Por Camila Pereira Lisboa

Tratar de temas que envolvem o “psicossocial” não é simples. Qualquer busca de definição desse termo depara-se com uma variedade de outras palavras que o acompanham (“atendimento”, “atenção”, “acompanhamento” e tantas outras que buscam delimitá-lo). Além disso, referências que citam o “psicossocial” não costumam problematizar essa palavra, pressupondo a existência de um sentido subentendido ao utilizá-la – isso inclui normativas e referências técnicas que buscam referenciar o trabalho no Sistema Único de Assistência Social (SUAS).  Entretanto, investigando o uso do “psicossocial” por parte de trabalhadore(a)s do SUAS (aquele/as que materializam em seus trabalhos tais normativas e referências), logo se percebe a complexidade de  que envolve o uso dessa palavra, que varia desde relatos de pessoas que não a reconhecem como algo que caracteriza o trabalho no SUAS, até aquelas que atribuem os mais diferentes sentidos para o que seria uma atuação “psicossocial”.

Algumas referências abordam o assunto, citarei apenas três delas.  No artigo “Práticas psicossociais em Psicologia: um convite para o trabalho em rede”, de 2014, Thaís Oliveira e Regina Caldana relatam o resultado do estudo que desenvolveram, investigando o significado do atendimento psicossocial ofertado por psicólogo(a)s num CREAS na cidade de Goiânia. Em 2023, Mariana Cordeiro, Maria Lara e Rodrigo Maia publicam o artigo “Atendimento Psicossocial nos Serviços de Proteção Social Especial do SUAS”, também originado de um trabalho de pesquisa.  Nele, foram entrevistado(a)s diferentes profissionais – tanto lotado(a)s em equipes técnicas, quanto na gestão de serviços de proteção social especial do município de São Paulo – analisando como ele(a)s compreendiam a noção de “atendimento psicossocial”. Tendo trabalhado no SUAS por mais de uma década e também me inquietando com a diversidade de compreensões sobre o “psicossocial” no cotidiano do trabalho na política, eu mesma decidi me dedicar à investigação de seus sentidos, desenvolvendo uma pesquisa que originou a teseAtendimento psicossocial: um estudo com psicólogo(a)s que trabalham em CREAS”, publicada em 2024. No estudo, também busquei entender qual a compreensão sobre “atendimento psicossocial” – nesse caso, a partir de relatos de psicólogo(a)s que trabalham em Centros de Referência Especializados de Assistência Social (CREAS).

Esses três estudos têm em comum seu foco de interesse, que recai sobre a proteção social especial, nível de proteção social do SUAS dedicado ao atendimento de casos que envolvem risco social em decorrência de violação de direitos. Embora o “psicossocial” também esteja presente em publicações e diferentes serviços da proteção social básica (PSB), há peculiaridades na PSE que colocam em xeque o uso dessa palavra.

Uma delas é o destaque que algumas normativas do SUAS dão ao “atendimento psicossocial” como trabalho essencial da PSE. É o que sugere, por exemplo, a Resolução do Conselho Nacional de Assistência Social (CNAS) n. 269 e a Tipificação Nacional de Serviços Socioassistenciais. Outro fator relevante na PSE é a particularidade dos casos trabalhados. Em se tratando de situações que envolvem violação de direitos (muitas caracterizando, inclusive, o rompimento de vínculos familiares e/ou comunitários), é comum que pessoas aí atendidas precisem de um acompanhamento psicoterapêutico. Porém, o escopo de atividades a serem desenvolvidas no SUAS não abrange atendimentos clínicos (a serem ofertados pelo Sistema Único de Saúde, o SUS). Ao invés disso, o tipo de atendimento ofertado no SUAS deve ser o “psicossocial” – uma atribuição, segundo Resolução n. 269 supracitada, de psicólogo(a)s e assistentes sociais. Mas o que seria esse atendimento? Quais atividades o caracterizam?

