O tom da sua pele não é tão compatível com esta ou aquela categoria étnico-racial. Seu tipo de cabelo é diferente e não daria para encaixar nesta ou naquela categoria étnico-racial. Você deveria se sentir moralmente envergonhado por tirar proveito de um benefício endereçado a pessoas que verdadeiramente se encaixam em algum estereótipo. Você não sofre, está deliberadamente mentindo, inventando ou fantasiando e, mesmo que sem intenção, comunicando uma falsa ideia de si. Não existe algoz, é você que precisa de uma correção!
Julgamentos a partir de preconcepções externas que não se abrem para o diálogo com as pessoas tendem a produzir violência e revitimização. Daí a importância de acolhimento e escuta das histórias singulares, respeitando o(a) interlocutor(a) como uma pessoa digna que, a princípio, busca honestamente comunicar a sua experiência, por mais que ela demande rupturas com suposições prévias que alguém possa ter sobre cada caso.
O respeito à experiência de cada pessoa é um fundamento ético valorizado por diversas tradições indígenas. Mas as filosofias ocidentais modernas da diferença demoraram cinco séculos para compreender, a legislação um pouco mais que isso para implementar e a efetividade ainda está longe de ser vista na vida concreta das pessoas.
Gosto da seguinte passagem na introdução do livro A metafísica de existência moderna, do pensador indígena Vine Deloria Jr:
Num sentido mais concreto, se um indígena diz a outros indígenas que viu um fantasma, descreve a experiência e pede conselhos a outros, é considerado uma pessoa séria com um problema sério. No entanto, se um não indígena diz a outro não indígena que viu um fantasma, a questão é completamente diferente. Os cientistas olham para a pessoa com desconfiança e recomendam-lhe um psiquiatra. O padre ou ministro esforçar-se-á por assegurar à pessoa que ela não viu, de fato, um fantasma. O ouvinte comum pode ou não acreditar na pessoa, dependendo da orientação do ouvinte em relação ao sobrenatural.
É aí que reside a diferença. O indígena confronta-se com a realidade da experiência e, embora possa não lhe dar sentido imediato, não a rejeita como uma experiência inválida. No mundo indígena, a experiência não é limitada por considerações mentais e suposições a respeito do universo. Para o não indígena, os ensinamentos de uma vida inteira vêm à tona. Tais coisas não ocorrem no tempo e no espaço. A realidade é basicamente física. Ninguém vê fantasmas. A realidade, num certo sentido, é o que permitimos que a nossa mente aceite, não o que experimentamos. E uma série de outras crenças se precipita para encobrir, confundir e, eventualmente, eliminar a própria experiência.
O livro foi publicado originalmente em 1979, nos Estados Unidos, mas suas ideias permanecem atuais e podem propiciar boas reflexões no Brasil hoje. Pode nos ajudar a entender que estudos populacionais, por exemplo, fornecem informações importantíssimas para, dentre outras coisas, orientar políticas públicas. Porém não são suficientes para a compreensão de muitas experiências pessoais e suas implicações, nem para o julgamento de situações definidoras de trajetórias de vida, carreiras profissionais, acadêmicas, dentre outras.
Por exemplo, segundo o Censo do IBGE de 2022:
Em 2022, cerca de 92,1 milhões de pessoas (ou 45,3% da população do país) se declararam pardas, 88,2 milhões (43,5%) se declararam brancos, 20,6 milhões (10,2%), pretos, 1,7 milhão (0,8%), indígenas e 850,1 mil (0,4%), amarelas. […] A população amarela tem a idade mediana mais elevada em 2022 (44 anos), seguida da população branca (37 anos), preta (36 anos), parda (32 anos) e indígena (25 anos). O maior índice de envelhecimento foi o da população amarela (256,5), seguida da preta (108,3), branca (98,0), parda (60,6) e indígena (35,6).
O conhecimento construído pelos estudos populacionais, se não utilizados com atenção à singularidade das pessoas, podem orientar a formulação de ideias rígidas que identificam alteridades a estereótipos e prejudicam a abertura às especificidades de cada caso. Entendo que o tipo de informação apresentada acima, dentre muitas coisas, propicia a abertura de novas perguntas: por que pessoas pardas e indígenas têm o menor índice de envelhecimento? Quem são as pessoas que se autodeclararam segundo as categorias étnico-raciais? Será que há uma relação entre o que os dados expressam sobre elas? Tais perguntas deveriam nos levar ao encontro das pessoas concretas para compreender, junto com elas, o que tem se passado em suas vidas, na medida em que a confiança para falar e escutar sobre temas afetivamente difíceis pode vir a se aprofundar.
Aprendemos, no diálogo com os líderes comunitários que cultivam a Rede Indígena da USP, que trabalhar com as pessoas indígenas é diferente de trabalhar com as questões indígenas. Dado que as pessoas não se reduzem a um conjunto de rótulos, elas demandam a abertura para os sentidos e significados de experiências pessoais que podem romper com preconcepções, até mesmo com aquelas presentes em teorias científicas ou categorias projetadas em estudos sérios.
Estudos populacionais da aparência, embora úteis e necessários, não são suficientes para uma atuação adequada na vida concreta. Julgar o interlocutor a partir de preconcepções baseadas em preconceitos ou conhecimentos classificatórios de uma população é perigoso e pode ser violento. A psicologia, enquanto ciência e profissão, ao dispor de instrumentos para construção de diálogos entre instâncias enrijecidas, deveria ser capaz de indicar os caminhos para a mediação quando diferentes pontos de vista classificatórios entram em conflito. Trata-se de um compromisso ético, dado que o fechamento ao diálogo e o uso inadequado de dados abstraídos de amostras produzem violência e revitimização no curso da existência de pessoas que vivem concretamente suas vidas.
Por: Danilo Silva Guimarães, Jornal da USP, 22/10/2024