Entre o conhecimento científico e o saber popular: o diálogo horizontal como princípio transformador

A superação da visão de ciência autoritária propagada pela educação bancária pressupõe o estímulo de ações, entre outras, que fomentem o diálogo horizontal, ou seja, de igual para igual, entre especialistas e não-especialistas. Fonte: freepik.com. Crédito: storyset.

A visão de ciência autoritária colabora para a crise democrática da atualidade. Como superar essa visão?

Luciene Fernanda da Silva é licenciada em Física pela UNESP (campus Guaratinguetá), onde foi bolsista em 2010 e 2011 do primeiro subprojeto PIBID do curso. Assim que se formou, ingressou no PIEC-USP onde defendeu o mestrado e o doutorado. Atualmente é professora do IFRJ (campus Nilópolis), atua na Licenciatura em Física além de dar aulas em turmas do ensino médio técnico e profissionalizante. Participa do grupo de pesquisa GEMEC (Grupo de Estudo de Materiais Educacionais em Ciências), além de orientar TCC dos licenciandos do curso em diversos temas. Tem interesse nas áreas: formação de professores; ensino e aprendizagem de Física; história e filosofia da Ciência; Ciência e arte; divulgação científica; currículo... e tudo mais que tiver a ver com Física, Educação e Ciências Humanas. Na vida tem muitos interesses: de teatro a yoga; de culinária (de preferência vegetariana) a esportes; de literatura a passeios na natureza!

Olá pessoal. Meu nome é Caian Cremasco Receputi. Sou Licenciado em Química pela UFES e mestre em Ensino de Ciências PIEC-USP. Durante a graduação foi bolsista de Iniciação à Docência no PIBID e, posteriormente, atuei como professor substituto na universidade em que me formei. Atualmente curso o Doutorado no PIEC-USP. Tenho interesse pelos temas de Educação e Política. Tenho grande admiração pelas lutas travadas por Paulo Freire e Florestan Fernandes. Nas horas livres gosto de ler um livro ou assistir a um filme. Sigo lutando para que um dia a Educação se torne um projeto que vise à emancipação do povo em nosso país.

23 de maio de 2022 | 10:00

Qual é a responsabilidade que professores(as) e pesquisadores(as) têm sobre o descrédito da população em relação à ciência em face da disseminação da desinformação? Apesar de termos passado por um período em que a ciência esteve em destaque nos meios midiáticos, principalmente no início da pandemia da COVID-19, as crises relacionadas à desinformação, ou se mantiveram ou até mesmo foram intensificadas. É o caso, por exemplo, dos movimentos antivacinas. Esse contexto é o ponto de partida de Marcília Barcellos, professora do Programa de Pós-graduação em Ciência, Tecnologia e Educação (PPCTE) do Centro Federal de Educação Tecnológica Celso Suckow da Fonseca (CEFET-RJ) para a reflexão sobre a necessidade de repensar como o empreendimento científico é abordado na educação e nos meios de divulgação científica. Suas ideias são apresentadas no ensaio “Ciência não autoritária em tempos de pós-verdade”, publicado em 2020 no Caderno Brasileiro de Ensino de Física[1].

Para a autora, a democracia passa por uma crise por, pelo menos, três motivos: i) o alto fluxo de informações, característico da era da informação; ii) pelas práticas de desinformação (fake news) cada vez mais recorrentes e intensificadas pelos novos meios de comunicação (por exemplo, sites, mídias e redes sociais); e iii) a ascensão de grupos políticos alinhados à extrema direita em todo mundo. Mas qual a relação entre a crise na democracia e a forma como a ciência é apresentada e discutida com a população?

Visões sobre conhecimento científico e autoritarismo

Para sua discussão, Marcília Barcellos se baseia principalmente em três autores: o educador Paulo Freire (1921-1997), o sociólogo Boaventura de Souza Santos (1940 - ) e o antropólogo Bruno Latour (1947 - ).

Paulo Freire critica a educação que toma como modelo o que ele chamou de educação bancária, muitas vezes compreendida como o ensino tradicional, cujos elementos principais são o autoritarismo do conhecimento, isto é, o conhecimento pertence exclusivamente ao professor, e cabe aos estudantes recebê-lo de forma passiva. Nesse modelo educacional, não há espaço para o diálogo entre educador e educandos, o que prejudica a compreensão mais profunda do empreendimento científico e a apreensão do conhecimento que auxilia no entendimento e na busca por respostas às problemáticas do cotidiano da comunidade onde os educandos vivem.

O sociólogo Boaventura de Sousa Santos, a partir das relações de colonização e exploração de países do norte sobre países do sul global, denuncia a eliminação de conhecimentos populares que se deu historicamente nesses processos de dominação e que ainda perdura. O autor reconhece que tanto os saberes da ciência moderna, quanto os saberes populares, possuem relevância para se compreender e se transformar a realidade das comunidades  (processo relacionado ao seu conceito da ecologia dos saberes). Também aponta que o dogmatismo reforçado no modo como o conhecimento científico é apresentado à população em geral, isto é, como algo incontestável, conduz à dominação de corpos e mentes.

