Os reflexos da pandemia de Covid-19: o “Ensino remoto” e a formação de educadores do campo

Entre folhas e lutas: a construção da Educação do Campo. Fonte: freepik. Disponível em: .

25 de abril de 2022 | 10:00

Camila Lima Miranda 

É paulista, bahiana e mineira: uma mistura de muitos sotaques, territórios e afetos. Doutora e Mestre em Ensino de Ciências (Modalidade Ensino de Química) pelo Programa de Pós-Graduação Interunidades em Ensino de Ciências da Universidade de São Paulo (USP). Licenciada e Bacharel em Química pelo Centro Universitário Fundação Santo André. Líder do Núcleo de Estudos sobre Educação em Ciências, Formação Docente e Representação Social (NUFORMARS/UFTM/CNPq). Professora Adjunta da Universidade Federal do Triângulo Mineiro (UFTM), no Instituto de Ciências Exatas, Naturais e Educação (ICENE), no curso de Licenciatura em Educação do Campo. Também é orientadora e coordenadora do Programa de Pós-Graduação em Educação em Ciências e Matemática (PPGECM/UFTM).

Foi com muita alegria que recebi o convite para partilhar algumas das reflexões que tenho desenvolvido, enquanto professora da Universidade Federal do Triângulo Mineiro, na seção do egresso da BALBÚRDIA. Se hoje ocupo esse espaço na universidade, o PIEC-USP muito contribuiu. Para além desse aspecto profissional, durante o período que aí permaneci construí laços que são fortalecidos até hoje. 

Em um número em que a temática é “a complexidade de mediar os impactos da pandemia na Educação”, um primeiro ponto dessa partilha é localizar o leitor de onde falo, uma Licenciatura em Educação do Campo (LECampo). As escassas políticas públicas para a permanência de campesinos em seus territórios, implicaram em um grande êxodo rural. Com um dos direitos básicos de todo cidadão, assegurado em nossa Constituição, a Educação, não foi diferente, o que resultou em sua oferta de modo muito precário e dissociada das demandas dos sujeitos do campo (MIRANDA; NASCIMENTO, 2020). 

Assim, a LECampo, dentre outras iniciativas, foi uma conquista dos movimentos sociais para uma Educação de qualidade que contribuísse para o desenvolvimento e construção de novas possibilidades de permanência e luta coletiva nos territórios campesinos. Importante destacar que essa conquista é resultado de muita luta coletiva (CALDART, 2009; MOLINA; FREITAS, 2011). Os discentes da Licenciatura em Educação do Campo da UFTM fazem parte de populações rurais, alguns residem em assentamentos e uma pequena parte compõe as populações urbanas, porém suas dinâmicas sociais e culturais estão, majoritariamente, vinculadas ao trabalho e aos modos de vida do campo.

A LECampo se alicerça em três grandes pilares: a Pedagogia da Alternância, a formação por área do conhecimento e, por consequência, a interdisciplinaridade. Na Pedagogia da Alternância, os processos de ensino e de aprendizagem dos licenciandos se subdividem nos Tempo Escola ou Tempo Universidade (TE/TU), que envolve atividades presenciais na Universidade e, Tempo Comunidade (TC), em que as atividades são realizadas na própria comunidade dos licenciandos. Lemes e Miranda (2020, p. 83) apontam que esse processo vai “[...] além de alternar dois espaços formativos, com aulas nas universidades (Tempo Universidade ou Escola – TU/TE) e nas comunidades (Tempo Comunidade – TC). A Pedagogia da Alternância possibilita a integração dos conhecimentos escolares e as experiências e saberes das comunidades”.

