Por Andrielly Darcanchy

Independente de seus interesses pessoais, você sabe que existem crianças e adolescentes que não podem ser criados pelos seus familiares ou demais pessoas próximas, pelos mais diversos motivos. Também faz parte do imaginário social que existem instituições onde muitas delas são cuidadas – as quais já foram chamadas de “orfanatos”, “abrigos” e hoje, Serviços de Acolhimento Institucional de Crianças e Adolescentes (SAICA). No entanto, há outra possibilidade de cuidados alternativos menos conhecida, mas que compõem o cardápio de opções das políticas públicas brasileiras há muitos anos: o Serviço de Acolhimento em Famílias Acolhedoras (SFA)!

Resumindo, é algo muito simples: em vez de a criança ir para uma instituição (onde a lei determina apenas 01 educador para cada 10 crianças), ela vai pra casa de uma família. Essa família deve ser selecionada, capacitada e acompanhada por uma equipe técnica (composta por psicóloga/o e assistente social) e receber auxílio financeiro para esses cuidados. Ou seja, a diretriz do Serviço preconiza que essas famílias não tenham a intenção de adotar, apenas cuidem daquela criança, adolescente ou grupo de irmãos em todos os aspectos de suas vidas, até que se encerre a medida protetiva – seja com o desacolhimento para uma família definitiva (de origem/extensa ou substituta por adoção), seja completando a maioridade.

O primeiro registro da prática de acolhimento familiar no ocidente tem mais de um século. No Brasil, faz parte da cultura o compartilhamento de cuidado das crianças entre famílias cujas histórias de alguma forma se cruzavam – não é necessário muito esforço para lembrarmos de algum parente ou conhecido que migrou de outra cidade, a fim de ser criado por uma família com melhores condições econômicas que seus pais. O que a ciência chamou de “circulação de crianças”, muitas vezes resultava nos famosos “filhos de criação” ou em trabalhadores não remunerados que “eram como se fosse da família”, por exemplo. Ao mesmo tempo, desde a década de 1940, já havia também a prática formal da Colocação Familiar, aplicada àqueles casos em que não cabia uma adoção. Foi nessa época que o Judiciário passou a intermediar as transferências de cuidados, através de acordos e guardas provisórias, sem necessariamente envolver contato entre as famílias de origem das crianças e aquelas que as assumiam.

Ao longo dessa história, também foram desenvolvidas muitas pesquisas que observaram graves prejuízos ao desenvolvimento de crianças e adolescentes que passavam longos períodos em instituições. Já foram observados atrasos no desenvolvimento psicomotor e prejuízos na socialização que podem acompanhar aquela criança pela vida, concluindo-se que os acolhidos em instituições “têm menos satisfação com a vida” (Delgado & Carvalho, 2023, p.271). Por isso, o mundo vem caminhando no sentido da construção de outras alternativas. Hoje, muitos países estão conseguindo superar a institucionalização de crianças e adolescentes, sendo que a opção familiar é a maioria, por exemplo, na Austrália (91%), Reino Unido (80%), Estados Unidos (75%) e Espanha (60%).

No Brasil, o acolhimento de crianças por famílias acolhedoras já estava previsto na Política Nacional de Assistência Social, em 2004. Em 2006, o Plano Nacional de Promoção, Proteção e Defesa do Direito de Crianças e Adolescentes à Convivência Familiar e Comunitária (PNCFC) incluiu na discussão nacional a necessidade de priorização dessa temática, reivindicando a criação de políticas públicas para favorecê-la. Então, em 2009, essa modalidade já fez parte das Orientações Técnicas: Serviços de Acolhimento de Crianças e Adolescentes e da Tipificação Nacional de Serviços Socioassistenciais. No mesmo ano também passou a compor o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), definindo que a “inclusão da criança ou adolescente em programas de acolhimento familiar terá preferência a seu acolhimento institucional” (Lei n. 8.069, 1990, Art. 34, §1o, grifos nossos).

Mesmo assim, em 2023 no Brasil, apenas 6% dos acolhimentos são realizados por famílias acolhedoras, prevalecendo o modelo institucional. Entende-se que a modalidade familiar segue sendo residual porque é necessária uma mudança de paradigma na compreensão da área – o que vem sendo encampado pelo Movimento Nacional Pró Convivência Familiar e Comunitária. Assim, já existem metodologia e muitos anos de práticas e pesquisas nacionais também, sendo que essa bibliografia comentada pretende contribuir com a divulgação dessa medida protetiva, uma vez que o SFA só existe reunindo Estado e sociedade. Grande parte dos materiais está disponível gratuitamente, então, boa leitura!