Voltemos às três pesquisas mencionadas, elas nos dão algumas pistas sobre os sentidos mais comuns sobre o “psicossocial”, presentes entre trabalhadore(a)s do SUAS. Alguns resultados são comuns aos três estudos:  a caracterização do “psicossocial” como algo que se constrói na insterdisciplinaridade (com destaque ao trabalho conjunto entre psicólogo/as e assistentes sociais) e como aquilo que se diferencia do atendimento clínico.

A respeito da interdisciplinaridade, o histórico da discussão envolvendo “psicossocial” carrega, em si, uma tradição que atravessa diferentes profissões e áreas do conhecimento. Destaca-se a discussão no campo da Reforma Psiquiátrica e da Luta Antimanicomial em torno do modelo de “atenção psicossocial”, especialmente a partir da década de 70, proposto em contraposição aos tratamentos asilares e de tutela prevalentes no período. Para compreender melhor essa história, recomendo a leitura do livro de Paulo Amarante, “Saúde Mental e atenção psicossocial”, que resgata elementos presentes em tal discussão e o que seria característico do modo de atenção psicossocial proposto para as práticas no campo da saúde. Além disso, o artigo As Conferências Nacionais de Saúde Mental e as premissas do modo psicossocial”, de Abílio da Costa-Rosa, Cristina Luzio e Silvio Yasui realiza uma interessante análise de como o “modo psicossocial” está presente nos debates das duas primeiras Conferências em Saúde Mental no Brasil, realizadas nos anos de 1987 e 1992.

No SUAS, o trabalho “psicossocial” o trabalho a ser desenvolvido tanto com indivíduos quanto com famílias (MDS, 2014/2009). A interdisciplinaridade é uma das premissas para o trabalho na política de Assistência, na qual não existem atividades privativas a nenhuma categoria profissional. Nisso, concepções e práticas que compõem o “psicossocial” são tecidas por essa diversidade de olhares formativos, em que profissionais de diferentes campos podem atender o mesmo caso simultaneamente, trocar impressões, fazer visitas domiciliares de forma conjunta, além de planejar intervenções, realizar discussões de casos e outras práticas em parceria. Se por um lado, a construção do “psicossocial” é marcada por essas diversas áreas do saber, por outro existem também tensionamentos em volta dessa palavra, algo notadamente presente no histórico da profissão do(a) assistente social.

No Serviço Social, vale citar a discussão em torno do “psicossocial” no decorrer do Movimento de Reconceituação da profissão. Boas análises sobre o assunto podem ser encontradas nos artigos “80 anos do Serviço Social no Brasil” (de Edistia de Oliveira e Helena Chaves) e “Ditadura e serviço social no Brasil: contribuições para prosseguir rompendo com o conservadorismo na profissão” (de Raiane Assumpção e Juliana Carrapeiro). Dentre outros debates presentes no Movimento de Reconceituação, esses artigos abordam as críticas endereçadas por grupos reformistas à lógica assistencialista que caracterizava a “ajuda psicossocial”, presente em atuações conservadoras da profissão.

Já para a Psicologia, urge enquanto campo de debate a diferenciação entre o “atendimento psicossocial” e o “atendimento clínico”. Eis um desafio para uma profissão que, ao longo de sua história em terreno brasileiro, possui uma formação e uma atuação de forte teor clínico (CFP, 2022; Silva, 2018). Oportunidades de empregabilidade no campo das políticas públicas – e notadamente na política de Assistência Social – têm provocado a Psicologia a ampliar suas teorias, técnicas, ferramentas e intervenções a outras possibilidades de trabalho para além do âmbito clínico. A proposta de um atendimento, ou de intervenções, de cunho “psicossocial” emergem nesse sentido.