Já Bruno Latour se atenta para como o conhecimento científico é utilizado para dominar a natureza e explorá-la. O autor defende que para vivermos no planeta Terra é preciso modificar esse pensamento de dominação, passando a considerar os seres não humanos como imprescindíveis para a nossa sobrevivência. Portanto, as tomadas de decisões coletivas devem se atentar para os entes humanos e não humanos (ecologia política).

Em seu ensaio, Marcília Barcellos dialoga com as ideias desses três autores, encontrando pontos em comum que nos ajudam a compreender as origens e os efeitos da persistente percepção da ciência autoritária[2]. Apesar das contribuições desses autores, entre outros, embasarem a problematização dessa visão autoritária da ciência, a maior parte de professores e pesquisadores das áreas científicas ainda alimenta essa visão, considerando, por exemplo, a existência de “verdades absolutas” ou os cientistas como únicos detentores do conhecimento. 

Encarando a ciência como o único meio de se compreender e modificar o mundo material e social, diminui-se a possibilidade de estudar e apreender com os diferentes saberes dos povos originários e das comunidades socialmente marginalizadas. Essa concepção sobre o conhecimento científico acaba reverberando na formação dos professores o que, por sua vez, reflete na formação dos próprios estudantes da Educação Básica. Então, como essas reflexões podem ajudar a fomentar um ensino de ciências não autoritário[3]?

Ações para fomentar uma visão de ciência não autoritária

Marcília Barcellos aborda duas principais ações para superar a concepção de uma ciência autoritária, que envolvem a desmonumentalização da Ciência[4]. A primeira ação pressupõe evidenciar o caráter humano da atividade científica, pois segundo a autora “pasmem! [A Ciência] é feita por cientistas que também são seres humanos” (p. 1507) e, portanto, ela é atravessada pelos projetos individuais (subjetividades, interesses e anseios) e coletivos (projetos de sociedade) de quem a realiza.

A segunda ação envolve aproximar tanto a linguagem quanto as práticas científicas das vivências da população em geral, de forma a fomentar um diálogo horizontal entre especialistas e não-especialistas, ou entre conhecimentos científicos e saberes populares. Isto porque ao longo do desenvolvimento científico houve uma superespecialização das práticas e da linguagem utilizada. É fácil perceber isso quando refletimos que para a formação de um pesquisador leva-se em média 22 anos (12 anos na Educação Básica mais 10 anos de graduação e pós-graduação).

Portanto, para existir o diálogo horizontal, é preciso que as diferentes vivências, opiniões e posicionamentos sejam levados em consideração para se compreender e buscar soluções para problemas reais experienciados pelos sujeitos. Para tanto, é preciso modificar as atuais estruturas educacional e midiática, nas quais há um pequeno número de pessoas produzindo e transmitindo informações, para um modelo de construção coletiva de entendimentos comuns. Essa é uma perspectiva de superação da educação científica bancária defendida por Marcília Barcellos.

 

Ficou interessado(a)? Aprofunde suas reflexões lendo o ensaio original:

BARCELLOS, Marcília. Ciência não autoritária em tempos de pós-verdade. Caderno Brasileiro de Ensino de Física, v. 37, n. 3, p. 1496-1525, 2020.


[1]A ideia de fazer o TDC desse ensaio surgiu da discussão do grupo de estudos de Divulgação Científica que a equipe editorial da Revista BALBÚRDIA realiza para a formação dos próprios quadros. Para tanto, reuniões quinzenais são realizadas para a discussão de temas e textos relevantes da Divulgação Científica.

[2] A ciência autoritária é uma perspectiva da ciência como o único meio válido de se obter informações da natureza e da sociedade. As outras formas de conhecimento, por exemplo, teológico, filosófico, empírico, seriam, portanto, menos válidas que aqueles produzidos pela ciência.

[3] O ensino de ciências não autoritário, em contraste com a ideia da ciência autoritária, é aquele que considera como válidos os diferentes conhecimentos que os estudantes levam para a sala de aula. Esses conhecimentos, inclusive, servem para dar sentido ao estudo dos conceitos científico-escolares em sala de aula.

[4] A monumentalização da ciência, é um conceito utilizado por Boaventura de Sousa Santos para ressaltar as características de dominação e opressão atribuídas a este conhecimento quando ele é utilizado como uma verdade que deve ser aceita acima de qualquer contexto, por exemplo, os estudos nazistas sobre a eugenia. A desmonumentalização da ciência é um posicionamento que busca desautorizar o seu caráter autoritário acima de qualquer contexto, tornando-o menos mitificado.