Direitos humanos são tema de dossiê da “Revista USP”

Publicação traz artigos sobre a “Declaração Universal dos Direitos Humanos”, que completa 70 anos em dezembro

Por  – Jornal da USP – 13/11/2018

Eleanor Roosevelt com a Declaração Universal de Direitos Humanos, que em dezembro completará 70 anos – Foto: Wikimedia Commons

Os 70 anos da Declaração Universal dos Direitos Humanos, que serão completados no mês de dezembro, são lembrados pela Revista USP no dossiê publicado na sua edição 119, que acaba de ser lançada. Uma efeméride em que “há pouco para celebrar”, como observa o organizador Paulo Endo, psicanalista e professor do Instituto de Psicologia da USP. “O conjunto de textos apresenta a reflexão e pesquisa de nove professores, pesquisadores e ativistas que há décadas vêm estudando, trabalhando e militando no campo dos direitos humanos dentro e fora do Brasil”, destaca Endo.

O editor da revista, Francisco Costa, lembra que, no momento em que a Revista USP estava sendo concluída, um acontecimento louvável despertou a atenção da mídia internacional. “No dia 5 de outubro, o mundo ficou sabendo que o Prêmio Nobel da Paz de 2018 foi entregue ao médico congolês Denis Mukwege, de 53 anos, que já tratou cerca de 30 mil casos de molestamento sexual contra mulheres e é um feroz defensor dos direitos sexuais da mulher”, explica o editor. “E a Nadia Murad, de 25 anos, iraquiana da minoria yazidi, que passou três meses como escrava sexual do Estado Islâmico e que, após fugir dos fanáticos, se tornou uma ferrenha defensora dos direitos humanos. Já em 2016, fora nomeada embaixadora da Boa Vontade da ONU para a Dignidade dos Sobreviventes de Tráfico Humano. Ambos, Mukwege e Nadia, receberam o prêmio por seus esforços para acabar com o uso da violência sexual como arma de guerra e conflito.”

Denis Mukwege, vencedor do Nobel da Paz de 2018 – Foto: Claude Truong-Ngoc /Wikimedia Commons

Francisco Costa esclarece que os colaboradores do dossiê não tinham essa informação quando escreviam. “De todo modo, apresentamos neste número um senhor conjunto de artigos, que deve ser lido por todos que se preocupam com a importância do tema nestes nossos tempos sombrios.”

Desse modo pretendemos reabrir o que foi declarado em 1948 frente ao que hoje pode ser constatado.”

Na apresentação do dossiê, o professor Paulo Endo destaca que, em maio deste ano, o alto comissário dos Direitos Humanos da ONU, Zeid Ra’ad Al Hussein, informou que “os direitos humanos estavam sendo atacados por diversos países e que hoje, em seu conjunto, já não era mais uma prioridade, mas um pária”. Diante de tamanho desrespeito, não há como celebrar as suas sete décadas. No entanto, considera: “Em 1948, os princípios que a Declaração reza, de qualquer maneira, não partiam também de nenhuma celebração. A Declaração foi – e ainda é – constativa e não celebrativa. Ela propõe repor o que fora devassado, instaurar o que não pôde ser mantido, imaginar as condições capazes de universalizar para o conjunto dos seres humanos o que ainda se constitui como privilégio de alguns.”

A luta pelos direitos das mulheres também é discutida no dossiê da Revista USP – Foto: Marcos Santos / USP Imagens

Todos os especialistas que integram o dossiê participam do Grupo de Pesquisa em Direitos Humanos, Democracia, Política e Memória do Instituto de Estudos Avançados (IEA) da USP, coordenado pelo professor Paulo Endo. “A eles foi sugerido que trabalhassem a partir de algum artigo, entre os 30 propostos na Declaração, como pano de fundo de suas reflexões. Desse modo pretendemos reabrir o que foi declarado em 1948 frente ao que hoje pode ser constatado, relançando mais uma vez o conjunto de artigos que compõem a Declaração ao debate e elencando algumas preocupações.”

O resultado é um conjunto de trabalhos que apresenta a inter e a transdisciplinaridade que os direitos humanos propõem “e sem as quais não se realizam nem como direitos nem como pensamento nem como crítica”.

Todo ser humano tem capacidade para gozar dos direitos e as liberdades estabelecidos nesta Declaração, sem distinção de qualquer espécie, seja de raça, cor, sexo, idioma, religião, opinião política.”

O artigo “Diagnóstico do tempo presente e realidade brasileira”, de Eduardo C.B. Bittar, professor do Departamento de Filosofia e Teoria Geral do Direito da Faculdade de Direito da USP, propõe uma reflexão sobre a situação atual das políticas públicas de direitos humanos no Brasil. A reflexão é baseada em relatórios e dados sobre direitos humanos, e assume uma perspectiva empírica, descritiva e crítico analítica.  “No País, desconfia-se do governo, das autoridades e dos cidadãos. Uma cultura de respeito aos direitos de igualdade na cidadania e de respeito à dignidade de todos e de cada um demanda, no mínimo, o reverso dessa fórmula”, explica. “Por isso, a análise da situação dos direitos humanos e do grau de respeito à dignidade humana é, também, mais um termômetro revelador de nossas contradições e incongruências, sendo, nesse sentido, um importante ‘sismógrafo da cidadania’ do País.”