Retomando as três pesquisas citadas no início desse texto, algumas características do atendimento psicossocial são mencionadas pelo(a)s profissionais entrevistado(a)s: um atendimento que se volta tanto a indivíduos quanto a famílias, que pode ocorrer via intervenção de diferentes profissionais simultaneamente (em especial, psicólogo/as e assistentes sociais) e que considere a complexidade do caso atendido (numa perspectiva não individualizante, mas também voltada à análise do território, do ambiente social, comunitário e/ou familiar no qual aquele indivíduo ou família se insere). Outra característica desse atendimento psicossocial é seu caráter interventivo – algo que envolve encaminhamentos e orientações ofertadas pelo(a)s técnico(a)s, seja nos próprios serviços do SUAS (a exemplo do CREAS), mas também nas ruas, na casa das pessoas e/ou famílias atendidas ou em qualquer outro local em que essa atuação se faça necessária. É relevante notar, mais uma vez, que esses estudos (Caldana, 2014; Cordeiro, Lara & Maia, 2023; Lisboa, 2024) foram desenvolvidos na PSE, em que a intervenção emerge enquanto instrumento recomendado diante dos casos de risco social aí atendidos. É o que defende a Política Nacional de Assistência Social (PNAS):

As situações de risco demandarão intervenções em problemas específicos e, ou, abrangentes. Nesse sentido, é preciso desencadear estratégias de atenção sociofamiliar que visem a reestruturação do grupo familiar e a elaboração de novas referências morais e afetivas, no sentido de fortalecê-lo para o exercício de suas funções de proteção básica ao lado de sua auto-organização e conquista de autonomia. (MDS, 2005, p. 37).

Nesse mesmo trecho da PNAS, percebemos que não apenas as intervenções são necessárias em se tratando do trabalho executado na PSE, mas também o incentivo ao desenvolvimento da “auto-organização e conquista da autonomia”. Todavia, nem sempre é claro é limite entre a intervenção e a autonomia. A tese de Luis Saraiva, intitulada “A familiarização da assistência social: promoção de direitos e gestão da vida no encontro entre vulnerabilidades, (des)proteção e periculosidade” apresenta uma grande contribuição a esse debate. Nela, o autor discute como intervenções junto a famílias, na Assistência Social, podem tanto promover direitos quanto recair numa perspectiva de gestão da vida – herdeira de práticas higienistas de controle social e alheia a uma análise contextual mais ampla que verse sobre situações que produzem violações de direitos.

Como é possível perceber, o debate envolvendo o “psicossocial” é complexo, polissêmico, assume contornos políticos, históricos e se recria continuamente a partir da atuação concreta de profissionais que refutam ou constroem significados referentes a essa palavra – em seus discursos e práticas cotidianas. Várias seriam as possibilidades de abordar o tema. Gostaria de deixar uma última indicação para pensarmos sobre o assunto – o texto “O fenômeno psicossocial e o problema de sua proposição”, de José Gonçalves Filho. Nele, o autor realiza uma abordagem etimológica do que denomina de “fenômeno psicossocial”, algo que aponta para a junção entre os termos “psico” e “social”. Através dessas duas esferas (uma que privilegia o indivíduo e a outra que se volta para o contexto mais amplo), o autor realiza um trabalho analítico quase comparável a um fotógrafo que ajusta o zoom da sua câmera – ora enfocando o sujeito como centro da cena, ora ampliando a cena para captar outros elementos ali presentes. Como resultado desse trabalho, sujeito e cena traçam uma relação simbiótica, na qual seria difícil compreender a narrativa que eles compõem caso um ou outro elemento seja eliminado. Sobre a indivisibilidade dessas duas esferas, argumenta o autor:

Por que o adjetivo social para fenômenos psicológicos? Por que falamos em fenômenos psicossociais? Haverá fenômeno cuja inteligibilidade não exija esposar suas determinações sociais? E haverá fenômeno que deva ser interpretado sem que a interpretação considere o lugar social do intérprete? Todo fenômeno, exigindo atenção sobre suas determinações e sobre o ponto de vista de seus intérpretes, não exigirá atenção social? (Gonçalves Filho, 2017, p. 31)

Com isso, deixo o convite para pensarmos na política de Assistência Social como algo que transcende as normas ou prescrições legais que a delimitam. Perguntar sobre o que é o “psicossocial” no SUAS constitui em exercício de reflexão sobre aquilo o que é produzido necessariamente numa relação – seja entre indivíduo, família, territórios, comunidades ou outros alvos das intervenções no SUAS, e também entre eles e o(a)s trabalhadore(a)s que reconstroem os contornos da política de Assistência através de suas práticas.

