Maria José Tristão Parise

(São José da Bela Vista – São Paulo, 1933) (Cliquez ici pour voir la version française)

Nascida em 15 de setembro de 1933, Maria José Tristão Parise iniciou sua carreira – como muitas professoras paulistas – em escolas isoladas do interior do estado, tendo lecionado, também, em grupos escolares de São Joaquim da Barra, onde mora até hoje. Formada em 1953 pela Escola Normal Oficial dessa cidade, ela participou de vários cursos de aperfeiçoamento, concluiu a Faculdade de Pedagogia nos anos 1970 e aposentou-se da rede estadual de ensino em 1985. Após a aposentadoria, Maria José atuou como diretora de uma escola para crianças especiais, cuja manutenção contava com o apoio da prefeitura da cidade. A escolha desta professora como sujeito da presente pesquisa deve-se ao fato de, em 1960, ela ter alfabetizado uma aluna especial – Neuza Tomazini da Silva – que, em razão de um problema congênito, nasceu sem as mãos, mas desejava ir para a escola, assim como os seus oito irmãos, que não tinham nenhuma deficiência. Três professoras já haviam recusado a sua matrícula, quando Maria José resolveu aceitá-la como sua aluna na escola da Fazenda Santa Terezinha – uma sala multisseriada com 1ª, 2ª e 3ª séries –, acreditando que ela poderia pelo menos aprender a ler. Entretanto, ao perceber o grande interesse de Neuza por realizar as atividades escritas da mesma maneira que as outras crianças da classe, a docente resolveu ensiná-la a escrever com a boca e conseguiu alfabetizá-la em cerca de três meses, de modo que a menina passou a ter a mesma rotina de seus colegas de turma.

Tal iniciativa rendeu uma homenagem a Maria José por ocasião do Dia do Professor, em 1961, realizada pelo Governador do Estado (à época, Adhemar de Barros), que foi noticiada pelo jornal Folha de S. Paulo (12/10/1961, p. 8) e pela Revista do Professor (Ano XX, nº 66, jan-fev/1962, p. 9) do Centro do Professorado Paulista (CPP) – entidade representativa da categoria criada em 1930 – e foi objeto de análise no meu trabalho de doutorado (Vicentini, 2002, p. 89-90). Com base nessas informações, foi possível localizá-la e, em março de 2017, a professora Rita de Cassia Gallego e eu fomos a São Joaquim da Barra, onde tivemos dois encontros com Maria José em sua própria casa, sendo que, num deles, contamos com a presença de Neuza, que ainda mora na mesma cidade. A professora falou sobre a sua carreira e contou como agia em sala de aula, mostrando ter muito viva em sua memória a experiência com a referida aluna. Além disso, tivemos acesso a documentos, correspondências e fotografias que ela havia reunido acerca de sua atuação na rede pública de ensino que dão indícios de sua prática, bem como da relação estabelecida com os alunos e suas famílias. Dessa forma, foi possível identificar o desenvolvimento de sua carreira – em que se sobressai a realização de diversos cursos de aperfeiçoamento – e conhecer algumas das suas ações para sanar os problemas das instituições onde atuou, com vistas a favorecer o aprendizado das crianças e o envolvimento dos pais com a educação de seus filhos.

Ao descrever a alfabetização de Neuza, Maria José lembrou que criou um método próprio para ela, buscando a melhor maneira de ensiná-la considerando as suas possibilidades, pois não dispunha de referências sobre como proceder num caso tão específico, apesar de ter feito vários cursos sobre aprendizagem e psicologia infantil. A professora sugeriu, então, que a menina segurasse uma caneta tinteiro, de madeira, com a boca e procurasse a forma mais adequada de manuseio prendendo-a entre os dentes, alterando a posição da língua e atentando para os procedimentos de limpeza. Em seu dizer, foi um processo bastante difícil, pois exigiu muita dedicação das duas devido aos momentos de sofrimento enfrentados, mas se tornou alegre e prazeroso quando Neuza foi alfabetizada e pôde acompanhar a turma, participando de todas as atividades desenvolvidas em sala:

“O modo de eu ensinar era o modo que eu achava que ela precisava mais (…) Eu fiz um novo método para ensinar a Neuza (…) Ela, na classe normal, era como os outros, recitava, cantava… Então, o que ela tinha dificuldade, eu usava um método novo. Eu inventava uma coisa na hora …”

Entretanto, para Maria José, o mais importante nesse processo foi fazer com que Neuza acreditasse nela própria – o que chegou repercutiu em sua trajetória, visto que ela prosseguiu os seus estudos, obtendo uma bolsa num colégio particular, onde se formou professora. Em seu relato para nós, Neuza evidencia isso dizendo com grande orgulho que, entre os irmãos, ela tem o maior nível de escolarização e que chegou a passar no vestibular para Psicologia, mas não pôde frequentá-lo por razões financeiras. Neuza aposentou-se de um cargo administrativo na rede pública de ensino que a permitia substituir os professores sempre que necessário, valendo-se de um aluno para passar a lição na lousa enquanto ela copiava o conteúdo no caderno dele.