 

CABRAL, Claudia (org). Acolhimento Familiar: experiências e perspectivas. UNICEF e ABTH, 2004.

O livro reúne contribuições de diversos especialistas participantes do 1º Colóquio Internacional sobre Acolhimento Familiar, realizado no Rio de Janeiro, no mesmo ano da publicação. Esse evento é um dos primeiros marcos da construção dessa política no Brasil, deixando um legado que segue atual.

A obra foi publicada no momento em que ganhava força a discussão sobre o direito à convivência familiar e comunitária, passo fundamental à superação da lógica menorista. Pretendia dar visibilidade às incipientes experiências nacionais e apresentar as práticas de outros países, a fim de fomentar a construção de uma alternativa eficiente à institucionalização. Assim, contribuiu para o embasamento da área, compondo reflexões até hoje.

 

VALENTE, Jane. Família Acolhedora: as relações de cuidado e de proteção no serviço de acolhimento. Paulus, 2013. Disponível em: https://sapeca.campinas.sp.gov.br/publicacoes/fam-lia-acolhedora-rela-es-de-cuidado-e-de-prote-o-no-servi-o-de-acolhimento

Jane Valente é a autora mais conhecida sobre a temática. Atuou por muitos anos no SAPECA de Campinas/SP, um dos Serviços precursores do país, e segue sendo a referência presente em todos os eventos nacionais e internacionais, discorrendo sobre a realidade do acolhimento familiar brasileiro. Sempre preocupada com o alinhamento de uma metodologia a esse trabalho tão singular, ela tem desempenhado papel importantíssimo na consolidação do campo, contribuindo para responder às dúvidas daqueles que desconfiam da idoneidade dessa política pública.

Quando o acolhimento familiar era ainda mais desconhecido, conseguiu distribuir gratuitamente 10 mil cópias desse livro, promovendo a disseminação de conhecimento de qualidade. Na obra, derivada de seu doutorado, a autora destrincha os embasamentos legais e técnicos do SFA e ainda dá voz às diversas pessoas envolvidas nessa trama de proteção: os profissionais, as crianças acolhidas, suas famílias de origem e todos os membros das famílias que acolhem, adultos e seus filhos. Assim, demonstra o funcionamento dessa forma de cuidado, de maneira muito sensível e contundente, aprofundando a discussão por diferentes ângulos e perspectivas.

 

Instituto Fazendo História. FAMÍLIAS ACOLHEDORAS: Acolhendo a Primeira Infância. 2019. Disponível em: https://www.fazendohistoria.org.br/publicacoes

O Instituto Fazendo História tem diversas frentes no apoio a crianças e jovens que viveram experiências de acolhimento, sempre propondo condições para que se tornem capazes de construir vidas potentes. No site há muitas publicações, abertas ao público, sobre diversos temas relacionados a essa medida protetiva, em suas diferentes modalidades.

Nesse livro, são propostas reflexões sobre diferentes etapas do trabalho cotidiano, desde a implementação do Serviço até o acompanhamento técnico que deve ser realizado com acolhidos, suas famílias e acolhedores. Ainda é possível conhecer uma metodologia que visa ampliar o repertório de linguagem de crianças e adolescentes, a fim de que possam compreender todas as informações que compõem suas histórias de vida e a complexidade dos sentimentos que as acompanham.

 

Marcondes, Adriana; DARCANCHY, Andrielly. Acolhimento de crianças e adolescentes em famílias acolhedoras: a experiência do município de Osasco. Universidade de São Paulo, 2021. Disponível em https://www.livrosabertos.sibi.usp.br/portaldelivrosUSP/catalog/book/749

Essa cartilha nasceu de uma forte articulação entre a acadêmica e a práxis. Após mais de três anos de supervisão do Instituto de Psicologia da USP, a equipe técnica do SFA buscou inspirar outros locais registrando modos de fazer que ainda não estavam descritos na literatura científica. Sua construção envolveu diversas reuniões entre os profissionais do SFA, a gestão municipal, as famílias acolhedoras, a equipe técnica da VIJ e a professora universitária, para pactuar os processos mais cuidadosos em cada situação.

Dessa forma, o material contribui para o pensamento sobre dúvidas muito presentes em quem atua na ponta. É fortalecida a ideia de que é possível acolher também adolescentes em famílias, sendo propostos fatores para avaliar quais perfis que mais combinam a cada encontro. Assim como também são indicados passos interessantes para mediar a adoção de acolhidos nessa modalidade, e o papel dos diversos atores no desacolhimento por maioridade, proporcionando um desligamento do SFA bem assistido.