Sobre Camila Pereira Lisboa

Psicóloga, Especialista em Gestão Pública, Mestre e Doutora em Psicologia Social. Professora da Universidade Estadual de Feira de Santana. Foi trabalhadora do SUAS (Inclusão Produtiva, Pronatec, Acessuas Trabalho e Vigilância Socioassistencial).

REFERÊNCIAS

Amarante, P. (2007). Saúde mental e atenção psicossocial (4a. ed.). Rio de Janeiro: Fiocruz.

Assumpção, R. P. S., & Carrapeiro, J. M. (2014). Ditadura e serviço social no Brasil: contribuições para prosseguir rompendo com o conservadorismo na profissão. Lutas Sociais, 18(32), 105-118. Recuperado de https://www4.pucsp.br/neils/revista/vol.32/raiane_e_juliana.pdf

Costa-Rosa, A., Luzio, C. A., & Yasui, S. (2001). As Conferências Nacionais de Saúde Mental e as premissas do modo psicossocial. Saúde em Debate, 25(58), 12-25. Recuperado de https://pesquisa.bvsalud.org/portal/resource/pt/lil-333756

Conselho Federal de Psicologia (CFP). (2022). Quem faz a Psicologia brasileira? Um olhar sobre o presente para construir o futuro (Vol. 1). Brasília: CFP. Recuperado de https://site.cfp.org.br/wp-content/uploads/2022/12/Censo_psicologia_Vol1_WEB.pdf 

Cordeiro, M. P., Lara, M. F. A., & Maia, R. L. A. (2023). Atendimento Psicossocial nos Serviços de Proteção Social Especial do SUAS. Psicologia: Ciência e Profissão, 43, 1-15. doi: https://doi.org/10.1590/1982-3703003250301 

Gonçalves Filho, J. M. (2017). O fenômeno psicossocial e o problema de sua proposição. In Silva Junior & W. Zangari (Orgs.), A Psicologia Social e a questão do hífen (pp. 31-40). São Paulo: Blucher. Recuperado de https://sites.usp.br/ppg-pst/wp-content/uploads/sites/218/2017/03/psicologiasocialquestaohifen.pdf

Oliveira, E. M. A. P., & Chaves, H. L. A. (2017). 80 anos do Serviço Social no Brasil: marcos históricos balizados nos códigos de ética da profissão. Serviço Social & Sociedade, 128, 143-163. doi: http://dx.doi.org/10.1590/0101-6628.098

Oliveira, T. T. S. S., & Caldana, R. H. L. (2014). Práticas psicossociais em Psicologia: um convite para o trabalho em rede. Pesquisas e Práticas Psicossociais, 9(2), 184-192. Recuperado de http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1809-89082014000200004

Resolução do Conselho Nacional de Assistência Social (CNAS) n. 269. (2006, 13 de dezembro). Aprova a Norma Operacional Básica da Assistência Social – NOB SUAS. Recuperado de https://www.blogcnas.com/normativas-suas

Saraiva, L. F. de O. (2016). A familiarização da assistência social: promoção de direitos e gestão da vida no encontro entre vulnerabilidades, (des)proteção e periculosidade (Tese de doutorado). Universidade de São Paulo, São Paulo. Recuperado de https://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/47/47134/tde-16082016-102659/pt-br.php 

Silva, R. (2018). Psicologia e políticas públicas de enfrentamento da pobreza: desafios para a formação e atuação de psicólogos (as) (Tese de doutorado). Universidade de São Paulo, São Paulo. Recuperado de https://teses.usp.br/teses/disponiveis/47/47131/tde-06072018-105916/pt-br.php

Lisboa, C. P. (2024). Atendimento psicossocial: um estudo com psicólogo(a)s que trabalham em CREAS (Tese de doutorado). Universidade de São Paulo, São Paulo.  Recuperado de https://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/47/47134/tde-13062024-090650/pt-br.php

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