Ju Bernardo: O gênero que há em nós (e nas linhas)

A artista plástica Ju Bernardo transporta para tecidos e fios questões relacionadas ao gênero e ao autoconhecimento

“Todos nós somos compostos por esta complexidade de fios e cada um é diferente do outro. Mesmo que um artesão faça trinta peças, nenhuma vai ser igual. É essa singularidade que torna tudo tão peculiar e todos tão diferentes.” Percorrendo as páginas da revista psico.usp você encontra diversas ilustrações feitas especialmente para esta edição que trouxe a discussão de gênero à tona. O talento por trás dos desenhos é de Ju Bernardo, artista plástica que enxerga nas linhas, tramas e bordados os materiais essenciais para suas criações, e que têm como referência artísticas nomes como Leonilson, Rosana Paulino, Sonia Gomes e Bispo do Rosário.

 

Pernambucana de nascimento, Bernardo conheceu muito cedo, por meio da mãe e da avó, o universo do artesanato e dos trabalhos manuais. Incentivada por uma professora, fez um curso de um ano sobre coordenação e estilismo, o qual a ajudou a conseguir um emprego na área de assessoria de moda. Entretanto, ela sempre almejou algo além de um simples lado mercadológico da arte, algo que englobasse seus estilos e influências.

Já na Unesp, apesar de tentar conhecer todas as áreas que abrangiam o curso de Artes Plásticas, Ju Bernardo sempre tentava colocar a questão das linhas e dos bordados em seus projetos, o que muitas vezes era visto com estranhamento pelos docentes. “Essa questão começou a me trazer algumas inquietações, porque eu estava em uma instituição de arte reconhecida, em uma das maiores universidades de São Paulo, tinha acesso a várias outras técnicas consideradas pelas belas artes, mas ainda tinha vontade de permanecer trabalhando com o que eu tinha contato desde criança”, conta a artista.

Apesar do acesso às novas vertentes e projetos artísticos que a universidade proporcionava, Ju Bernardo acabou se decepcionando com o extremo academicismo de alguns docentes, que afirmavam que um artesão nunca poderia ter o intelecto de um artista graduado. Da mesma forma, o intercâmbio de dois anos que conseguiu em Portugal se mostrou demasiadamente teórico, o que se contrastava com suas ideias sobre o fazer artístico prático. Felizmente, a artesã conheceu um professor que apreciava a mistura de linguagens artísticas dominada por ela. Ele a orientou na produção do seu trabalho de conclusão de curso, centrado na investigação de como os materiais do universo do ateliê de costura tinham se incorporado aos trabalhos acadêmicos.

A questão de gênero se relaciona com o bordado no momento em que a sociedade impõe a este tipo de arte um caráter exclusivamente “feminino”. Como explica Ana Paula Simioni, pós-doutora em sociologia pela Universidade de Genebra, “o estatuto cultural das obras realizadas em tecidos, notadamente as classificadas como ‘bordados’, é socialmente ambíguo em nossa sociedade”. Mas o que faz do ato de se utilizar tecidos e linhas para fazer arte uma prática associada à feminilidade? A pesquisadora contextualiza que, em partes, isto se dá porque as mulheres de antigamente eram excluídas de atividades como a pintura e a escultura, e acabavam fazendo criações próprias mais “caseiras” para suprir seus desejos artísticos. Tais modalidades, consideradas inferiores na hierarquia dos gêneros artísticos pelas Academias, foram sendo associadas às práticas artísticas de mulheres. Toda esta construção cultural preconceituosa reforça a importância do estudo de gênero em todos os níveis da sociedade, para que os fios da igualdade comecem a ser tramados.

Para Bernardo, a questão de gênero pode ser facilmente comparada com o bordado. “Destrinchar um fio é estudar o gênero. Vários aspectos que compõem a mesma pessoa. Nem sempre estes aspectos são respeitados e podem acabar sendo mal interpretados. Todos nós somos compostos por esta complexidade de fios e cada um é diferente do outro. Mesmo que um artesão faça trinta peças, nenhuma vai ser igual. É essa singularidade que torna tudo tão peculiar e todos tão diferentes”.

Por Fernanda Giacomassi
Entrevistada por Tatiana Iwata
Edição e revisão por Islaine Maciel e Maria Isabel da Silva Leme

Clique nas imagens para folhear as revistas psico.usp

Alfabetização – 2015, n. 1

É hora de falar sobre Gênero – 2016, n.2/3

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