Coronavírus: pesquisadores estudam como a pandemia afeta os sonhos dos brasileiros

A pandemia do coronavírus e o isolamento social continuam a provocar o aumento do sofrimento psíquico dos brasileiros. Não somente individual, mas coletivo. Sendo assim, uma das formas que encontramos para expor esta situação é através dos sonhos. É o que mostra a pesquisa “Sonho confinados em tempos de pandemia”, iniciada com três universidades públicas brasileiras: a Federal de Minas Gerais (UFMG), a Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e a Universidade de São Paulo (USP), e que ganhou adesão de especialistas do Rio de Janeiro e do Rio Grande do Norte.

Mas qual o significado do que a gente sonha? A pergunta que nos acompanha desde sempre sugerindo premunições e vozes de divindades passou, agora, a contar com a ajuda da tecnologia. A captação dos relatos está sendo feita através das redes sociais. No Instagram “Sonhos Confinados” os pesquisadores explicam a proposta e disponibilizam um formulário através do qual os interessados podem narrar os sonhos e fazer associações de maneira livre. Também é possível deixar um contato para que os especialistas façam uma escuta individual aprofundada. Todo o processo é anônimo.

– O bom do sonho é que a mente trabalha sem censura. Os nossos medos, os desejos e as fantasias se projetam numa tela como se fosse cinema – explica o professor Gilson Iannini, coordenador da pesquisa e integrante do Departamento de Psicologia da UFMG.

Inicialmente, o estudo revelava que as pessoas tinham sonhos diferentes durante a pandemia. No começo da crise, os principais temas que apareciam eram relacionados à solidão e angústia. Semanas depois, o medo da morte. De acordo com Iannini, nos sonhos o aparelho psíquico se abre para elaborar o que não compreendemos, e por isso parecem conferir algum sentido à realidade, mesmo uma tão surreal quanto à pandemia.

Assim, o essencial do estudo dos sonhos é entender as associações que eles permitem fazer. Mas a história das ciências é recheada de exemplos em que o pesquisador procura uma coisa e encontra outra, alerta o professor:

– Começaram a surgir temas que não esperávamos, como a especificidade da escuta on-line. Muitas vezes, o tema da pandemia, da morte, do vírus funciona como um pano de fundo para questões anteriores – aponta Iannini.

Radar em ação

A pesquisa foi iniciada junto aos alunos de um curso na pós-graduação da UFMG sobre o livro “A intepretação dos sonhos”, de Sigmund Freud. Mas desde 2019, um grupo de psicanalistas da USP estudava a oniropolítica, um esforço de pensar uma política informada pela psicanálise. Esse grupo começou a olhar para a política contemporânea a partir da lógica dos sonhos, considerando as limitações do paradigma cognitivo. Já o grupo da UFGRS, com sede em Porto Alegre, estudava os sonhos como uma estratégia de acessar a narrativa de indivíduos pertencentes a grupos vulneráveis, como os adolescentes que lutam pela vida.

Com a união das três linhas de pesquisa foi possível traçar entendimentos comuns para focar em contribuições sociais para o contexto pandêmico mundial.

– Os participantes da pesquisa relatam que ao escrever e ou contar os sonhos já começam a perceber algo que não haviam pensado antes. Dizem também experimentar um certo alívio quando percebem algum sentido nos relatos –explica Rose Gurski, coordenadora do Programa de Pós-graduação em Psicanálise Clínica e Cultura, Instituto de Psicologia (UFRGS) e uma das pesquisadoras sobre sonhos na pandemia.

Como referencial teórico, além da proposta da oniropolítica, que surgiu do professor da USP Christian Dunker, e das considerações de Freud, os grupos utilizam como embasamento fundamental o livro “Sonhos no Terceiro Reich”, da jornalista alemã judia Charlotte Beradt. A autora coletou, entre 1933 e 1939, mais de 300 sonhos daqueles que vivenciavam o momento histórico da ascensão do nazifascismo, apresentando a luta política travada no espaço íntimo de cada sujeito.

Também vem sendo peça chave um estudo da assistente social e psicoterapeuta Martha Crawford, que coletou e publicou cerca de 3 mil sonhos que tinham o presidente norte-americano Donald Trump como personagem.

