Conheça as lutas de um grupo de estudantes negros da USP

Quando a quarentena começou, a estudante Laísa Rodrigues Marcondes, 20 anos, se viu com um problema nas mãos: ela contava apenas com o celular para acompanhar as aulas e fazer os trabalhos do curso de Psicologia. “Teve uma pessoa da minha sala que salvou o meu semestre, porque ela doou um computador. Eu ficava assistindo pelo celular e, assim, é horrível. No semestre que vem a gente tem seis ou sete matérias obrigatórias. Eu só ia pegar umas duas, porque pelo celular estava impossível. Escrever trabalho pelo celular, nossa, não dá”, conta a jovem, que é negra e que está no segundo ano da graduação no Instituto de Psicologia (IP) da USP.

A história de Laísa ilustra uma das várias situações de desigualdade que os estudantes negros, a maioria egressos de escolas públicas, encontram quando chegam à universidade pública. Para compartilhar essas experiências, conversar sobre as relações raciais dentro da instituição e discutir o que seria desejável para a formação de profissionais antirracistas e anticolonialistas, um grupo de estudantes do IP formou o coletivo Escuta Preta.

“A maior parte da vida, eu não me enxergava como uma pessoa preta porque eu era só mais uma pessoa na escola pública, como tantas outras. Então, não tinha uma certa ‘diferenciação’. Quando eu cheguei na faculdade, foi um choque”, diz Karine de Jesus Souza, 21 anos. Também estudante do segundo ano de Psicologia, quando chegou na USP, Karine percebeu que a realidade socioeconômica da maioria de seus colegas era muito diferente da sua.

Pegando emprestado um comentário de rede social, ela diz que, assim como outros jovens negros na universidade, achava que “pessoas ricas eram coisa de cinema, que elas não existiam de verdade”. “Aí, você chega na faculdade e elas são suas colegas”, completa Karine.

Laísa também tem uma experiência semelhante. “Eu sou de Itaquera (zona leste de São Paulo), escola pública, raramente tinha alguém loiro lá. E aí eu entrei na USP e eu fiquei assim, nossa, essas pessoas são bem diferentes de mim. Você sabe que a desigualdade existe, mas daqui a pouco você percebe que o seu amigo já fez intercâmbio na Europa antes dos 18 anos e começa a ver que a sua realidade é totalmente diferente”, conta ela.

Jovens aquilombados

Laísa e Karine relatam que, muitas vezes, esse choque de realidade as levou a questionarem se a USP era realmente o lugar delas. O mesmo, elas contam, acontece com outros jovens negros que são seus colegas de curso. É por isso que, quando os integrantes do Escuta Preta se reúnem, eles ajudam uns aos outros a se lembrarem de que têm tanto direito de estudar na USP quanto qualquer outro aluno.

O coletivo foi fundado em 2019 e, desde então, fez três atividades públicas para conversar sobre cotas, permanência universitária, racismo e, também, como pessoas brancas podem ajudar o movimento antirracista. Eles também fazem reuniões quinzenais entre os integrantes do grupo – durante a pandemia, as reuniões são por videoconferência.

Quando começaram a se organizar, os jovens que formam o Escuta Preta se reuniam no barracão do Núcleo de Consciência Negra. Depois passaram a fazer as reuniões nos próprios corredores do IP. Segundo Andreone Medrado, 34 anos, até a pandemia forçar todos a ficarem em casa, ver um grupo de pessoas negras reunidas no corredor ainda causava estranhamento no instituto.

“A gente resolveu fazer no corredor da Psico justamente por isso, porque lá a gente consegue chamar mais atenção e até mesmo convidar mais pessoas, sem dizer palavra alguma. Acaba funcionando como um lugar de acolhimento”, afirma Andreone, que é biólogo, fez mestrado no Instituto de Biociências (IB) da USP e voltou para a graduação para cursar Psicologia.

Pedro Comuana, 20 anos, lembra que o obstáculo que o ambiente elitizado representa não é só uma questão de pertencimento. ”A turma de Psicologia, se não me engano, até 2016, antes das cotas, era a turma que tinha a maior renda per capita na USP. Então, o único curso público de psicologia na capital de São Paulo tem a maior renda per capita, é um curso integral, é um curso que não tem noturno. Tem uma série de dificuldades que a gente encontra dentro desse curso. Esse curso também é eurocêntrico, a gente quase não vê autores que fogem da Europa. Mesmo brasileiros a gente mal vê”, diz ele.

Ler para superar o colonialismo

Pedro vem de uma experiência de participação em outro coletivo durante o ensino médio. Na época, ele conta, aquele coletivo organizou um drive com diversos textos clássicos de pensadores negros. Foi assim que ele ouviu falar pela primeira vez, por exemplo, do psiquiatra e filósofo Frantz Fanon, nascido na Martinica em 1925. Depois, Pedro levou a referência para dentro do Escuta Preta.

Outra leitura que Pedro, Karine, Laísa, Andreone e outros colegas fizeram juntos e consideram que foi fundamental para a construção do Escuta Preta foi a do livro Tornar-se Negro, da médica psiquiatra Neusa Santos Souza. foi publicado em 1983 e apresenta os resultados da pesquisa de mestrado de Neusa na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).

Segundo a Fundação Palmares, a obra é considerada a primeira referência sobre a questão racial no campo da psicologia. Trata-se de um estudo sobre a vida emocional dos negros, que traz relatos sobre as estratégias que os entrevistados usaram para se inserirem em espaços sociais tradicionalmente brancos. O problema que a autora identifica é que essas estratégias têm um custo emocional muito alto, já que envolvem “cortar o cabelo, não se relacionar com pessoas da mesma cor que você, às vezes mudar de religião, tudo isso”, enumera Pedro.

Leituras como essa não são apenas um exercício acadêmico de estudantes que querem ser profissionais anticolonialistas em um país que já foi uma colônia europeia. Para os jovens negros, é também uma questão de evitar cair num processo de branqueamento. “Nesse livro a gente tem bem claro que os entrevistados são pessoas negras em ascensão econômica. Acho que é próximo do que a gente vive na USP porque, querendo ou não, a universidade te dá a possibilidade de mudar de vida”, diz Pedro.

Por Jornal da USP