Assim, a comunidade em que reside o estudante passa a fazer parte dos processos de ensino e de aprendizagem. No caso das Ciências da Natureza, área do conhecimento em que atuo na UFTM, por meio dos processos de ensino e de aprendizagem, espera-se que os estudantes assumam em suas futuras práticas como docentes, as Ciências Naturais dissociadas de uma aprendizagem mecânica e sem significado, contribuindo para a superação do que Paulo Freire denominou como “educação bancária” (FREIRE, 2005), com vistas a promoção de uma aprendizagem mais significativa, ancorada na vivência e conhecimentos dos estudantes. Tendo em vista que a educação bancária, “implica em uma espécie de anestesia, inibindo o poder criador dos educandos, a educação problematizadora, de caráter autenticamente reflexivo, implica um constante ato de desvelamento da realidade” (FREIRE, 2005, p. 80). Os processos de ensino e de aprendizagem precisam, deste modo, tornarem-se a materialização dessa educação problematizadora, em que aspectos sociais, políticos, econômicos, culturais, ambientais e éticos são realçados. É deste modo que a formação dos licenciandos ocorre na LECampo da UFTM, de modo que os licenciandos vivenciem em sua formação práticas e reflexões que subsidiarão sua atuação na escola básica.

Se já são grandes as dificuldades de se efetivar a Pedagogia da Alternância em um contexto presencial, os desafios vivenciados durante a pandemia de COVID-19 foram e são inumeráveis. Cabe destacar que o verbo utilizado no presente, são inumeráveis, se deve ao que estamos vivenciando no exato momento em que lhes escrevo essas reflexões. Retornamos a presencialidade em janeiro e vivenciamos mais um pico de contaminação, em quase vinte dias com atividades de ensino presenciais, um surto de COVID-19 atingiu o curso, único presente no campus naquele período, com um número expressivo de alunos e professores contaminados, implicando em nova suspensão das aulas e na continuidade das atividades remotas para finalização do período letivo. 

Dentre outras barreiras, que não serão exploradas pelo curto espaço, duas merecem destaque, no que se refere ao ensino remoto na formação de professores do campo: i) aos estudantes, o acesso ao ambiente virtual propiciado por equipamentos inadequados (com muita frequência celulares) e a falta de acesso à internet de qualidade pelos alunos; ii) a nós docentes, o custo com equipamentos, internet e todos os recursos necessários para a garantia de que estávamos a fazer o que era possível. 

A humanização, intrinsecamente ligada aos processos educativos, e a necessária relação entre os envolvidos ficaram em um plano muito distante na comparação com o presencial. Câmeras fechadas, vozes emudecidas... a falta de expressões faciais e corporais nos fazem duvidar que estamos diante de uma turma de estudantes em sala de aula e, na verdade, não estamos. Observamos a precarização das atividades de ensino e, com ainda mais tristeza, a precarização da vida e a perda de vidas. E isso, não se pode mensurar!

 

Referências

CALDART, Roseli Salete. Educação do Campo: notas para uma análise de percurso. Trab. Educ. Saúde, v. 7 n. 1, p. 35-64, 2009. 

FREIRE, Paulo. Pedagogia do oprimido. 44. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2005.

LEMES, Anielli Fabiula Gavioli; MIRANDA, Camila Lima. A presença da química na formação por área do conhecimento: o caso das licenciaturas em Educação do Campo mineiras. In: FALEIRO, Wender; RIBEIRO, Geize Kelle; Silva, Lázara Cristina da (Orgs.). Ciências da natureza na diversidade dos contextos educacionais. 1 ed. Goiania: Kelps, 2020, v. 6, p. 82-99. Disponível em: https://www.kelps.com.br/wp-content/uploads/2020/03/ciencias-da-natureza-na-diversidade_ebook.pdf. Acesso em 03 mar. 2022.

MIRANDA, Camila Lima; NASCIMENTO, Wilson Elmer. Narrativas Autobiográficas: Elementos para Educação em Direitos Humanos. Revista Práxis Educacional, v. 16, n. 41, p. 412-430, Edição Especial, 2020.

MOLINA, Mônica Castagna.; FREITAS, Helana Célia de Abreu. Avanços e desafios na construção da Educação do Campo. Em Aberto, Brasília, v. 24, n. 85, p. 17-31, 2011.