 

IUCKSCH, Marlene; BOUVILLE, Jean-Marc (cord). O desafio do acolhimento familiar: propor um lugar para criar um futuro. Revista Vesta: n.5. Juruá, 2023.

Essa edição da Revista Vesta contribui para o avanço da discussão teórica sobre alguns pontos muito importantes. Pesquisadora do IPEA apresenta uma rica análise sobre a trajetória dos SFA no Brasil, enquanto outra colega discorre sobre os caminhos da profissionalização de famílias acolhedoras na França, algo que vem sendo discutido no Brasil atual. Também aparecem os desafios de um reordenamento e de atingir a maioridade em Serviços de Acolhimento. E assim, os outros capítulos vão ajudando a responder às maiores dúvidas sobre essa modalidade: por que uma família se dispõe a fazer esse trabalho voluntário? E a criança não vai sofrer ao se vincular de maneira temporária?

 

VALENTE, Jane, CASSARINO-PEREZ, Luciana & PINHEIRO, Adriana (org). Família Acolhedora: teoria, pesquisa e prática. Juruá, 2023.

Como o título já propõe, essa é a obra mais completa e atualizada sobre a temática. Ao todo, 49 autoras participam dela e chamam o leitor para completar 50 pessoas nessa ciranda, todas motivadas a transformar o atravessamento com histórias de crianças e adolescentes acolhidos em pauta prioritária. É nesse clima de afetações mútuas que o livro se divide em três partes, totalizando 19 capítulos, torna-se impossível passar por tudo sem fazer inúmeros destaques para releituras.

Na primeira parte, da teoria, são expostos detalhes legais, históricos e políticos (no sentido daquilo que diz respeito à construção de um equipamento imbricado com diversas dimensões sociais). Discute-se o avanço da promoção do direito à convivência familiar e comunitária e é apresentada a avaliação do Plano Nacional sobre o mesmo tema – o PNCFC, de 2006. Essa seção ainda reflete sobre a necessária participação do Judiciário e do Ministério Público para que ocorra uma efetiva expansão da modalidade, pois ainda é muito comum municípios relatarem oposição dessa parte da rede à proposta do acolhimento familiar.

A segunda parte do livro apresenta pesquisas embasadas em experiências no Brasil e na Europa, para discutir as singularidades e benefícios da prática. Assim, demonstram como o acolhimento familiar permite um melhor desenvolvimento emocional, em todas as idades, além de proporcionar vinculações individualizadas, que favorecem a reintegração familiar e a inscrição dos sujeitos no laço social. Alguns capítulos apontam ainda como essa forma de acolher pode exercer até mesmo um efeito reparador da saúde mental, proporcionando uma experiência de cuidado que auxilia o acolhido a se recuperar das violações motivadoras da medida protetiva. Ainda vale destacar um profundo estudo sobre os principais entraves enfrentados na implementação e execução desses Serviços Brasil afora, assunto fundamental à realidade presente.

Por fim, a última divisão traz experiências muito inspiradoras de sete SFA. Discutindo temas diversos e fundamentais, explora a metodologia de casos específicos que têm sido bem sucedidos. Há o pioneirismo de Campinas, a proposta inovadora de longa duração em Belo Horizonte, o sucesso de Cascavel no acolhimento de jovens, os arranjos regionais, a experiência com famílias remuneradas, o trabalho com histórias de vida e com adolescentes no PPCAM – Programa de Proteção a Crianças e Adolescentes Ameaçados de Morte. Assim, o livro encerra reacendendo a esperança para criarmos um futuro tão acolhedor quanto imaginamos!

Sobre Andrielly Darcanchy

Mestre em Psicologia Social (IP-USP). Psicóloga e Bacharel em Psicologia (IP-USP). Atua como psicóloga no SUAS desde 2015. Integra o GT FA do Movimento Nacional Pró Convivência Familiar e Comunitária. Na Prefeitura Municipal de Osasco, colaborou com a implementação do Serviço de Acolhimento em Família Acolhedora – Canguru, em 2019, o qual coordenou até 2022. Atualmente é técnica do CREAS/PAEFI segmento Criança e Adolescente, na Prefeitura Municipal de Barueri.

Como citar essa Bibliografia Comentada

DARCANCHY, Andrielly. Seis leituras para entender que história é essa de Famílias Acolhedoras (Bibliografia Comentada). In Portal Psicologia na Assistência Social. Recuperado de https://sites.usp.br/psicologianaassistenciasocial/seis-leituras-para-entender-que-historia-e-essa-de-familias-acolhedoras/

 

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