 2010, a população que chegou ao ensino médio e à universidade se multiplicou por seis; as taxas de fertilidade caíram a partir de 1982 e isso teve consequências sobre o mercado de trabalho, porque aquele fenômeno da década de 1960, de existir abundância de mão de obra pouco qualificada, se alterou.

JUSP – A desigualdade aumentou nas décadas seguintes?

Marta – Com a industrialização durante o regime militar, começa a grande migração de trabalhadores do Nordeste para o Sul, principalmente São Paulo, e também para a fronteira agrícola no Centro-Oeste e na região Norte. Esse momento de crescimento econômico trouxe, sim, um grande aumento da desigualdade, com crescimento dos serviços e da indústria concentrado no Sul e no Sudeste. No livro, temos os mapas do acesso à agua, ao esgoto, à energia. Tudo está bem concentrado em São Paulo e em algumas cidades mais ricas do Centro-Sul. A desigualdade expressa a fusão de vantagens de uma parcela da população em uma determinada parcela do território. Na década de 1970, as mulheres de alta renda e mais escolarizadas já tinham o padrão de fertilidade de hoje, dois filhos por período de fertilidade, ao passo que as mulheres do Norte e Nordeste, muito pobres, tinham oito filhos por período de fertilidade. Existia, assim, desigualdade entre mulheres e também entre mulheres e homens.

JUSP – Existe diferença entre as trajetórias das mulheres e dos não-brancos?

Marta – As mulheres entraram em massa na escola e na universidade, que se tornou majoritariamente feminina. Já não existem profissões tipicamente masculinas. Os não-brancos, no entanto, não tiveram o mesmo sucesso. Ainda existe desigualdade entre mulheres e homens no mercado de trabalho, mas as desigualdades entre brancos e não-brancos são maiores. A redução da desigualdade que existiu nessa dimensão funciona por algo que chamamos nas ciências sociais de mecanismo de saturação. Quando o acesso ao ensino fundamental foi universalizado, os não-brancos foram incluídos e as desigualdades se deslocaram para outro patamar – para o ensino médio e o universitário. Como consequência, as desigualdades entre homens e mulheres no mercado de trabalho são menores do que as desigualdades entre brancos e não-brancos.

JUSP – Por que o termo desigualdades, no plural?

Marta – De modo geral, a ciência social se concentra no estudo das desigualdades de renda. Isso ocorre por razões teóricas e pragmáticas: esses são os estudos mais fáceis de fazer, porque há maior possibilidade de produzir bases de dados comparadas entre países. A renda, no entanto, não esgota as dimensões da desigualdade. Ela é a expressão de outros fenômenos. Por exemplo: a desigualdade de renda é em grande medida explicada por desigualdades educacionais – pelo que se chama o prêmio da educação. O mercado de trabalho premia quem detém níveis mais altos de escolaridade. Quando as desigualdades educacionais diminuem, afetam as desigualdades de renda. As mudanças nas desigualdades educacionais, por sua vez, são explicadas sobretudo pela expansão da escolaridade pública. Mas isso não é suficiente para explicar toda a desigualdade de renda: indivíduos de mesma escolaridade têm rendas diferentes conforme o sexo e conforme a cor. A desigualdade é um fenômeno multidimensional: o que existe são desigualdades.

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JUSP – Em que bases de dados foi feita a pesquisa?

Marta – No Brasil, temos muitos dados de acesso aberto disponíveis, produzidos publicamente, o que não é a realidade da maior parte dos países, mesmo os desenvolvidos. No Censo, o IBGE dá acesso até aos dados dos setores censitários, a unidade de coleta de dados, que inclui cerca de 400 domicílios. Qualquer cidadão pode usar a internet para baixar esses dados gratuitamente. O fato de existirem dados públicos, porém, não significa que eles sejam passíveis de tratamento estatístico tal como estão – vêm cheios de lacunas ou de repetições. É preciso corrigir essas bases de dados para que possam ser tratadas estatisticamente. Um dos trabalhos do CEM, que consideramos um serviço para a ciência social, foi disponibilizar esses dados já limpos no nosso site, em português e em inglês. Queremos deixar os dados acessíveis para que outras análises, outros balanços possam ser produzidos a partir deles. Uma das novidades do livro é termos tido acesso a bases de dados de longo prazo, dos censos de 1960, 1970, 1980, 1991, 2000 e 2010, o que permite fazer estudos de grandes transformações, controladas por macroprocessos – urbanização, migração em massa, industrialização, democratização e mudanças dos patamares de renda.

JUSP – Há outras inovações?

