A importância de espaços para a discussão

Evento realizado no IPUSP aborda a necessidade de reflexão acerca de políticas educacionais e paradigmas a respeito do conceito de gênero no espaço escolar

As questões de gênero vêm se tornando objeto de estudos acadêmicos, seja em teses ou em dissertações. Contudo, ainda que haja a necessidade de mais estudos sobre o tema no âmbito científico, o assunto deve integrar também outros espaços, que sejam acessíveis à sociedade, como o ambiente familiar, veículos de comunicação e instituições escolares.

Em vista da necessidade de se abordar gênero no espaço escolar, a professora Marilene Proença realizou o evento “Educação Escolar e Gênero: o que envolve esta polêmica?”, integrado à disciplina “Psicologia e Educação”. Durante o evento, foram apresentadas produções audiovisuais para instigar a reflexão. A obra inicial foi “Ma vie en rose” (ou “Minha vida em cor-de-rosa”, em tradução para o português), filme europeu produzido em 1997 e dirigido por Alain Berliner.

A trama gira em torno de Ludovic, que nasce menino, porém, identifica-se como menina. Perpassando preconceitos e dificuldades de aceitação que sofre no ambiente familiar e na sociedade, a personagem vai traçando sua trajetória na descoberta de seu gênero e, gradualmente, vai se tornando mais claro para o telespectador sua vontade de assumir a identidade feminina. Para refletir e debater sobre o filme, a doutora em educação pela FEUSP e pesquisadora na área de sexualidade e gênero Elisabete Regina Baptista de Oliveira esteve presente.

A questão da adequação do gênero

Em sua fala, Elisabete discorre sobre a acomodação da instituição escolar em fortalecer os padrões da sociedade cis-normativa: “Se nasceu menina, tem que ser educada e criada de certa forma”. Desse modo, Elisabete afirma que são deixadas de fora “todas aquelas pessoas que não se identificam com as sexualidades que são valorizadas socialmente”. Essa constatação da pesquisadora evidencia a desconsideração do ambiente escolar como potencial espaço de questionamento dos valores assentados na sociedade.

Esses valores engessados mostram-se presentes na criação de prescrições e scripts que devem ser seguidos pelas crianças desde o seu nascimento. Como argumenta Elisabete, “com base no sexo biológico percebido, as características de identidade e comportamento são ensinadas e reforçadas diariamente, para que a mente esteja em sintonia com o corpo”. O que, em alguns casos, acaba por ignorar a verdadeira identificação de gênero do indivíduo, em prol de uma padronização e binarização da sociedade.

Aceitação e rejeição em Ma vie en rose

Na trama cinematográfica, os valores sociais cis-normativos podem ser visualizados no momento em que os pais, que inicialmente aceitavam a manifestação de identidade de gênero de Ludovic (caracterizada por eles como uma “excentricidade”), passam a reprimir a criança durante o convívio social – ou seja, perante os vizinhos. Isso ocorre porque os pais temem o julgamento, por parte da vizinhança, de que o comportamento de seu filho seja, na verdade, a tradução de uma educação conturbada oferecida por eles. “A forma de lidar com Ludovic muda porque essa situação começa a abalar a estrutura da família”,comenta Elisabete.

A expressão da identidade de Ludovic no ambiente escolar demonstra o total despreparo da escola no que tange a aceitação da individualidade, identidade e diversidade da personagem. Com relação ao preconceito sofrido pela personagem, Elisabete aponta que “a escola se mostrou um espaço de conformidade total – ou você se conforma às regras ou será excluído”. A decisão do diretor da instituição por expulsar Ludovic da escola simboliza a rejeição do que foge ao padrão pré-estabelecido socialmente.

A construção colaborativa do Plano de Educação do município de São Paulo

Para encerrar o evento, foi convidada Denise Carreira, educadora e coordenadora na área de educação na organização Ação Educativa. Depois da exibição do curta-metragem nacional “Participação de Crianças e Adolescentes no Plano de Educação da Cidade de São Paulo”, produzido pela ONG em 2012, a educadora analisou processos e etapas que compõem o Plano Municipal de Educação (PME), documento que organiza as políticas educacionais e estabelece metas decenais para a educação.

No curta-metragem, são relatados o trabalho realizado com escolas estaduais e municipais de São Paulo e o incentivo pela participação de alunos no processo de construção do Plano de Educação da cidade, capturando os desejos, sonhos e demandas que as crianças e adolescentes possuem para melhorar a educação no município. Denise ressalta a importância da participação de alunos, dizendo que um maior comprometimento produz uma diversidade de ideias e propostas, o que coopera para que o Plano de Educação “não seja mais um documento, mais uma lei que não contribua necessariamente para a concretização de direitos”.

Transformação do contexto escolar: gênero, sexualidade e educação

Outra questão trazida ao debate foi a exclusão das questões de gênero do Plano Municipal de Educação (PME), aprovada pela Câmara de SP em agosto de 2015. Além de os planos municipais e estaduais de educação de São Paulo excluírem a formação escolar sobre sexualidade, diversidade e relações de gênero, o Plano Nacional de Educação e os planos deoutros estados e municípios também negaram a discussão do tema.

Denise comenta que a supressão de tais assuntos nestes planos é atribuída à bancada religiosa fundamentalista presente em diversas estruturas do poder legislativo e político, que inviabilizam a discussão de gênero, etnias e sexualidade. “Nós vivemos um efeito dominó, nos vários municípios e estados tiveram grupos religiosos em suas disputas do plano educacional”, comenta.

No entanto, a professora Lisete Arelaro, da Faculdade de Educação (FEUSP), ressalta que, apesar das questões de gênero não serem contempladas pelo Plano Nacional, os municípios e estados não são obrigados a abandonar o tema de seus respectivos planos educacionais.

Por fim, Denise elenca os principais desafios atuais de gênero na educação brasileira: a desigualdade social entre as próprias mulheres, a situação dos meninos na educação brasileira (principalmente meninos negros), a existência de um currículo educacional que não contribui para a alteridade, a concentração de mulheres em profissões menos valorizadas social e economicamente, e, finalmente, a política de educação infantil, bastante precária e insuficiente para a sua demanda.

A educadora finaliza questionando qual “base nacional comum curricular é necessária para se construir e sustentar um projeto de justiça social em um país tão desigual? Qual é o currículo que pode nos ajudar a avançar e sustentar um projeto de justiça social no nosso país?”. Essas perguntas são respondidas por ela mesma, que, lucidamente, sintetiza a solução em “um currículo que reconheça a diversidade humana”.

Por Vitória Batistoti
Edição e revisão por Islaine Maciel e Maria Isabel da Silva Leme

Clique nas imagens para folhear as revistas psico.usp

Alfabetização – 2015, n. 1

É hora de falar sobre Gênero – 2016, n.2/3

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