O Rinoceronte de Eugène Ionesco e o comportamento de manada
Pedro Haram Colucci
Analisamos a peça O Rinoceronte, de Eugène Ionesco, como uma alegoria antifascista que reflete o comportamento de manada e a desumanização em contextos políticos e pandêmicos.
Da obra
Eugène Ionesco, dramaturgo franco-romeno expoente do Teatro do Absurdo, em 1959 escreveu a peça O Rinoceronte, que trata do surgimento de uma epidemia de “rinocerontite aguda” em uma pequena cidade fictícia em que os indivíduos vão pouco a pouco metamorfoseando-se em rinocerontes. Alegoria antifascista por excelência, o texto de Ionesco explora o comportamento de manada das massas, isto é, a transformação das pessoas em animais brutos, violentos e totalmente instintivos, projetando com essa representação a desumanização da comunidade, a perda das subjetividades, o empobrecimento da linguagem e o abandono generalizado da razão.
O isolado personagem Bérenger, única pessoa que ainda preserva a sua humanidade no drama, representa a resistência contra a racionalidade totalitária e contra o conformismo declarado, papel esse que reflete a história do próprio dramaturgo, que testemunhou a ascensão do movimento fascista na Romênia em 1938, observando a passiva adesão dos cidadãos aos ideais ultranacionalistas, assim como o avanço do nazismo pela Europa, principalmente no colaboracionismo francês durante a República de Vichy, em 1940.
A construção simbólica da peça nos provoca a analisar o recrudescimento do cenário jurídico-político no qual estamos inseridos, tanto no contexto atual da pandemia, quanto em tempos de razoável normalidade sanitária. Na peça, existem os negacionistas e os conspiracionistas que menosprezam a dimensão da doença, e impedem uma reação minimamente eficiente ao surto que se alastra pela cidade. Tal comportamento vemos reproduzido incansavelmente pelas autoridades públicas em parlamentos, ministérios e pronunciamentos oficiais, desde o primeiro caso confirmado de Covid-19 no Brasil.
Fora do cenário pandêmico, a racionalidade do rinoceronte sempre se mostrou presente também em discursos populistas como: flexibilização do estatuto do desarmamento acarreta mais segurança, a guerra às drogas como meio de proteger a saúde pública e os direitos do trabalhador como impedimento para o desenvolvimento econômico.
Conclusão
Chavões que carecem de sustentação empírica e que desrespeitam a inteligência alheia, que só fazem sentido dentro de uma lógica de manada, pobre em linguagem e subjetividade.
Em suma, a obra de Ionesco remete à banalidade do absurdo no cotidiano, que nos torna tão acostumados com a barbárie, que não nos chocamos mais. Na fração histórica em que nos encontramos enredados, podemos deixar de escrever “Teatro do Absurdo”, e nos referirmos somente como “Teatro”.