Marta – Sim. Em termos de metodologia, também buscamos inovar em outro aspecto: mantivemos a mesma métrica ao longo do período. Em geral, a métrica de estudos sobre transformações nas sociedades vai mudando à medida que avanços vão sendo obtidos. Por exemplo, como hoje o acesso ao ensino fundamental é praticamente universalizado, a exigência passa para o próximo patamar – o ensino médio. Ou seja, a métrica mudou. Quando você muda a métrica, a sensação é a de que nada avançou. Manter a mesma métrica ao longo do período tem consequências cruciais sobre a conclusão. Outra inovação importante é pegar cada dimensão separadamente – a trajetória das mulheres, trajetória das migrações etc. – e depois articular em uma conclusão final.

JUSP – Como a senhora situa os resultados dos estudos do livro no debate internacional das ciências sociais sobre as desigualdades?

Marta – Em primeiro lugar, são importantes as evidências de que a desigualdade se reduziu no Brasil, em múltiplas dimensões. Isso não era o esperado pela ciência social. A novidade, então, é a desigualdade não ser imutável. A segunda novidade relevante é que a mudança da desigualdade no Brasil vem se dando de forma incremental. Também foi assim a trajetória dos Estados Unidos, da Inglaterra, da Suécia: a redução da desigualdade não ocorre aos pulos nem é resultado de um mandato governamental. A trajetória da universalização do ensino fundamental no Brasil, de 1980 a 2000, é semelhante à trajetória da Grã-Bretanha, que levou 30 anos para colocar todo mundo no ensino fundamental. Isso é importante para mostrar que a trajetória segue o que é possível.

JUSP – O que o livro mostra sobre o papel das políticas de governo na redução das desigualdades?

Marta – Políticas de governo, por paradoxal e contraditório que possa parecer, podem aumentar e reduzir as desigualdades ao mesmo tempo. Diferentes políticas têm efeitos diferentes sobre a desigualdade. A previdência pública, por exemplo, aumenta a desigualdade ao beneficiar uma parcela que recebe aposentadorias mais altas do que as da previdência privada. A previdência privada reduz a desigualdade, porque ela beneficia majoritariamente aposentados que ganham de um a dois salários mínimos e atinge um maior número de pessoas. O Imposto de Renda reduz a desigualdade, porque só 15% da população brasileira paga – ou até menos do que isso, porque, por efeito até da desigualdade, 70%, 75% da população sequer declara Imposto de Renda. O pagamento de impostos indiretos, como o ICMS, aumenta a desigualdade, pois os mais pobres gastam uma proporção muito maior de sua renda consumindo bens essenciais sobre os quais recai uma parcela importante de imposto. Assim, diferentes políticas têm efeitos diferentes sobre as desigualdades. As políticas de saúde e de educação reduzem muito a desigualdade, porque os mais pobres têm acesso a serviços gratuitos de educação e de saúde e, portanto, não precisam gastar uma parcela da renda com isso. Essa pergunta, portanto, não tem resposta fácil. Costumo dizer que ciências duras mesmo são as ciências sociais, porque têm muitas dimensões a serem consideradas, se você não quiser dar uma resposta simplificadora.

JUSP – De toda forma, essas políticas são importantes?

Marta – São fundamentais. Na verdade, governos sempre têm políticas. O que temos a analisar é o efeito das políticas sobre a desigualdade. Então, quando o salário mínimo é valorizado, isso reduz a desigualdade. Se o valor do salário mínimo cair e o acesso a ele for restringido, essa mesma política aumentará as desigualdades. É preciso analisar o conteúdo das políticas, pois o governo e as políticas de Estado estão constantemente interferindo no acesso das pessoas ao bem-estar, a oportunidades.

JUSP – Na sua opinião, qual será a trajetória internacional do livro?

Marta – Imagino que haverá grande interesse daqueles que estudam o Brasil. Os estudos recentes sobre desigualdade, na linha do economista francês Thomas Piketty, estão concentrados no uso de dados das declarações do Imposto de Renda, sobre os quais há controvérsia. O livro poderá ter interesse para aqueles que estão preocupados em entender mecanismos que produzem trajetórias virtuosas da redução da desigualdade, porque fornece ampla evidência para um balanço abrangente das diversas dimensões da desigualdade e dos diversos mecanismos que estão associados à sua redução. Até agora, o conhecimento dos cientistas sociais sobre esses mecanismos se baseava em inferências muito especulativas e em informações muito precárias. Na verdade, é espantoso o que se conseguiu fazer em termos de conhecimento com a precariedade de dados disponíveis. Agora, não há precariedade de dados. Temos condições de avançar muito mais no nosso conhecimento sobre trajetórias de desigualdades.

 

A reportagem foi publicada na edição de 8 de junho do Jornal da USP. Leia no site do Jornal da USP:

parte 1

parte 2