O contato com Maria José permitiu-nos constatar que a atitude tomada em relação a Neuza vinculava-se à maneira como ele exerceu a docência ao longo de sua carreira, durante a qual sempre tentou assegurar a todos os alunos condições de aprendizagem, procurando, diante de outros casos de dificuldades, saber se havia algum problema emocional ou de saúde (visão, audição etc.) mediante o auxílio de um médico, oferecer aulas de reforço e aconselhar os pais em situações difíceis, mantendo um diálogo franco com eles sobre a relação estabelecida com as crianças na escola. Além disso, em suas aulas, ela utilizava a música como principal estratégia de ensino, fazendo com que alunos pouco familiarizados com os procedimentos escolares aprendessem a segurar o lápis e se habituassem ao universo letrado, cujo contato era comemorado com uma festa de entrega do primeiro livro, com ampla participação dos pais. Para Maria José, o canto era uma forma de tornar o ensino mais alegre e estimulante para que todos os alunos pudessem aprender e serem promovidos para a próxima série:

“Já no primeiro dia de aula, (…) eu dizia ‘vocês todos vão passar de ano’ e começava tudo com canto, estímulo, era coisa que eu achei certo fazer (…) e dava a aula do meu jeito. (…) Eu ensinava cantando (…) Procurava cantar tudo para ficar mais criativo, mais alegre e tinha muita felicidade de ver os meus alunos aprenderem da maneira como eu ensinava.”

Trata-se, portanto, de uma profissional, cuja preocupação em favorecer a aprendizagem de todos os alunos levou-a a criar métodos específicos procurando adequar a sua prática às peculiaridades e às potencialidades de cada criança. Ao falar sobre o seu trabalho, Maria José deixa claro que, ao longo de sua carreira, desenvolveu ações inovadoras e procurou promover mudanças na forma como a escola estava organizada até então, evitando não só a repetência e evasão, mas também incorporando ao ensino regular alunos com algum tipo de deficiência, cujo acesso geralmente era negado no período em que ela lecionou. Nesse sentido, convém salientar o caráter pioneiro dessa atitude, pois, segundo os estudos sobre a história da educação especial no Brasil (Mazzota, 1995; Mendes, 2016, 2010), a escolarização desses sujeitos cabia a instituições voltadas para deficiências específicas (como por exemplo, as destinadas ao ensino de surdos, cegos e excepcionais), existentes desde o final do século XIX, ou a classes especiais que tiveram um crescimento, entre nós, a partir dos anos 1970. Somente em 1994 a defesa de escolas com uma orientação inclusiva ganhou expressão na Declaração de Salamanca, documento das Nações Unidas em que se propunha o ensino de pessoas deficientes como “parte integrante do sistema educacional” regular, levando-se em conta as habilidades e as necessidades de cada um, de modo a assegurar a educação de todos e combater a discriminação.

 

A produção existente em história da educação sobre a educadora

Como a maioria das professoras primárias, Maria José Tristão Parise teve o anonimato como marca de seu trabalho, com exceção da referida homenagem e foi justamente esse fato que deu a ela visibilidade nos estudos sobre a história da profissão docente no Brasil. As matérias divulgadas a esse respeito foram objeto da análise realizada por mim sobre as imagens públicas do magistério brasileiro entre 1933 e 1963, integrando o corpus de produções destinadas a celebrar professores tidos como exemplares em que se enaltecia a dedicação ao ofício mesmo diante de condições adversas (vicentini, 2002). Naquele momento, foi possível notar que a alusão a esse tipo de atitude era bastante recorrente no discurso produzido a respeito da docência, no qual funcionava como uma estratégia de valorização simbólica da profissão, fazendo-se presente inclusive em textos autobiográficos nos quais os próprios professores recordavam-se das dificuldades enfrentadas em escolas rurais, no início da carreira, numa tentativa de obter reconhecimento social para o árduo trabalho realizado (Catani, Vicentini, 2004; Vicentini, Rodrigues, 2004). Retornar, quinze anos depois, a esse material e considerar o fato divulgado pela imprensa como indício de uma inovação no exercício do magistério levou-me a buscar maiores informações sobre a professora, de modo a compreender a iniciativa de alfabetizar uma aluna deficiente física numa perspectiva que extrapolasse a análise do discurso produzido para exaltar o seu caráter exemplar. Assim, as narrativas de Dona Maria José e de sua aluna, Neuza, sobre as suas trajetórias permitiram-me constatar que tal iniciativa vinculava-se à sua preocupação em assegurar a aprendizagem de todos os alunos, fazendo-a mobilizar os recursos de que dispunha para construir uma prática que atendesse as especificidades das crianças presentes em suas turmas e que se mostrou extremamente criativa e versátil do ponto de vista pedagógico, reiterando o caráter inovador de sua atuação como professora primária.

 

Palavras-chave: educação especial, professora primária, classes multisseriadas, ensino rural

 

Bibliografia:

Catani, D. B. & Vicentini, p. p. Lugares sociais e inserção profissional: o magistério como modo de vida nas autobiografias de professores. ABRAHÃO, M. H. M. (org.) A aventura (auto)biográfica – teoria e empiria. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2004, p. 267-291.

Mazzota, M. J. S. Educação Especial no Brasil: história e políticas públicas. São Paulo: Cortez, 1995.

Mendes, E. G. A radicalização do debate sobre inclusão escolar no Brasil. Revista Brasileira de Educação. Rio de Janeiro: ANPED, set-dez/2010, vol.11, nº 33, p. 387-405.

Mendes, E. G. Breve histórico da educação especial no Brasil. Revista Educación y Pedagogia, Medelin, maio-ago/2010, vol. 22, nº 57.

Vicentini, p. p. Imagens e Representações de Professores na História da Profissão Docente no Brasil (1933-1993). São Paulo: FEUSP, 2002.

Vicentini, p. p. & Rodrigues, C. M. Memórias de sala de aula: uma análise de autobiografias de professores. Cadernos Prestige, Lisboa: EDUCA, 2004, 45 p.

Autoria Paula Perin Vicentini