“Bolsonaro aparece nas narrativas que se apresentam como pesadelo”, diz a psicóloga e psicanalista Rose Gurski

Graduada em psicologia, mestre em psicologia do desenvolvimento e doutora em educação, Rose Gurski tem experiência no trabalho com a saúde mental. Ela atua como coordenadora do programa de pós-graduação em Psicanálise Clínica e Cultura, Instituto de Psicologia (UFRGS) e do Núcleo de Pesquisa em Psicanálise, Educação e Cultura. Procurada pela reportagem, ela detalhou a pesquisa. Confira a seguir:

A pesquisa possibilita concluir se o brasileiro está sonhando mais durante a pandemia ou estaria lembrando mais dos sonhos?

A pandemia trouxe uma alteração no modo de vida cotidiano das populações e colocou em circulação na sociedade uma série de medos, incertezas e angústias. É medo da morte, do desemprego, da relação com o futuro, entre outros. Situações como a pandemia elevam o nível de sofrimento psíquico e o sujeito precisa aumentar, na mesma medida, as operações de elaboração.

É isso que faz a gente sonhar mais?

Esse é o motivo de sonharmos mais, lembrarmos mais de nossos sonhos que podem adquirir, ainda, a sensação de serem mais vívidos e intensos. Na medida em que o sujeita sonha mais ou de modo mais intenso, a função onírica é uma espécie de proteção para o psiquismo, ajudando a atenuar e elaborar os efeitos nefastos de situações críticas, traumáticas e muitas vezes inomináveis.

Qual a importância dessa pesquisa e a relevância para a vida dos brasileiros neste momento?

Os participantes relatam que ao escrever e ou contar os sonhos já começam a perceber algo que não haviam pensado antes. Dizem também experimentar um certo alívio quando percebem algum sentido nos relatos.

Na prática, como isso ocorre?

Acreditamos que a coleta e posterior divulgação dos sonhos pode realizar uma função importante na elaboração coletiva do sofrimento psíquico, no desenvolvimento de intervenções breves em saúde mental, para situações como uma pandemia.

Qual o papel que o sonho executa da vida de uma pessoa?

Quando Sigmund Freud escreveu o livro que é reconhecido como marco fundador da psicanálise “A Interpretação dos Sonhos”, em 1900, um dos objetivos foi retirar os sonhos do mundo da fantasia, do sem sentido ou das artes adivinhatórias. A hipótese de Freud era que o sonho é a realização de um desejo, e que diz respeito exatamente ao que vivemos no dia a dia de nossas vidas, mas que não podemos vivenciar. O sonho é a parte que Freud chamou de economia psíquica, pois busca uma elaboração psíquica do que angustia, do que produz reações afetivas, mas não se apresenta ao sonhador como uma produção de sentido para a vida. Ainda que reconheça a vida nos sonhos que Freud chamou “restos do dia”.

É verdade que o inconsciente trabalha?

Sim, existe outra hipótese da psicanálise de que o sujeito é regido pelo inconsciente, uma instância intrapsíquica que não é isolada do contexto sócio-histórico que a produz. O sujeito, na concepção da psicanálise, se situa na fronteira tênue entre a psicologia individual e a psicologia social, ou seja, o inconsciente trabalha impressões, intuições e percepções que nossa consciência muitas vezes não processa, não admite, não reconhece.

Qual a análise que vocês fazem a partir do que é narrado no Instagram?

Nos relatos que estamos recebendo, temos registros de sonhos onde os sujeitos estão visivelmente afetados por imagens de morte, destruição e pelo próprio receio de adoecer em função do vírus. A pesquisa está na primeira fase, isto é, a coleta de relatos e de associações dos sonhadores. Estamos também fazendo reuniões on-line com os coordenadores das outras regiões a fim de iniciar a discussão a partir do material dos sonhadores. Por enquanto, podemos dizer que tem muita gente querendo falar – já temos mais de 250 sonhadores na amostra do RS e SP e mais de 350 na amostra de MG.

É verdade que a figura do presidente Bolsonaro aparece com frequência?

Podemos dizer que ele (Bolsonaro) aparece muito nas associações que o sonhador faz a partir do que sonha, sempre em tom de crítica e sensações ruins, quando falam nele. A figura de Bolsonaro aparece nas narrativas de sonhos que se apresentam como pesadelo.