O objetivo do artigo “Em busca dos direitos humanos: quem são os sujeitos?”, de Flávia Schilling e Carlota Boto, professoras da Faculdade de Educação da USP, é debater a história e a atualidade das acepções de direito e de justiça nas lutas sociais que abarcaram as ideias de igualdade e de diversidade. O ponto de partida da reflexão é o artigo 2º da Declaração Universal dos Direitos Humanos, que diz: “Todo ser humano tem capacidade para gozar dos direitos e as liberdades estabelecidos nesta Declaração, sem distinção de qualquer espécie, seja de raça, cor, sexo, idioma, religião, opinião política ou de outra natureza, origem nacional ou social, riqueza, nascimento, ou qualquer outra condição.” 

O fato puro e simples de a tortura existir, ser permitida, ser tolerada,  ou não poder deixar de existir denuncia todos os dias o fracasso da ideia de humanidade do homem.”

 Paulo Endo apresenta, no artigo “Sobre a prática da tortura no Brasil”, um quadro comparativo entre as recomendações do relatório de Nigel Rodley sobre a tortura, em sua visita ao Brasil no ano 2000, e, mais de 15 anos depois, o que foi relatado pelos membros do Mecanismo de Prevenção e Combate à Tortura – ligado ao governo federal -, em visita a  locais de detenção pelo País. “A tortura é uma totalidade. É a presença assumida, deliberada, explícita da imposição da dor, da morte, do fim de tudo numa cena em que uns podem tudo e alguém pode nada”, observa Endo. “O fato puro e simples de a tortura existir, ser permitida, ser tolerada, ou não poder deixar de existir denuncia todos os dias o fracasso da ideia de humanidade do homem”. Endo ressalta: “O próprio homem, ante a possibilidade concreta da tortura, refaz, num átimo, o caminho que levanta todas as suspeitas sobre sua humanidade, ao mesmo tempo em que, radicalmente falando, obriga-nos a considerar se não seria esse traço de monstruosidade o que revelaria a intrínseca característica do que, ingenuamente ou não, chamamos de humanidade”.

¨Censura como meio de política dos afetos e bloqueio da argumentação” é o título do artigo de Ariani Bueno Sudatti, professora da Escola Paulista de Direito, e Márcio Seligmann Silva, professor da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). O texto revela a importância dos artigos 19 e 27 da Declaração Universal dos Direitos Humanos, propiciando a reflexão sobre o sentido  do “direito à liberdade de opinião e de expressão” e do “direito de tomar parte livremente na vida cultural da comunidade, de fruir as artes e de participar no progresso científico”.

Os professores traçam um cenário atual do Brasil, mostrando a censura especialmente nas artes de 2017. “Assistimos a um ataque em série a exposições e museus, a partir de manifestações, aparentemente orquestradas, articuladas por movimentos como o MBL, que denunciavam essas exposições como promotoras de pedofilia, zoofilia e ainda como pornografia.” O artigo cita a mostra Queermuseu, exibida no Santander Cultural,  em Porto Alegre (RS), fechada por denúncias infundadas, em 2017. E a performance de Wagner Schwartz no Museu de Arte Moderna de São Paulo, também no ano passado.

O coreógrafo Wagner Schwartz apresenta La Bête, performance da obra Bicho, de Lygia Clark – Foto: Divulgação / MAM

O direito à educação parece ocupar um lugar ímpar no rol dos chamados direitos sociais.”

O artigo 26 da Declaração Universal dos Direitos Humanos é a referência para a reflexão de José Sérgio Fonseca de Carvalho, professor da Faculdade de Educação da USP. “O direito à educação parece ocupar um lugar ímpar no rol dos chamados direitos sociais”, observa. “Diferentemente de alguns de seus congêneres, como o direito à moradia ou à previdência social, seu reconhecimento como um direito humano fundamental e sua aspiração à universalidade não parecem ser objetos de grandes controvérsias no que concerne à legitimidade de sua enunciação ou à necessidade de sua observância.”

O professor aponta que há muito a caminhar em relação à efetivação da universalização da oferta de vagas no ensino fundamental. “A hipótese que guia o presente artigo é a de que sua plena realização requer uma elucidação acerca do próprio bem jurídico assegurado: o direito à educação como um direito subjetivo público.”

“Políticas dos direitos humanos: compliance, dissenso, estética da existência” é o artigo de Andrei Koerner, professor associado do Departamento de Ciência Política da Unicamp, e Marrielle Maia, professora de Relações Internacionais da Universidade Federal de Uberlância (UFU). “O artigo 28 da Declaração Universal dos Direitos Humanos estabelece que todo ser humano tem direito a uma ordem social e internacional em  que os direitos e liberdades estabelecidos na presente Declaração possam ser plenamente realizados”, assinalam.

Capa da nova edição da Revista USP – Foto: Reprodução

Os professores esclarecem que buscam, através de sua análise,  uma perspectiva crítica para a pesquisa e reflexão sobre os direitos humanos capaz de ultrapassar os termos do debate atual. “O objetivo é explorar um enfoque dos direitos humanos em que a tensão, o conflito, o dissenso não sejam pensados como obstáculos, mas como suporte para a (auto)produção normativa de agentes e coletividades.”

 

Revista USP, número 119, dossiê “Direitos Humanos”, publicação da Superintendência de Comunicação Social (SCS) da USP (telefone 11 3091-4403), 170 páginas, R$ 20,00. A versão online pode ser acessada aqui.